Não faz muito, o cidadão norte-americano negro e desarmado George Floyd foi assassinado por um policial branco que, inexplicavelmente, manteve o peso de seu corpo pressionando o pescoço da vítima com o joelho, até a asfixia. Floyd estava algemado, deitado no chão e de bruços. Seguiram-se protestos nos Estados Unidos e no mundo inteiro, exigindo punição aos bandidos e mudanças na polícia. Surgiu o Black Lives Matter (vidas negras importam), hashtag que inundou o planeta de solidariedade.
Esta semana, incrivelmente, aconteceu de novo. Jacob Blake foi baleado sete vezes pelas costas, igualmente desarmado, ao entrar em seu carro com os filhos no banco de trás, por um policial branco do estado de Wisconsin. Está entre a vida e a morte.
A cena é abjeta e revoltante. Dá mesmo vontade de sair às ruas e gritar, mesmo a léguas de distância. Vieram mais protestos, mais indignação mundial. Só que, desta vez, o esporte produziu algo diferente, de repercussão imprevisível na luta global antirracismo. Meu papo com Marcelo Carvalho, gaúcho que preside o Observatório da Discriminação Racial do Futebol, parte daí.
Qual a diferença entre os protestos pela morte de George Floyd e os de agora?
É a posição institucional. Sai do aspecto individual do atleta e vai para o coletivo: a liga abraça. Em vez da dar WO quando o time se recusa a entrar em quadra em protesto, a NBA dá apoio. Em vez da represália imediata, como no passado, ela acolhe. Antes era só o LeBron James, agora é o peso da NBA somando-se a ele, com seus patrocinadores. A reação em série foi imediata. No beisebol, vários times se recusaram a jogar. A organização do torneio de tênis de Cincinnati suspendeu as semifinais em protesto e teve apoio da ATP e WTA. A NBA já vinha avançando, ao incentivar ações individuais, mas esta posição institucional, politicamente, é um passo enorme.
E qual o próximo passo?
Mudar o comportamento policial contra os negros, nos EUA e no mundo. A NBA não pode agir diretamente nisso, claro, mas de agora em diante o governo que não enfrentar o racismo com ações práticas sofrerá consequências. Esse é o debate que se abre agora. O apoio institucional aumenta a pressão. Repare que foi automático: o presidente Donald Trump, ao criticar os protestos, deixa de visar os atletas e mira a NBA como alvo. O antirracismo, sob este olhar, ganha a conotação da defesa dos direitos civis. Há brancos lutando nesses atos de boicote das ligas. É a ideia central do slogan "vidas negras importam". Todos, negros e brancos, têm de se sentir atingidos e ameaçados. Pode apostar: na Olimpíada de Tóquio, com atletas do mundo todo reunidos e esse sentimento reforçado, teremos iniciativas inéditas e históricas, individuais e coletivas.
Por que o futebol continua alheio a este fenômeno social?
Aí, depende. Brasil ou mundo? Na MLS, por exemplo, os jogadores se ajoelharam em reverência, como protesto. Os dirigentes, em vez de ameaçarem com punição pelo gesto, emitiram nota em solidariedade. A Bundesliga, na volta do futebol durante a pandemia, em um primeiro momento disse que iria estudar o que fazer se houvesse manifestações de jogadores, mas voltou atrás e descartou qualquer tipo de punição. Foi além: incentivou que vozes se levantem. Assim, o atleta se sente respaldado e sai do casulo.
E no Brasil?
Aqui, parece que ninguém enxerga. É só lado individual, com manifestações isoladas e ações. Falta o lado coletivo e institucional, de parte da CBF e do Campeonato Brasileiro. Se um time não entrasse em campo, a CBF apoiaria ou puniria? O Roger Machado, no Bahia, é um caso. Conheço bem as suas ideias. Só no Bahia ele se sentiu realmente à vontade para falar, como naquele jogo entre o Bahia e o Fluminense do Marcão, encontro dos dois únicos técnicos negros da Série A naquele momento. A instituição, o ambiente de Salvador: ele se sentiu abraçado. O presidente (Guilherme Bellintani) foi pedir para ele se posicionar. Deu ideias. Incentivou. A esposa do Roger disse a ele: "Agora tu estás em um clube que pensa exatamente como tu".
Por que o jogador não se posiciona no Brasil?
Medo de represália. De perder emprego. A maioria é pobre e lutou muito para chegar onde chegou. Temem que a porta se feche. E a família, que depende dele, como fica? Tem o lado político, também. Eles (os jogadores) ainda não entenderam de onde vieram e de que lado estão. Vende-se a falácia da meritocracia, de que chegaram lá por méritos próprios e, assim, suas posições só não correrão risco se tudo ficar como está. Mas e os outros negros que sofrem sem oportunidade e são discriminados: é falta de mérito? Todos? Por fim, tem o aspecto cultural.
Como assim?
Os jogadores não conviveram com colegas que lutassem para desconstruir essa lógica. Nunca foram estimulados a esse debate mais profundo. Os dirigentes, mesmo sem intenção, reforçam a ideia de manter tudo como está. É como se dissessem: "Mudar para que, se você está bem? Cuidado com os exageros e o que pode acontecer". Então os jogadores optam pela segurança, para ele e suas famílias. A conscientização é um processo.
Em que estágio estamos nesse processo?
No caso das instituições, no limite entre se manifestar e ser obrigado a se manifestar. Sinto que os atletas estão falando mais. Isso é bom. Com o tempo, eles vão entender a sua força. A imprensa está abordando mais o assunto. Ajuda muito. O COB (Comitê Olímpico do Brasil) já fez duas lives, anunciando campanha.
Qual será o nosso próximo passo?
Os atletas cobrarem. No caso do COB, por exemplo: que plano é esse, quem fez, por que não nos consultaram? Sem isso, fica aquela campanha só para dar uma satisfação.
O futebol brasileiro é racista?
Sim. Muito por isso: ainda não abraçou a causa antirracista institucionalmente. Me assusta olhar o Brasil e ver pouco acontecendo sob este aspecto. Ações mais fortes, só individuais, deste e daquele atleta. O futebol voltou em silêncio sobre a questão racial, como se nada acontecesse no mundo. Vidas negras importam? Não teve nem faixa, que eu me lembre.
O Rio Grande do Sul é o estado mais racista no futebol?
É o que dizem os números de denúncias que recolhemos. Dos 65 casos registrados em 2019, o RS lidera com 17. E 2020 não é animador. Antes da pandemia, tivemos o caso do Tilica, do Caxias, chamado de macaco, contra o São Luiz. Mesmo sem torcida, no Bra-Pel, o sistema de som do Pelotas reproduziu um cântico com referências racistas.
Alguma chance de mudar algo já no Brasil a partir dos boicotes esportivos nos EUA?
No futebol, a pressão sobre a CBF está forte. Se outras federações agirem, ela terá de se mexer. A CBF vai muito no embalo da Fifa. Na questão legal, por exemplo: os cantos racistas entraram na lei por pressão da Fifa. Ex-jogadores falarem é importante. Daqui a pouco o discurso forte e emocionado de um cara como o LeBron toca o Neymar. O Lewis Hamilton é amigo dele, não é?