A loucura é uma ação extravagante que escapa às normas usuais do cotidiano. Aqueles dias de dezembro de 1983 foram loucos e roucos. Entre os dias 11 e 15 daquele mês as cordas vocais tricolores foram exigidas ao máximo com a conquista do título mundial. São 40 anos, comemorados nesta segunda-feira (11), de um período que os gremistas se esgolearam por cinco dias seguidos. Primeiro para comemorar o 2 a 1 do Grêmio sobre o Hamburgo, em Tóquio. Depois, garganteram por dias que eram campeões do mundo. Até que naquele 15 de dezembro tomaram as ruas de Porto Alegre, do aeroporto do Salgado Filho ao Olímpico, para festejar a chegada dos campeões (confira o roteiro completo com fotos, áudios e vídeos no mapa acima).
O hiato entre os gols de Renato e o reencontro com a torcida se explica. Após vencer os alemães, o Grêmio foi para os Estados Unidos disputar amistoso contra o América-MEX. A última perna da viagem de retorno partiu do Rio de Janeiro. Sintonizados na Rádio Gaúcha, os torcedores ouviam a transmissão com exclusividade de dentro do avião em que estavam os jogadores.
— Os jogadores estavam loucos e desejosos para chegar em Porto Alegre. Eu falava por cinco minutos e ficava fora do ar para o comandante se comunicar. Todos cantavam. Muita gente acompanhou o trajeto correndo ao lado do caminhão — relata Darci Filho, repórter encarregado de transmitir de dentro do avião e de subir no caminhão do Corpo de Bombeiros para transmitir o trajeto até o estádio (ouvir no áudio abaixo).
Era um calor de fazer cactos pedir água. E de fazer jogador de futebol se livrar de roupas formais. De Léon e o presidente Fábio Koff desceram com os troféus conquistados no Japão. Reza a lenda que Beto, o goleiro reserva, ficou com receio de subir no veículo de prefixo 177, mas foi convencido a encarar a aventura. Paletós e gravatas não duraram muito. No decorrer do percurso, iniciado ao meio-dia, nem mesmo as camisas resistiram. Não era apenas calor. As peças do traje oficial eram atiradas como recordação para os torcedores.
Abaixo, a narração da chegada dos campeões mundiais
De cima do caminhão, os campeões viam um formigueiro azul. Era uma imensidão de cabecinhas a perder de vista. Se olhassem para cima veriam que não apenas o céu era azul. Nas janelas e sacadas todo o tipo de adereço azul era pendurado para saudar o Grêmio. Eram bandeiras, toalhas de mesa, toalhas de banho, camisetas. O sol estava a pino, mas a sensação daqueles que eram o centro das atenções era de estar em meio a um temporal composto por chuva de papel picado e trovões de alegria. A Farrapos parou. Carros não passavam. Os motoristas de ônibus estacionaram os veículos em fila contínua nos corredores.
— Era uma loucura. Teve gente que deve ter corrido o trajeto todo. Tinham uns guris que os jogadores atiravam dinheiro e que iam comprar cerveja e jogar para dentro do caminhão. Eles fizeram isso até o olímpico — relembra Sérgio Vázquez, diretor de eventos do clube naquele período.
Ser campeão mundial e ver os jogadores de perto era como ganhar na Sena (a Mega-Sena de então). Funcionário da lotérica dos pais à época, Jairo Alselmini esperou a festa passar pela Farrapos. Celebrou os ídolos e perseguiu por cerca de um quilômetro o caminhão.
Foi uma loucura! Tinha gente que tentava se agarrar no caminhão. Esperei eles na esquina e saí correndo atrás. Só não fui mais longe porque tinha que voltar para o trabalho
JAIRO ANSELMINI
Torcedor gremista que acompanhou o cortejo do título Mundial
Dali, a festa se espalhou pela Visconde do Rio Branco, perambulou pelas ruas da região até desembocar onde tudo começou. Em frente ao Parcão, nas redondezas onde foi o primeiro estádio do clube, o caminhão parou abraçado pela multidão que vestia as três cores. Na sequência, chegou até a esquina da Borges de Medeiros com a Salgado Filho. Todos os gremistas do Centro convergiram para ao ponto do Cine Victória. Era um filme da vida real. O maior blockbbuster da história gremista.
A passos de tartaruga, o cortejo passava em meio ao povaréu azul, preto e branco. A partir da João Pessoa, entrando na Ipiranga e ingressando na Azenha, o contingente de seguidores ganhou volume.
— Foi uma loucura! Fiquei esperando na esquina da Ipiranga com a Érico. Era muita gente. Eu estava comemorando desde domingo quando foi o jogo. Eu era muito fanática. Fui atrás do caminhão até o Olímpico, mas não consegui entrar porque tinha muita gente. Foi muito bonito — conta Ana Lúcia Delgado, então com 19 anos.
Não tinha espaço para ninguém no Largo dos Campeões às 14h37min quando o caminhão apareceu. Os arcos da entrada do Olímpico viraram camarote para ver a festa. Os torcedores foram bastecidos com 20 mil litros de chope refrescados por quatro toneladas de gelo. Os jogadores desembarcaram pela área das piscinas. Tumulto enorme. Em meio a outros atletas, imprensa, dirigentes e torcedores, Renato chorou abraçado à mãe. A mistura de emoção e calor o fez passar mal. O camisa 7 se recuperou prontamente após ser atendido por Dirceu Colla, médico do clube.
Montado em frente ao Ginásio David Gusmão, o palco contava com 50 integrantes da escola de samba Império da Zona Norte. Dos mais malemolentes aos mais durangos, todos caíram no samba. Os portões do Olímpico foram abertos para uma volta olímpica e para desafogar o pátio (ouvir áudio abaixo). Só então, a loucura acabou.
— Já faz 40 anos? Que loucura — se espanta Anselmini, hoje com 56 anos.
Abaixo, a narração da Rádio Gaúcha da festa no Estádio Olímpico
Nessas quatro décadas, a casa lotérica herdada por ele recebeu duas apostas vencedoras da Mega-Sena, mas aqueles dias de dezembro de 1983 foram como acertar as seis dezenas. Uma loucura!