Em julho de 1965, Antônio Carlos Verardi, um jovem farmacêutico de 31 anos recém completados, chegou ao Olímpico com a missão de reorganizar a comissão de obras do estádio, cujo gerente havia se demitido. Inaugurada havia pouco mais de 10 anos, a nova casa tricolor ainda exigia acabamentos em sua estrutura, sem falar nos cuidados com o gramado.
Verardi, "um hábil datilógrafo, que se virava bem no inglês", cuidava então do setor de exportação da Celulose Cambará, e, com o novo cargo, passaria a coordenar também a manutenção do Olímpico. Foi a contragosto que assumiu a comissão de obras, uma determinação de Fernando Kroeff, seu chefe na Cambará, e também patrono do Grêmio.
— Bota aquilo lá em ordem — havia imposto o patrono.
Colocado contra a parede, Verardi planejou tudo. Em sua cabeça, a casa já estaria em ordem no final de julho, quando teria carta branca para retornar à tranquilidade da Celulose Cambará. O destino, contudo, alteraria para sempre o roteiro. Dia 30 de julho, já de volta à sua mesa na indústria de papel, Verardi foi avisado pelo patrono que o presidente do Grêmio, Mário Antunes da Cunha, empolgado com seu trabalho na comissão de obras, pretendia contratá-lo. E o aguardava na sala ao lado.
— Não sei quanto você ganha aqui. Mas eu pago três vezes mais para ser o gerente geral do Grêmio — disparou Cunha.
Era muito dinheiro, mas Verardi, ainda assim, pediu um dia para pensar. Logo que Cunha foi embora, expôs sua insegurança ao patrono. Temia que o Grêmio, então um clube com poucos recursos, não conseguisse pagar seu salário. E ele, recém-casado, e vindo de uma fracassada tentativa de abrir uma farmácia, não poderia jogar a família em uma aventura .
— Se o Grêmio não tiver dinheiro para lhe pagar, volte aqui todo final de mês que eu pago — tranquilizou Kroeff.
No livro de funcionários do Grêmio, o registro de Verardi leva a data de 1º de agosto de 1965. No dia 2, o mesmo em que os cinemas da Capital exibiam Marnie, confissões uma ladra, A Noviça Rebelde, 30 Anos Esta Noite, O Candelabro Italiano e Guerra e Paz, "com um pouco de temor e perplexidade", ele cruzou o portão do Olímpico como novo gerente geral do Grêmio.
Sequer poderia imaginar que o vínculo se estenderia por mais de cinco décadas e lhe permitiria testemunhar e participar da transformação de um clube de arrabalde em potência do futebol mundial. Conviveu tão de perto com glórias e fracassos, sorrisos e lágrimas, que decidiu reunir tudo em Seu Verardi e o Grêmio, uma história de amor, biografia assinada pelas jornalistas Carolina Rocha e Denise Waskow, com lançamento marcado para o próximo dia 6.
Naquela segunda-feira em que a vida de Verardi fundiu-se para sempre à do Grêmio, Zero Hora noticiava a vitória do time por 1 a 0 contra o Rio Grande, com gol de Alcindo, ocorrida na véspera, no Olímpico. Também era destaque a derrota do Inter por 2 a 1 para o Brasil, em Pelotas, que o deixava a seis pontos do rival no Gauchão. Nada que causasse impacto, já que a época era de esmagadora supremacia gremista no Estado, que se consolidaria na conquista de 12 títulos em 13 anos.
Já como gerente geral, Verardi aproximou-se dos jogadores. Passou a conviver com lendas como Alcindo, Airton Pavilhão, Altemir. O primeiro com quem conversou foi Milton Kuelle.
— Fui juvenil do Grêmio em 1951. E o Apa (o falecido treinador Aparício Viana e Silva) me botava a marcar o Milton, que era um inferno, não parava em campo. Ficamos amigos — sorri.
Em 1974, com nove anos de casa, o gerente geral recebeu nova missão do patrono Fernando Kroeff. Chamado de novo à Celulose Cambará, soube que assumiria o departamento de futebol. Outro susto. O Inter, afinal, já havia quebrado em 1969 a hegemonia regional do Grêmio e montava um supertime. Logo, a tendência era de insucessos tricolores dentro de campo.
— Eu não tenho garantia de emprego, nunca optei pelo Fundo de Garantia. Se o Inter for campeão gaúcho, o primeiro a cair serei eu — ponderou Verardi a Kroeff.
— Aconteça o que acontecer, eu não te deixo sair — prometeu o patrono.
Gerente geral pela manhã e diretor de futebol de tarde, Verardi trabalhou primeiro com o técnico Sérgio Moacir Torres Nunes. Temperamental, Torres Nunes, ex-goleiro do clube, apelidado de "chorão", reclamava de tudo. Certa feita, queixou-se a Verardi de que, enquanto o Inter já treinava com a bola que seria usada no Gauchão daquele ano, o Grêmio ainda não a havia recebido da fabricante.
— Perdi a cabeça. Dentro do vestiário, peguei a bola e joguei no peito dele. E disse que o Grêmio havia recebido a bola antes do Inter, ele que tratasse de se informar. Sérgio foi o único treinador do Grêmio com quem briguei — garante Verardi.
Tem muito domingo que, mesmo sem nada para fazer, vou para lá (o CT Luiz Carvalho), de tão arraigado que o Grêmio está na minha vida. Não é demagogia nenhuma, mas é o mesmo que comer
ANTÔNIO CARLOS VERARDI
Supervisor de Futebol do Grêmio
Em 1975, ele contrataria Ênio Andrade. Durante os jogos, o diretor de futebol espantava-se em ver o treinador ficar acocorado ao lado da casamata e mudar toda a história da partida no intervalo, caso o time estivesse jogando mal. Naquele 1975, Verardi e Ênio tiveram nas mãos a chance de provocar um abalo na estrutura colorada.
— O que tu achas de trazer o Gilberto Tim? Ele é meu afilhado e aceitaria trabalhar comigo — disse o técnico ao diretor.
Preparador físico do Inter, Tim formava com Rubens Minelli a histórica parceria que faria o time bicampeão brasileiro.
Empolgado, Verardi correu ao presidente Luiz Carvalho com a ideia.
— Vamos trazer o Tim e desmanchar o esquema deles, presidente — propôs.
Carvalho, que hoje dá nome ao CT do clube, havia assumido a presidência para reorganizar as finanças do Grêmio. Nem percebeu que pagaria pouca a coisa a mais para contratar o preparador e disse não, o que provocaria uma discussão com Verardi.
Também foi Verardi, já então como supervisor, quem abriu as portas do Grêmio a Luiz Felipe Scolari pela primeira vez, em 1987, quando o então vice de futebol Raul Régis de Freitas Lima lhe pediu uma indicação para o lugar do técnico uruguaio Juan Mugica. A história voltaria a se repetir em 1993, quando Cassiá, mesmo campeão gaúcho, foi demitido.
— Contratei o gringo que indicaste — comunicou a Verardi o vice de futebol Luiz Carlos Silveira Martins, o Cacalo.
Verardi arregaçou a manga da camisa e mostrou o braço direito a Martins:
— Estou todo arrepiado. É pura emoção. Você vai ver que técnico é o Luiz Felipe.
Verardi faz um curioso relato sobre o gol que mais o emocionou nesses 53 anos. Na verdade, um gol que ele não viu. Foi na Batalha dos Aflitos. Quando o árbitro marcou o segundo pênalti contra o Grêmio, os dirigentes, revoltados, invadiram o gramado dos Aflitos. Todos menos Verardi que, atônito, permaneceu na área reservada à direção na social do estádio.
— Eu chorava de puro desespero. O Grêmio não aguentaria mais um ano na segunda divisão. Vi que, ao meu lado, um casal de torcedores do Náutico se condoía da minha situação — recorda.
Verardi lembra do empurra-empurra entre dirigentes e jogadores do Grêmio e a arbitragem dentro de campo. Depois que Galatto defendeu a cobrança, o supervisor comentou com o conselheiro Luiz Antônio Moreira que ainda faltavam minutos para o jogo se encerrar e o Grêmio, com apenas sete jogadores em campo, não suportaria. Foi quando Moreira gritou gol e Verardi, achando que fosse do Náutico, olhou para Galatto. Só então notou Anderson comemorando do outro lado.
— Nunca pensei que tivesse tanta água para sair dos meus olhos. Foi um rio. Não há nada igual ao choro de alegria — arrepia-se.
Ainda não era tudo. Verardi voltou a mirar o casal de torcedores do Náutico e viu que ele o parabenizava:
— Aí chorei mais ainda. Nunca senti tanta emoção por uma bola na rede.
Verardi aposentou-se naquele mesmo 2005. Mas, a pedido do presidente Paulo Odone, ainda seguiria organizando as viagens do time, função que ainda levaria cinco anos para deixar, já na gestão de Duda Kroeff.
A rigor, mera formalidade, já que ele não deixou um dia sequer de chegar ao Olímpico ou ao CT Luiz Carvalho às 8h15min. Hoje, chega às 9h, mas é sempre o último a ir embora. Na viagem aos Emirados Árabes, em dezembro, viajou como convidado.
— Não me senti bem. Estava louco para começar a dar ordens — sorri.
O passo-fundense que chegou à Capital com 14 anos e completou 84 na sexta-feira, 1º de junho, admite não saber o que fazer quando for mandado embora do clube.
— Tem muito domingo que, mesmo sem nada para fazer, vou para lá (o CT Luiz Carvalho), de tão arraigado que o Grêmio está na minha vida. Não é demagogia nenhuma, mas é o mesmo que comer. Fiquei lá uma vida inteira. Não sei se me entendem — emociona-se.
Ao usar a palavra arraigado, Verardi lembra outra história, ocorrida no início da década de 1990, e que evidencia a força da relação com o clube. Convidado para um churrasco na casa do empresário João Francisco, assustou-se com a presença de José Asmuz, à época presidente do Inter. João Francisco desculpou-se e explicou que churrasco havia sido um pedido do dirigente colorado, para formular ao supervisor uma proposta de trabalho.
— O senhor jamais de ouvirá menosprezando o Inter, mas não tem como, por melhor que a proposta seja para a minha família. Eu levanto de manhã e meu carro já me leva para o Olímpico — explicou Verardi.
— Eu sabia que este guri ia dizer isso — aceitou Asmuz.
Ainda ecoam na mente de Verardi as recomendações do falecido patrono em seu primeiro dia de Grêmio. Você nada tem a ver com a política do clube, só deve lealdade ao presidente, não opine, fale com a imprensa o mínimo possível, de preferência, nunca, orientou Kroeff naquela agosto de 1965.
— É por isto que não estou me sentindo bem com tantas entrevistas por causa do livro, com toda esta visibilidade — confessa, com humildade, o homem que, sem precisar de tintas, tatuou o Grêmio em sua alma.