O sonho de título inédito da Copa do Mundo Feminina acabou de forma vexatória para o Brasil. Em busca da sétima classificação consecutiva às oitavas de final, a Seleção repetiu as primeiras duas edições do torneio e despediu-se ainda na fase de grupos.
A eliminação precoce surpreendeu, especialmente, pelos adversários da chave. Com exceção da França, líder e uma das favoritas ao título, o Brasil disputava com Jamaica e Panamá a segunda vaga às oitavas.
As jamaicanas chegaram a emitir carta aberta e criar uma vaquinha online para angariar recursos na disputa da Copa. Enquanto as panamenhas, estreantes em Mundiais, vinham de uma preparação sem grandes expectativas (com quatro derrotas nos últimos testes). Mesmo assim, a Seleção não conseguiu se sobressair e ficar com uma das vagas às oitavas.
— Era óbvio que o Brasil não estava entre os favoritos, mas acreditava que ao menos pudesse passar de fase. O que vimos hoje (quarta-feira) foram os problemas de todo o ciclo. As dificuldades que já apareciam em campo e que não foram solucionadas — avaliou a comentarista do SporTV e ex-jogadora Alline Calandrini nas redes sociais
Ao longo dos três jogos, o Brasil venceu o Panamá por goleada (4 a o), na melhor apresentação durante a Copa. Depois, atuações apáticas contra França, na derrota por 2 a 1, e Jamaica, no empate sem gols, culminaram na eliminação e no adiamento do sonho.
— Vimos muitos problemas nesses quatro anos, mas não imaginávamos ficar na fase de grupos. Temos de olhar para a eliminação e repensar o que queremos com a Seleção Brasileira. É decepcionante o que o Brasil jogou nessa Copa do Mundo. Jogos ruins contra França e Jamaica. A história é gigante e nenhum treinador é maior do que o Brasil — entendeu a comentarista Ana Thaís Matos nas redes sociais.
O cenário no Brasil
A evolução do futebol feminino ainda é muito recente no Brasil. Em 2019, houve a obrigatoriedade da CBF para que as equipes da Série A criassem os departamentos. Foi então que as grandes camisas brasileiras aumentaram os investimentos e começaram a, efetivamente, tratar a modalidade com profissionalismo.
Em relação ao Brasileirão, por exemplo, apenas a última temporada teve premiação de R$ 1 milhão — nos anos seguintes, os valores eram cinco vezes inferiores. Na comparação com o masculino, são R$ 44 milhões a menos. Além disso, a maioria das partidas teve transmissão apenas por conta dos clubes, sem suporte da CBF ou do veículo detentor de direitos.
— O principal ponto que precisamos evoluir é a estrutura. Junto com ela, vêm outros fatores. É preciso tratar melhor o produto, valorizá-lo. Faz-se necessário transmissões de qualidade de todas as partidas, além de horários melhores para os jogos. Dessa forma será possível valorizar mais a presença de público nos estádios, bem como tornará nosso campeonato acessível para ser assistido por todos. Com isso, você aumenta a visibilidade, o que reflete em patrocínio e receita. Nossa liga tem potencial, mas ainda não conseguimos atingi-lo por completo, falta entender melhor o produto para explorá-lo melhor — avalia a comentarista Amanda Viana, do portal Planeta Futebol Feminino e da DAZN.
Nesta temporada, por exemplo, dois clubes apresentaram problemas de estrutura durante o Brasileirão. O Ceará, rebaixado à Série B no naipe masculino, cortou investimentos com a modalidade feminina e disputou a competição com apenas quatro profissionais, o restante do elenco era composto por meninas de 14 a 17 anos. O Real Ariquemes, por sua vez, negou-se a entrar em campo na última rodada, contra o Santos, e acabou derrotado por WO. O motivo? Mais de dois meses de salários atrasados.
— Falta postura mais eficiente de acompanhamento das competições. Muitos clubes só criam equipes porque é obrigatório para participação em determinado campeonato masculino. Algo que não é justo. Já tivemos diversos exemplos de equipes que disputaram o torneio sem qualquer estrutura, sem dar condições às atletas. Não basta apenas criar, é preciso acompanhar as competições para termos uma evolução — entende a colunista Valéria Possamai, de GZH.
Em 2023, o presidente Ednaldo Rodrigues também confirmou que a ideia da CBF é impor que todos os clubes com divisão nacional mantenham departamento feminino até 2027. Com isso, a promessa é que 124 times tenham equipes femininas em quatro anos.
— Não adianta a CBF impor regras sem dialogar com quem precisa cumpri-las. Investir é importante, mas fazer um trabalho conjunto é crucial para a evolução da modalidade. Ainda não chegamos lá, primeiro pelo atraso, pois ainda estamos correndo contra o tempo, e a falta de entendimento coletivo que o futebol é um organismo com vários players que precisam dialogar também conta muito — afirma a jornalista Belle Suarez, comentarista da CazéTV.
Após a eliminação na Copa, a entidade máxima do futebol brasileiro manifestou-se a respeito da eliminação "precoce" e do resultado "aquém do esperado". De acordo com a CBF, a ideia é aumentar os investimentos visando as Olimpíadas de 2024.
— Teremos agora um ciclo olímpico pela frente e seguiremos dedicados a avançar. Faremos os investimentos necessários para que o Brasil venha nos Jogos Olímpicos, assim como nas próximas competições, com ainda mais apoio em busca dos melhores resultados — afirmou o presidente Ednaldo Rodrigues.
O trabalho de Pia
A treinadora sueca assumiu a Seleção Brasileira em 29 de julho de 2019, com grande expectativa. Bicampeã olímpica à frente dos Estados Unidos, Pia Sundhage era tida como "melhor treinadora do mundo" nas palavras do ex-presidente da CBF Rogério Caboclo.
— Momento histórico, de grande alegria. De trazer a melhor treinadora do mundo para o melhor futebol do mundo. A Pia dispensa apresentações, simplesmente participou das três últimas finais olímpicas. Pia conjuga a qualidade técnica com as jogadores que temos — disse Rogério Caboclo, quando Pia foi anunciada.
Quando apresentada, a técnica abordou os pontos que pretendia modificar para proporcionar uma evolução na Seleção Brasileira. A ideia era implementar o que já tinha feito em Suécia e Estados Unidos.
— Todos falam sobre como o estilo de ataque tem que ser modificado, mas precisamos de equilíbrio. Precisamos tomar conta do estilo de ataque, colocaria a mentalidade americana. Elas jogam não 90 minutos, mas 92 minutos. Apesar do ego grande, são as melhores em equipe. E na Suécia, que é defender a organização. Se eu conseguir trazer o melhor dos Estados Unidos e o melhor da Suécia, diria que vamos ter uma jornada interessante — afirmou Pia, à época.
Ao longo de quatro anos, foram 57 jogos, com 34 vitórias, 13 empates e 10 derrotas. O desempenho teve como destaque o título da Copa América de 2022, ao vencer a Colômbia, e a eliminação nas quartas de final das Olimpíadas de 2020, ao perder para o Canadá.
— No bloco de principais acertos considero o fato de tornar mais profissional o ambiente do futebol na Seleção, incluindo comissão técnica, acompanhamento mais próximo para as jogadoras e planejamento de amistosos. O ciclo do Brasil para Copa do Mundo foi o mais organizado e mais bem planejado que eu já vi desde que acompanho a Seleção. Além disso, as evoluções na parte tática, especialmente na questão defensiva, e na parte física, são notáveis. Outro acerto foi promover a tão sonhada renovação, que veio acompanhada de inúmeros testes nos últimos anos — avalia Amanda Viana.
Desde que assumiu a Seleção, a treinadora oportunizou que muitas gurias vestissem a camisa do Brasil pela primeira vez na categoria principal. Entre elas, 11 estreantes foram convocadas à disputa da Copa do Mundo: a goleira Camila, a lateral Bruninha, as zagueiras Antonia e Lauren, as meio-campistas Ana Vitória, Adriana, Ary Borges e Duda Sampaio, além das atacantes Gabi Nunes, Kerolin e Nycole.
— Vejo muitas jogadoras com potencial de performar em altíssimo nível pelos próximos anos. Isso se deve ao trabalho também nas seleções de base. Minha expectativa é boa, mas precisamos continuar investindo e falando sobre a modalidade. Futebol de mulheres não acontece só em Copa e em Jogos Olímpicos — enfatiza Belle.
Por outro lado, a falta de confiança na própria renovação é um dos pontos negativos no trabalho de Pia. Quando anunciou a convocação para a Copa, a treinadora surpreendeu chamando duas atletas que não participaram do ciclo: a goleira Bárbara e a zagueira Mônica. O motivo foi justamente a experiência.
— A coerência mostrada para renovar o time se transformou em incoerência ao optar por atletas mais experientes saindo do banco ao invés dos nomes da nova geração no Mundial. Creio que faltou acreditar, confiar no processo que a própria treinadora deu início e vinha conduzindo. Outro problema vem na abordagem do jogo ofensivo. Na minha visão, o time tinha, sim, um modelo de jogo definido e apresentava variações. No entanto, creio que faltou solidificar mais essas variações, bem como melhorar execução e eficiência. Olhando novamente para performance no Mundial, acredito que Pia foi muito mal praticamente por completo — complementa Amanda Viana.
Esta Copa foi, também, a primeira sem o trio histórico formado por Cristiane, Formiga e Marta — a única que esteve na Austrália. A primeira, não integrou a lista por opção da treinadora sueca. Enquanto a segunda encerrou seu ciclo com a Seleção em novembro de 2021. Foi com elas que o Brasil conquistou sua melhor campanha em Olimpíada (2004 e 2008, com as pratas) e Copa do Mundo (2007, com o vice).
Pia seguirá no comando?
A CBF ainda não decidiu a respeito da continuidade. A expectativa é que as discussões a respeito se intensifiquem a partir da próxima semana. Os principais cotados, em caso de troca, são: Arthur Elias, atual técnico do Corinthians, e Jonas Urias, treinador da seleção brasileira sub-20.
— Eu vejo vários vieses com relação a permanência ou troca. Vejo as coisas boas de ela ficar e o que temos de mudar. Eu ainda tenho dúvidas — complementa Duda Luizelli, ex-coordenadora de seleções femininas:
— O trabalho dela foi excelente. A nossa Seleção evoluiu muito tanto na zaga, no meio, no ataque. O resultado foi ruim, mas também temos de ver que tem outro time do outro lado, e que o futebol não é uma matemática exata. Por isso, é apaixonante. O trabalho dela, e eu pude acompanhar, e dos meus 32 anos no futebol feminino, não tenho nenhuma dúvida que mesmo saindo de uma Seleção Brasileira, ela é uma das melhores treinadoras do mundo inteiro. E vai continuar sendo.