A Restinga, no extremo sul de Porto Alegre, é berço da nova estrela do futebol brasileiro. Talvez você não o conheça pelo nome da certidão de nascimento, mas Raphael Dias Belloli é o novo reforço do Barcelona. O jogador foi apresentado nesta sexta (15) pelo clube espanhol.
Raphinha, nascido há 25 anos na Capital, se destacou pela Seleção Brasileira nas Eliminatórias. Ele foi o melhor jogador nas partidas contra a Venezuela, Colômbia e Uruguai, marcando dois gols com a amarelinha e sendo o parceiro tão desejado por Neymar, a quem tem como ídolo no futebol.
Mas, até chegar a este momento, considerado o auge para todos os jogadores, o gaúcho teve de driblar, como faz com seus adversários em campo, inúmeros obstáculos que a vida foi lhe impondo. O sucesso que teve no Leeds United, da Premier League, sempre foi algo muito distante para o menino que passou por momentos conturbados até engrenar no futebol internacional.
A começar pela família de origem humilde. Sem muitos recursos financeiros, Lisiane, a mãe, e o pai Rafael, mais conhecido como Maninho, sempre se fizeram muito presentes na vida do filho, assim como Raphinha era presença confirmada nas linhas laterais dos campos da Restinga. Antes de começar a sua carreira, o garoto acompanhava seu pai e seu tio, Dudu, nos torneios da várzea no bairro. O segundo, inclusive, é conhecido na região como um dos grandes craques que tiveram percalços e não conseguiram seguir a carreira profissional.
A linhagem de atletas tinha de onde sair. O avô Osmar Belloli, mais conhecido como Italiano, chegou a ser cobiçado pelo Grêmio na década de 1960, mas optou por seguir outros rumos. Foi na casa dos avôs paternos que a família Dias Bellolli passou grande parte da vida de Raphinha. Foi no Acesso F, 3558, perpendicular ao Campo da Figueira, que o menino viveu do seu nascimento até 2007. Naquela rua, ninguém passava. Os meninos fechavam e faziam os portões das casas como goleiras, os gritos ouvidos das casas eram como se a torcida tivesse presente. Ali, muitos espelhos retrovisores conheceram o chão.
— Ele incomodava muito os vizinhos, né? Era bola para cá, bola para lá, não parava quieto, mas sempre foi um menino muito respeitoso com todo mundo. A gente brincava que ele parecia uma criança adulta, tamanha seriedade — lembrou seu Osmar, em entrevista para GZH em 2021.
Os dribles nos campos da Restinga
Ainda menino, o novo reforço do Barcelona se dividia entre as equipes da Restinga, basicamente como um andarilho do futebol varzeano. Passou no Cobal, time de futebol sete e futsal, comandado por Celso Brum.
Mas as quadras já não eram mais suficientes para o menino. A partir daí, dois times entraram na vida do garoto: o Monte Castelo e o Udinese FC. No primeiro, foi onde viveu sob a tutela de Luis Carlos Vieira Farias, também conhecido como Seu Farias, presidente do clube fundado há 40 anos.
— A gente sempre viu que ele ia ser diferenciado, mesmo quando ainda pequeno, vindo acompanhar o pai e o tio. Era uma batida de bola diferente. A gente disputava os torneios da prefeitura e ele sobrava no meio dos guris — relembra Seu Farias.
Mas foi sob as mãos de Edson Ferreira, técnico do Monte Castelo, que as jogadas de Raphinha ganharam ainda mais proporção, claro, sempre acompanhadas pelos olhos atentos da mãe e do pai, que acordavam cedo nos sábados para levarem o filho e craque da equipe para as partidas.
— A família era muito organizada para que ele se fizesse presente. Ele era um menino muito bom, sempre teve facilidade de fazer amizades, brincalhão, mas quando entrava em campo era outro jogador, disciplinado e com muita objetividade para fazer o gol — disse Edson em 2021, enquanto redesenhava um gol marcado por Raphinha em um dos campos da Restinga, próximo ao supermercado Super Kan, já com mais areia do que a grama verde que por muito tempo ali existiu:
— Ele marcou aqui um gol que eu tenho certeza que foi igual ao que ele fez pela Seleção Brasileira. Veio em velocidade, recebeu a bola e bateu cruzado, sempre foi a característica dele. Nos dá muito orgulho ver alguém da comunidade chegar onde chegou e ter essa gratidão pelas pessoas que o formaram.
A fome de bola, no entanto, trouxe alguns “problemas” para o menino que tentava trilhar seus passos no futebol. Digamos que Raphinha era um jogador que gostava mesmo era da bola. Então, em um dia jogava pelo Monte Castelo, no outro pelo Udinese FC e em um terceiro dia por mais um time, o que por muitas vezes causava risadas entre os familiares. Os campos dos dois primeiros separados por um percurso de pouco mais de cinco minutos a pé pelas ruas de paralelepípedos da Restinga.
O Udinese FC era um projeto social liderado por Marco Aurélio Ribeiro de Melo, primo de Raphinha, que assistia a cerca de 200 crianças na Restinga. Também conhecido como Caco, Marco Aurélio era roupeiro dos sub-17 do Inter. Nas horas vagas, aproveitava a vivência no futebol para tirar as crianças das ruas do bairro da Restinga.
— Com esse projeto, ocupamos parte do tempo desses garotos. Duas vezes na semana, os treinos começavam às 19h, mas às 18h45min, todos tinham que estar à minha espera sentados na calçada. Aos sábados, a atividade começava às 10h e a molecada também tinha que chegar 15 minutos mais cedo. O Raphinha sempre foi o primeiro a chegar e o último a sair, gostava muito de me ajudar a montar as goleiras, arrumar os cones. Ele teve que aprender a conviver com o meio — recordou Caco em 2021, à beira do campo onde por muito tempo viu Raphinha brilhar.
Para fazer parte do grupo, uma exigência tinha que ser cumprida: estar na escola e ter boas notas. E digamos que para o novo reforço do Barça o estudo não era uma das prioridades, apesar do esforço da família para que ele não deixasse o colégio. Mas o futebol era duro. Foram três escolas apenas na época de morador da Restinga.
Por causa da bola, Raphinha precisava adaptar o horário dos estudos com os compromissos do futebol e isso seguiu por algum tempo na carreira do menino. Por vezes, pulava os muros da escola Ildo Meneghetti junto com o primo para jogar bola no campinho ao lado (o que era desconhecido da mãe até bem pouco tempo). Pequeno para a idade, o menino tinha que superar uma parede de concreto de quase 3m para fugir da aula e fazer o que mais gostava (por vezes mais difícil que vencer um zagueiro da Premier League).
Já adolescente, era chegada a hora de dar um passo adiante. Ele tentou a sorte nas escolinhas do Inter, time de coração de seu pai, e também esteve em um projeto piloto na base do Grêmio, de seu grande ídolo Ronaldinho, onde treinou por algum tempo. Acabou preterido em ambos por causa da estatura (hoje, mede 1m75cm), o chamavam de "mirradinho".
Na época de Tricolor, com um orçamento familiar apertado para passar o mês, o garoto às vezes sequer tinha dinheiro para a condução em dias de treino. Dali, foi indicado ao Porto Alegre, clube da família Assis Moreira. Passou o primeiro ano só treinando. No segundo, o clube fechou a base. A partir daí, rodou pela várzea: Sport Sul, da Zona Sul, Academia do Morro, da Vila Maria da Conceição, e E.C 2014, de Viamão. A cada passo errado, a frustração crescia em Raphinha.
— Nos doía muito ver ele daquele jeito, mas a gente tinha de se mostrar forte para ele continuar acreditando no sonho de ser jogador de futebol. Mas lá dentro do peito, eu chorava por ele também — confidenciou Lisiane Dias, mãe do camisa 10 do Leeds United.
Foi naquele momento que o empresário João Paulo Tardim o viu em ação e o levou para o Audax-SP. Em São Paulo, Raphinha concluiu o primeiro grau. Ali, vivia pela primeira vez a distância da família, o que deixava o coração da mãe ainda mais apertado.
— Em um Natal, liguei para ele e perguntei “O que está fazendo, meu filho?”. E ele me respondeu: “Estou eu e mais um amigo aqui no dormitório sozinhos, vendo os fogos”, ali ele tinha certeza do sonho dele — recorda a mãe, que admite que quando desligava o telefone e chorava sozinha.
O jogador até foi bem em São Paulo, mas Abílio Diniz, dono do Grupo Pão de Açúcar, vendeu o clube, e a volta para a Restinga aconteceu. Aos 17 anos, Raphinha via seu tempo de tentar a sorte como jogador se aproximar do fim. Tardim apresentou a oferta do Imbituba. Era para a segunda divisão catarinense, no sub-20. Topou, como uma última cartada em busca do sonho. O Avaí o viu em ação e levou-o para a Ressacada.
Mais perto da família, a pouco mais de 400km de Porto Alegre, a felicidade voltou. Um ano depois, já figurava no banco de reservas no Brasileirão 2015, promovido pelo técnico Gilson Kleina. Desceu para os juniores para jogar as Copas Ipiranga e São Paulo. Foi quando chamou a atenção de Deco, luso-brasileiro e ex-jogador de Barcelona, Chelsea e Porto, que decidiu agenciá-lo.
A hora de voar por campos internacionais
Pelas mãos do ex-meia e facilitado pelo passaporte italiano, foi levado para Portugal, onde defendeu o Vitória de Guimarães. Na cidade a 353 quilômetros de Lisboa, o brasileiro voltou a ficar frustrado por não ser escalado pelo treinador, mas mais uma vez resistiu à distância da família e se manteve firme no continente europeu. A persistência deu resultado de novo. A partir dali, a carreira tomou o rumo que ele e seus familiares esperavam. A afirmação, no entanto, só veio na temporada 2017/2018. Fez 18 gols em 43 jogos na temporada de 2017/2018 e, pouco antes da Copa da Rússia, o telefone tocou.
A pedido de Jorge Jesus, ex-técnico do Flamengo, Raphinha foi contratado pelo Sporting Lisboa por 6,5 milhões de euros. Depois de 41 jogos e nove gols, o gaúcho trocou Lisboa por Rennes em uma negociação de 20 milhões de euros (cerca de R$ 95,5 milhões na cotação da época) para jogar no time da cidade. Com moradia fixada na Europa e com mais condições financeiras, o jogador passou a conseguir levar seus familiares para o Velho Continente. De três em três meses, um parente o visita. Um deles foi o primo Leonardo Pereira, de 26 anos, com quem Raphinha trocava mensagens quase que diariamente.
— Fiquei com ele por três meses na França. Ele me levou para conhecer Paris. Fora de campo, é um cara muito tranquilo. A gente ficou em casa, vendo Netflix e jogando videogame. É um cara que pensa muito na família. Muito profissional. Tenho ele como um irmão — contou a GZH em 2021.
Não demorou para que os familiares de Raphinha tivessem que conhecer outro país da Europa. Depois de um ano pertinho da Torre Eiffel, o meia-atacante chamou a atenção do técnico argentino Marcelo Bielsa, sendo contratado pelo Leeds United, atual clube. Em outubro de 2020, os ingleses desembolsaram R$ 123 milhões (17 milhões de libras) para contarem com o futebol do brasileiro. Em sua estreia como titular da equipe, no empate contra o Arsenal, o gaúcho mostrou suas ferramentas e foi eleito o melhor em campo pelos torcedores da equipe inglesa.
Toda a sua trajetória na Europa fez com que os olhos de Tite e da comissão técnica da Seleção Brasileira se voltassem para o menino da Restinga. Demorou, mas aos 24 anos, foi chamado para vestir a amarelinha pela primeira vez em agosto de 2021, mas ficou de fora daquela Data Fifa em virtude da não liberação dos jogadores pela Liga Inglesa.
Mais uma vez a frustração apareceu na vida de Raphinha, mas ele não desistiu. De novo. Voltou a ser chamado e mostrou que tem totais condições de ser o companheiro de Neymar em busca do hexa, no Catar.
Por muito pouco, o gaúcho não repetiu Deco, Jorginho, Emerson Palmieri, Diego Costa e outros atletas que preferiram defender outras seleções por falta de oportunidades no Brasil. Como tem passaporte italiano, ele chegou a ser monitorado pela Itália, mas preferiu esperar um chamado brasileiro, o que acabou acontecendo nesta temporada. Como sua característica dentro do campo, Raphinha soube driblar as adversidades da vida para realizar o sonho de muitos meninos: jogar na Europa e representar o seu país.
Raphinha nunca esqueceu a comunidade onde nasceu. Depois de marcar os dois gols contra o Uruguai no começo de outubro sob os olhares dos pais e dos padrinhos e madrinhas na Arena Amazônia, fez questão de mencionar o bairro onde deu os primeiros passos no futebol.
— Vai ser complicado dormir hoje, não precisava acabar nunca essa noite. O mais importante é representar a minha comunidade (Restinga) — disse ao sair do gramado para a TV Globo.
A lembrança não fica só nas palavras, junto com o seu patrocinador de material esportivo, o jovem fez doações a projetos sociais do bairro. Sempre que consegue vir ao Brasil, aproveita para conhecer a meninada que hoje o tem como exemplo, sempre os motivando a nunca desistir. Afinal de contas, um “novo Raphinha” pode nascer do areião da Restinga.