A definição vem de Cristiano Scariott, educador físico:
— Foi como uma formiga derrubar um elefante.
O título do primeiro turno do Gauchão, em cima do Grêmio, permite aos fãs da Sociedade Esportiva e Recreativa Caxias do Sul, o conhecido SER Caxias, fazer as analogias que bem entendem (e fazem mesmo) para celebrar a conquista. Pudera, a Taça Ewaldo Poeta está instalada na sala de troféus do Estádio Centenário e o clube da Serra tem a cômoda situação de apenas acompanhar os demais 11 integrantes do Gauchão se matarem para ser seu adversário na decisão do Estadual. Ou, se tudo der certo de novo, conquistar o troféu ao final do segundo turno, sem precisar das finalíssimas.
— A gente vinha machucado pelas derrotas, principalmente a da Série D. Ter de aumentar o espaço para a torcida do Grêmio em busca de mais renda também foi ruim. Mas merecemos. Fizemos tudo certo. O resultado foi fruto do trabalho. Espero que as pessoas que abandonaram depois do Manaus (na eliminação da quarta divisão nacional) voltem. Eu mesma pensei em largar tudo, mas deu 10 dias e estava de volta. Queremos reaproximar a comunidade ao Caxias — conta Bruna Cipolatto da Rosa, 26 anos, cozinheira.
É com esse cenário que os integrantes da família Scariott (e os descendentes Rosa e Poegere) receberam a equipe de ZH para participar da série de reportagens Família Gauchão. Mas, diferentemente de outros convidados, que abrigaram os jornalistas em suas casas ou em seus locais de trabaolho, o cenário escolhido por eles para conversar foi o próprio Estádio Centenário, local em que fizeram a maior festa do Interior em 2020. O que mostra o envolvimento da turma com o clube.
Os pequenos Vitor e Lara Scariott e Valentina da Rosa Poegere são a quarta geração de torcedores que frequentam a casa caxiense. Para chegar até eles, houve uma sequência de envolvimento com o clube, nos períodos vitoriosos e nos nem tanto.
— A história começou com meu pai, Nédio, com o pai do Cristiano, tio Rosa, e o seu Delvino, outro tio nosso. Depois entrou na família o Rudi, que chegou a jogar no Caxias. O filho dele, Guilherme, também foi da equipe. O irmão do Cristiano se profissionalizou aqui. A gente tem uma relação forte, nossa comunidade sempre participou muito. Veio do meu pai, eu passei para minhas filhas. Foi andando por todos — conta André Rosa, empresário, 48 anos.
Para manter a chama acesa, eles fazem o caminho mais lógico. Não há jogo do Caxias sem todos na arquibancada, não importa a competição ou a condição climática.
— O conselho ajuda, o exemplo arrasta — completa Cristiano, em mais um ditado: — Estamos arrastando as pessoas para o estádio. O clube da Capital vive sozinho. Os do Interior têm de se fortalecer, senão o RS vai acabar tendo só dois times. Vai terminar a graça.
Criançada em campo, comunidade próxima
Para eles, há uma série de vantagens de torcer para a instituição local em detrimento aos clubes da Capital. De frequentar o estádio a conhecer pessoalmente jogadores e comissão técnica, passando por ingressar no campo e celebrar outras conquistas. Cristiano prefere usar mais uma metáfora:
— É como comer bala com papel. É bom? Claro que não! Não tem gosto nenhum. Quem vai ao estádio gosta de comer bala sem papel.
Bruna fez um pouco mais. Ela faz parte de um grupo chamado Rosa Grená, um coletivo de mulheres que torce para o Caxias e realiza uma série de ações em prol do clube. No caso dela, a missão é entrar com a gurizada em campo. Antes da partida contra o Inter, lá estava ela, organizando a turma que mantinha um comportamento exemplar. O grupo todo andava alinhado, caminhando juntos, de um lado ao outro do campo, para ingressar no gramado aos lados dos campeões do primeiro turno. Quando apareceram no túnel, foram em direção aos novos heróis da cidade e escutaram os gritos dos torcedores na arquibancada.
Felizmente, relevaram o comportamento agressivo de uns poucos torcedores e trataram de aproveitar um momento que certamente ficará guardado na retina. Bem comportados, saíram de cena logo após o rito obrigatório dos jogos do Estadual.
A ação ocorre em todos os jogos, mas, no ano passado, houve algo ainda maior. Bruna, ao lado das colegas do Rosa Grená, organizou um evento para mil crianças, no Centenário. Sua família se envolveu: a irmã, Laura, 15 anos, passou a noite fechando pão para cachorro quente, por exemplo. Outros buscaram patrocinadores, organizaram brincadeiras, cuidaram da gurizada e trataram de garantir o sucesso.
— Chamo o clube de “Grená do Povo”. É isso o que queremos, trazer todos para o estádio. Deixar todos próximos — diz Bruna.
A torcedora finaliza com uma mensagem que merece ser anotada por todos:
— Enquanto tiver um pequeno torcedor correndo no Centenário, entrando com os jogadores, subindo no alambrado, esse clube não vai morrer.
A história da bandeira perdida durante a comemoração de uma vitória no ca-ju
Entre as muitas histórias vividas nos estádios, uma das mais emocionantes vividas pela família foi em Caxias do Sul mesmo, mas no outro estádio. No ano passado, a casa do Juventude presenciou uma grande vitória do Caxias sobre o rival. No Ca-Ju 283, realizado no Alfredo Jaconi há praticamente um ano, os visitantes, mesmo com um jogador a menos desde os 38 minutos do primeiro tempo, aplicaram 3 a 0 nos donos da casa.
A festa atingiu níveis difíceis de ser medidos, e a loucura da arquibancada se traduziu em um gesto de paixão. Enquanto os torcedores pulavam na arquibancada, os jogadores procuravam uma bandeira para comemorar.
Cristiano, então, lançou a sua. Enrolou o pano e atirou em direção aos atletas, que a receberam e seguiram festejando dentro do gramado, ao mesmo tempo em que os locais protestavam pela goleada sofrida em sua própria casa. Na confusão de festa e protestos, a bandeira se perdeu. Cristiano voltou para casa de mãos abanando. Feliz, mas sem seu amuleto.
A história chegou ao vestiário grená. Comovidos, os jogadores trataram de ressarcir o “prejuízo” do torcedor. Eles conseguiram uma bandeira, assinaram e deram de presente a Cristiano.
— Foi um Ca-Ju debaixo de chuva, estávamos com nossos filhos, uma sensação ótima. Quando joguei a bandeira, queria comemorar. E ganhei de volta no dia do meu aniversário — emociona-se Cristiano, que mal consegue conter as lágrimas ao lembrar do episódio.
Ao mesmo tempo em que recordam a vitória sobre o rival, os torcedores reconhecem: o crescimento do Juventude é bom para o Caxias. Claro, até a bola rolar.