Toda vez que cruza os portões da Cidade Esportiva Joan Gamper após treinos do Barcelona, Raphinha tem seu carro cercado por garotos ávidos por um autógrafo, uma foto, quem sabe uma camisa. Ele mesmo já foi um destes guris, mas os seus pedidos eram mais prementes.
Filho de um casal de parcos recursos, o atacante nascido na Restinga nem sempre tinha com o que repor as energias após correr na várzea de Porto Alegre. Após nutrir sua fome de bola nos campos carecas, precisava alimentar seu corpo. Ainda suado, sujo e com as cicatrizes do jogo estampadas nas pernas, tentava persuadir desconhecidos a lhe ajudar.
Quando seu carro surge do lado de lá da entrada do CT do Barça, os jovens torcedores inquietam-se com a esperança de terem dali a pouco uma recordação para mostrar aos amigos. A expectativa pode crescer ainda mais quando souberem que a generosidade do atacante da Seleção Brasileira é tão grande quanto a sua qualidade técnica.
— Sempre quando ele manda camisa, manda quatro. Uma para mim, outra para minha esposa e outras duas para meus dois filhos. Quando ele estava no Leeds, nos mandou uma mochila cheia de camisetas — conta Henrique Keiti.
Foi com ele que o jogador de 25 anos começou a sedimentar o seu caminho para os grandes palcos. Aos 14 anos, Raphinha ainda não encontrara um clube profissional que o acolhesse. Apesar da casca ganha perambulando pelos gramados calvos jogando por equipes do seu bairro, seu físico ainda era considerado miúdo pelos avaliadores.
Há 11 anos, o titular de Tite na Copa do Catar foi levado ao CFA, um centro de treinamento em Presidente Prudente. Keiti era um dos professores do projeto localizado no interior paulista. O trabalho de meses resultou em uma chance no Audax. Assim como um gol perdido cara a cara com o goleiro, a esperança virou frustração. Sem conseguir jogar, o garoto procurou um novo rumo que seria o seu verdadeiro início de carreira. À época (2014), o ex-treinador virara diretor técnico do Imbituba e abriu espaço para Raphinha.
A 96 km de Florianópolis, encontrou mais do que os primeiros tijolos da construção de sua carreira. Ganhou um parceiro. Forasteiros em uma cidade com cerca de 40 mil habitantes, os dois ataram laços mantidos firmes até hoje. Mais do que um atacante que acelerava pelas pontas, Keiti encontrou um companheiro. Mais do que um lugar para aumentar seu arsenal de jogadas, Raphinha ingressou em uma espécie de segunda família:
— Ele vinha aqui em casa direto. Ele ia buscar meus filhos na escola. Carregava a caçula nas costas e o outro no chão. Quando nos encontramos, parece que não nos víamos há pouco tempo, tamanho o carinho que temos um pelo outro.
Ao prospectar jogadores, Keiti se deparava sempre com situações semelhantes. Em geral, os atletas de categorias de base possuem dentro de campo uma qualidade marcante. Raphinha apresentava três. Tinha velocidade de sobra para superar os defensores, uma finalização precisa e facilidade para conceder assistências.
Além dos gols no sub-20, o ponteiro gaúcho brilhou nos jogos-treinos contra as equipes reservas dos principais clubes catarinenses. Em uma dessas atividades foi pescado pelo Avaí.
Quem viu o atacante se afirmando em equipes europeias como Rennes, Leeds United e Barcelona não imagina como ele patinou na Ressacada. O crescimento não foi imediato, mas quando alcançado se tornou sustentável. Fominha, tinha vontade de ser escalado em todas as partidas. Teve de conter a ansiedade. Quando se firmou, queria atuar pelo máximo de tempo possível.
— Ele é muito competitivo. Teve um jogo em que ele e um lateral nosso dividiram uma bola com um atacante. O juiz marcou falta e deu amarelo para o Raphinha. Ele ficou indignado porque o amarelo tinha de ser para o companheiro que fez a falta. Eu pedi para ele ficar quieto porque o lateral estava pendurado no jogo e ainda era o primeiro tempo. “Mas é o meu terceiro cartão. Vou ficar de fora do próximo jogo” foi o que ele reclamou para mim — conta Diogo Fernandes, então coordenador da base do Avaí.
Ainda não foi na capital catarinense que o camisa 11 do Brasil no Catar virou profissional. A estreia precisou acontecer além-mar ao despertar o interesse dos dirigentes do Vitória de Guimarães. Com o garoto contratado, entregaram-lhe a Vítor Campelos, técnico da equipe B. A sorte é que em Portugal miúdo tem outro significado.
— Deram-me um miúdo (garoto) com talento e vontade de aprender. Ele tinha o futebol de rua evoluído tecnicamente. Eu seria mentiroso se dissesse que imaginava que ele podia jogar no Brasil ou no Barcelona, mas tínhamos certeza de que iria longe pelo empenho e a entrega que tinha — explica o português.
O trabalho de lapidação consistiu-se, primeiro, em uma adaptação ao novo local, depois à adaptação tática, leitura de espaços, posicionamento do corpo, aprendizado sobre zonas de finalização.
Foi então que sua carreira acompanhou a velocidade com que ele supera os adversários. Menos de um mês depois de seu primeiro jogo, foi lançado no time principal. A última porta para ser um profissional foi aberta por quem conhece o ofício de Raphinha. Sérgio Conceição, hoje no Porto, foi por muitos anos atacante da seleção portuguesa e o trouxe para dividir espaço com o ex-colorado Otavinho e o centroavante Henrique Dourado no elenco de cima.
Depois daqueles 17 minutos contra o Paços Ferreira em março de 2016, Raphinha jogou outras 84 vezes antes de ser vendido ao Rennes, no que é considerada a principal contratação da história moderna do clube. A vida na França foi efêmera. Somente 36 jogos foram suficientes para o Leeds realizar sua sétima transferência mais cara e o levar para a Inglaterra. Este ano, desembarcou no Barcelona.
As transferências do guri miúdo da Restinga já movimentaram 104 milhões de euros. A escadaria rumo ao topo do futebol foi íngreme. Os degraus mais altos foram superados com dedicação, profissionalismo, competitividade e insistência, como todos ressaltam.
Essas características somadas às suas virtudes como atacante deixam não só aqueles torcedores do Barcelona esperançosos, mas também nutrem as expectativas de que em poucos dias a Seleção Brasileira possa ver bordada a sexta estrela em sua camisa.