Com a aprovação da atualização da Lei de Cotas no Senado, na última terça-feira (24), as universidades federais gaúchas se preparam para se adaptar às modificações. Docentes e entidades ligadas à educação acreditam que a nova legislação deve ser sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos próximos dias. O projeto de lei (PL 5.384/2020) reformula e amplia o sistema de cotas no ensino federal.
A proposta prevê que os candidatos cotistas passem a concorrer também nas vagas gerais e, apenas se não conseguirem nota para ingresso, concorrerão às vagas reservadas. O projeto também altera critérios socioeconômicos e inclui os quilombolas entre os beneficiados pela reserva de vagas, que já contempla pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência. Além dessas mudanças, o PL ainda prevê que os cotistas tenham prioridade no recebimento de bolsas e auxílio estudantil.
Atualmente, nas universidades federais do Rio Grande do Sul, os estudantes cotistas não têm prioridade na requisição de bolsas, concorrendo com os demais alunos de baixa renda matriculados. Todas as instituições atendem ao Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), que garante auxílios pagos pelas universidades a alunos de baixa renda, com verbas repassadas pelo governo federal.
Vidas marcadas pelas ações afirmativas
Niara Dy Luz afirma que, sem os auxílios, não teria conseguido permanecer na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A aluna do 4º semestre do curso de Saúde Coletiva ingressou em 2021 através das cotas raciais, sendo que hoje é uma das protagonistas do movimento estudantil na universidade, lutando pela garantia dos direitos de cotistas.
— Fui a primeira pessoa da minha família a entrar em uma universidade. Eu vim de uma origem humilde, então, anos atrás, eu nem sonhava em entrar no Ensino Superior. As cotas permitiram que a gente sonhasse com isso, e a educação transformou a minha vida — relata. A estudante de 25 anos é a primeira mulher trans a ser eleita vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) no Rio Grande do Sul, e tem o sonho de se tornar sanitarista.
Para Anna Thereza Graciliano, 22 anos, a descoberta sobre as cotas foi tardia. Oriunda da Vila Cruzeiro, em Porto Alegre, a estudante do 8º semestre de Psicologia na UFRGS descobriu essa oportunidade quando estava no último ano do Ensino Médio. Ela ouviu falar sobre a política pública a partir de um cursinho popular que fez quando estava se preparando para o vestibular, em 2019.
— É uma informação que não veio da escola pública, do ensino regular. Eu nem sabia dessa possibilidade, achava que tinha que pagar para fazer faculdade, assim como a maioria dos meus colegas. Se você chegar na vila e falar em universidade, todo mundo já acha que precisa pagar, que é privada, por ser algo a que poucas pessoas têm acesso. Eu tinha esse senso comum — conta.
Mãe de um menino de seis anos, a jovem também desfruta de benefícios da instituição, como auxílio-creche, mas relata que sentiu falta de acolhimento ao longo dos últimos anos, principalmente por parte dos professores e colegas na universidade, por ter pouquíssimos colegas e professores negros. Niara sente o mesmo, e destaca que a saúde mental é uma grande preocupação, quando se trata de alunos cotistas.
— Hoje, a gente tem a possibilidade de entrar na universidade, mas nem todos conseguem permanecer. Continuo vendo colegas entrando e saindo, com o passar do semestre, por não conseguirem conciliar os estudos com a jornada de trabalho, ou pela falta de acolhimento. Faz falta uma política de acompanhamento de saúde mental — argumenta Niara.
No ano passado, a Lei de Cotas completou dez anos. Apesar dos avanços, vem caindo o número de ingressantes cotistas nas federais, no Rio Grande do Sul e no Brasil, como um todo, conforme mostra o Censo da Educação Superior de 2022, divulgado neste mês pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Entenda, a seguir, os programas de assistência estudantil promovidos em cada universidade gaúcha.
Iniciativas na UFRGS
Desde 2008, a UFRGS tem um programa próprio de reserva de vagas para egressos de escolas públicas e autodeclarados negros. Em 2018, foi criado um grupo responsável por entrevistar os candidatos para essas vagas, a comissão de heteroidentificação, medida que busca evitar fraudes. No que tange a permanência, a instituição oferece diversos auxílios dentro do Programa de Benefícios da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE).
Acompanhamento pedagógico, isenção do restaurante universitário, auxílio-creche e auxílio-transporte estão entre os benefícios de permanência ofertados aos alunos aprovados na avaliação socioeconômica. Em 2012, a UFRGS criou a Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas (CAF), para mapear os resultados do trabalho e pensar em iniciativas de permanência desses alunos.
O sociólogo Edilson Nabarro, que coordena o grupo, avalia como positivas as mudanças na Lei de Cotas.
— A UFRGS sempre teve forte adesão a essas medidas. Com a promulgação da nova lei, é importante que tenhamos novos indicadores para medir o impacto anual dessas políticas em âmbito nacional — destaca.
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
A UFSM iniciou em 2007 um programa próprio para ampliar o acesso de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência. Nos últimos anos, foram criadas também cotas específicas para quilombolas e pessoas trans. No que se refere à permanência, um dos principais diferenciais promovidos é a Casa do Estudante Indígena, inaugurada em 2018.
O pró-reitor de graduação da UFSM, Jerônimo Siqueira Tybusch, explica que 50% das vagas ofertadas na instituição são para cotistas. No entanto, nem sempre esse quantitativo é preenchido completamente por estes estudantes. Com isso, as vagas migram para a ampla concorrência.
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA)
A UFCSPA oferece várias modalidades de auxílio estudantil aos alunos dentro do PNAES, como auxílio-alimentação, auxílio-moradia, auxílio-permanência e transporte. Confira a nota enviada pela instituição:
A UFCSPA ocupa, no ano de 2023, 28,96% de suas vagas com alunos oriundos de oito modalidades de cotas para ingresso em cursos de graduação, que variam entre estudantes de oriundos de escola pública, negros e pardos, portadores de deficiências e combinações entre estas modalidades. Estes estudantes têm acesso às mesmas modalidades de assistência estudantil que os ingressantes por acesso universal. Para ter direito aos benefícios, os alunos devem passar por análise socioeconômica, sendo o critério renda per capita, definido pelo decreto 7.234/2010 (PNAES). A UFCSPA considera que as cotas são um instrumento de inclusão e democratização do acesso ao ensino em nível superior.
Universidade Federal de Rio Grande (Furg)
Além de garantir os benefícios básicos previstos pelo PNAES, a Furg informa que oferece programas de bolsas específicos, como o Programa de Apoio aos Estudantes com Necessidades Específicas, voltado para pessoas com deficiência, e o Programa de Apoio aos Estudantes Indígenas e Quilombolas.
Os estudantes também contam com atendimento psiquiátrico gratuito, exclusivo para alunos que habitam nas moradias estudantis da Furg. O serviço é realizado em parceria com a Faculdade de Medicina da Furg, o Centro Regional de Estudos, Prevenção e Recuperação de Dependentes Químicos, e a Diretoria de Atenção à Saúde.
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)
Segundo o diretor de registro da UFFS, Maiquel Tesser, a maioria dos estudantes da instituição são oriundos de escolas públicas, ocupando cerca de 85% a 90% das vagas. A universidade conta com três campi no Rio Grande do Sul, em Cerro Largo, Erechim e Passo Fundo, além de unidades no Paraná e em Santa Catarina.
A UFFS oferece benefícios básicos, como auxílio-ingresso, transporte, moradia e alimentação. O diretor relata que alguns cursos estão com baixa demanda. — Historicamente, a UFFS tem se utilizado de processos seletivos complementares, por conta da ociosidade, para preencher as vagas não ocupadas pelo Sisu — afirma.
Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
Em nota, a UFPel informa que conta com uma série de auxílios e bolsas para apoiar os alunos cotistas. A Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis oferece, via PNAES, programas de auxílio estudantil voltados para a alimentação, o transporte, a moradia e o apoio ao estudo (deslocamento e pré-escolar). Contudo, a universidade tem registrado baixa ocupação de vagas nos processos seletivos regulares.
Uma das iniciativas lançadas para contornar o problema é o lançamento do Programa de Permanência e Qualidade Acadêmica (PROPEQ), em 2018. A criação de um setor de dados acadêmicos e da Comissão para a constituição e atualização da base de dados permitiu uma análise mais precisa dos indicadores de ocupação de vagas, evasão e diplomação, orientando a tomada de decisões. Confira um trecho da nota enviada pela instituição:
A universidade tem se esforçado para qualificar, diversificar e flexibilizar os cursos, além de incentivar a oferta de cursos noturnos. As ações do PROPEQ têm gerado resultados positivos, incluindo um aumento no número de inscritos nos processos seletivos, maior interesse dos docentes em participar de formações pedagógicas e alterações curriculares que tornam os cursos mais flexíveis e alinhados com as demandas atuais.
A UFPel está comprometida em enfrentar os desafios do acesso, permanência e formação dos alunos cotistas, promovendo a igualdade de oportunidades e o sucesso acadêmico de todos os seus estudantes. A universidade reconhece a importância de ações como as do PROPEQ para enfrentar as complexas questões que afetam a Educação Superior no Brasil.
Universidade Federal do Pampa (Unipampa)
Em nota, a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e Comunitários da Unipampa informa as ações já desenvolvidas, incluindo ações específicas para apoiar alunos indígenas e quilombolas:
A Universidade Federal do Pampa disponibiliza programas de permanência para auxiliar financeiramente os alunos que se enquadram nos critérios estabelecidos. São eles o Plano de Permanência (PP) e o Plano de Apoio à Permanência Indígena e Quilombola (PAPIQ) e o Auxílio de Desenvolvimento Acadêmico Indígena e Quilombola (ADAIQ).
O PP destina-se aos estudantes com renda familiar per capita de até 1,5 salários mínimos e oferece auxílio nas áreas de alimentação, moradia, transporte e creche. Os valores mensais variam de R$ 90 a R$ 555. Já o PAPIQ é direcionado aos estudantes indígenas e quilombolas, com acesso facilitado aos programas de permanência. Os auxílios mensais variam de R$ 90 a R$ 1.005.
Os alunos beneficiados por ambos os programas têm direito a almoço e jantar gratuitos nos restaurantes universitários da Unipampa. Além disso, podem solicitar vaga nas moradias estudantis dos campi Dom Pedrito, Jaguarão e Santana do Livramento.