Ano após ano, a Lei de Cotas foi dando outro perfil ao Ensino Superior brasileiro. São mais estudantes de baixa renda, negros, indígenas e pessoas com deficiência circulando pelos corredores das universidades federais. Além do histórico parecido — todos são oriundos de escolas públicas —, eles têm, em comum, uma trajetória de poucas oportunidades e muitas limitações. Leia, abaixo, histórias de quatro pessoas que foram contempladas pela lei 12.711, que completa 10 anos.
"O ensino é elitizado"
Lucas da Silva Barcelos Pinto, 27 anos, cotista de baixa renda da UFRGS
Lucas da Silva Barcelos Pinto sofreu um baque quando foi demitido de uma loja de informática. Ele tinha 23 anos e seu currículo só exibia o Ensino Médio completo em uma escola pública de Porto Alegre. Bateu o medo de que, com aquele nível de escolaridade, não fosse conseguir nada melhor do que o emprego que havia perdido. Se quisesse prosperar, concluiu ele, precisaria de mais um diploma.
Conseguiu um bico de garçom e usou o dinheiro da rescisão para pagar um cursinho preparatório para o vestibular. Dedicado, foi aprovado no curso de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Filho de um chapeador de carros aposentado e de uma balconista de farmácia, ambos com Ensino Fundamental incompleto, Lucas entrou na vaga de cotista de baixa renda, destinada a quem pertence a famílias cujos proventos não passam de um salário mínimo e meio por pessoa.
Na busca pela identidade profissional, acabou mudando de rota — hoje cursa Publicidade e Propaganda na UFRGS —, mas já teve algumas conquistas. Aos 27 anos, Lucas trabalha a distância para uma agência de conteúdo de São Paulo. Saiu da casa da mãe, no bairro Belém Novo, zona sul da Capital, para morar sozinho em um apartamento de 18 metros quadrados no Centro Histórico, com aluguel pago com o próprio salário.
O imóvel fica próximo ao restaurante universitário (RU) da universidade, onde almoça e janta de graça todos os dias, benefício concedido a cotistas de baixa renda. Apesar da satisfação em estudar em uma instituição reconhecida como a UFRGS, sente um choque de realidade toda vez que fala com os colegas sobre a vida pessoal.
— Tenho colegas com dinheiro, gente que vai com carrão para a aula, que mora sozinho porque os pais pagam o aluguel. Chega o final de semana e alguns colegas falam: “Vamos para a festa tal, a balada tal, com ingresso de R$ 60”. Com R$ 60, eu compro comida para o final de semana inteiro — reflete.
Tem grande afinidade com o irmão, Guilherme, de quem é colega de curso na UFRGS. Aos 25 anos, o caçula também é cotista de baixa renda, mas ainda está lutando pela própria independência — ganha dinheiro vendendo doces nos corredores da universidade. Quando formados, serão os primeiros, pela parte da família da mãe, a ostentar um diploma de Ensino Superior.
Pelo desejo de Guilherme, as universidades teriam mais pessoas como eles, jovens que tiveram nas cotas uma oportunidade:
— As universidades públicas deveriam ser compostas por pessoas que precisam, que não têm condições de pagar por uma universidade privada. Mesmo com as cotas, o ensino, no meu ponto de vista, é elitizado.
"Tu te sente um intruso”
Antônio Augusto Firmo Tietböhl, 19 anos, cotista negro da UFCSPA
Os versos da música Um Dia de Injúria, do cantor Amiri, foram lembrados com frequência pelo estudante Antônio Augusto Firmo Tietböhl, 19 anos, nos primeiros dias na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Prestes a iniciar o segundo semestre do curso de Gastronomia, o jovem conta que ele e o irmão foram os primeiros da família a ingressarem no Ensino Superior. A conquista veio pelo desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que possibilitou entrar na reserva de quase 5% das vagas a candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas que, independentemente da renda, tenham feito integralmente o Ensino Médio em escolas públicas.
Augusto sempre foi incentivado pela família a estudar. O pai não completou o Ensino Fundamental e é dono de um bar. Já a mãe é empregada doméstica e concluiu o Ensino Médio. Morando nas proximidades da Vila Cruzeiro, em Porto Alegre, o estudante explica que sua trajetória ainda é uma exceção dentro da comunidade.
— Eu tinha quatro amigos quando era criança. Com 12 anos, tive uma escolha. Meus pais sempre me falaram que eu tinha que fazer o correto (...). Dá para ver que o caminho que alguns se deixaram levar foi bem ruim. Tive um amigo que faleceu, outro que está preso, outro que é viciado. Eu sei que houve um livramento para mim.
Augusto diz que seu círculo social é formado, em maioria, por pessoas negras, mas que na faculdade o contexto é outro. Ele desabafa que a falta de representatividade dentro da universidade é desanimadora, porque há poucos colegas e professores negros.
— Tu te sente um intruso, basicamente. A gente anda por aqui e as únicas pessoas negras que vê são funcionários. Aqui predomina a elite, ninguém é favelado (...). O que recorri foi conversar com uma professora (que é negra) e me firmar nas minhas raízes. Saber onde eu estou. Querendo ou não, é uma oportunidade — relata.
A presença pouca expressiva de negros no setor gastronômico também motivou o jovem a querer mudar o futuro. Augusto diz que percebe poucos chefs pretos no Rio Grande do Sul e sonha em seguir os passos do pai abrindo um estabelecimento e ajudando a mãe a reformar a casa.
— Precisamos ter informação para que as outras pessoas saibam que não estão sozinhas.
A professora Monica de Oliveira, que coordena a Comissão de Heteroidentificação e está no grupo de nove docentes negros da UFCSPA, reconhece que há um desafio na inclusão de alunos negros e pardos, principalmente com o distanciamento social que houve na pandemia. No entanto, ela salienta que estão programadas novas ações para os próximos meses, como a atuação do coletivo negro da universidade e de grupos de estudo que se reúnem para debater essas questões.
"Medicina sempre foi um sonho, mas não era uma realidade"
Laura Feliciana Paulo, 29 anos, cotista indígena, a primeira a se formar em Medicina na UFSM
A família Paulo foi transformada pela Lei de Cotas. Filhas de uma professora e de um pastor de origem indígena, da etnia Terena, as irmãs Laura Feliciana Paulo, 29 anos, e Larissa Emile Paulo, 27, foram as primeiras formadas na universidade. Elas deixaram as raízes no Mato Grosso do Sul para cursar Medicina na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Hoje, são médicas e atuam em Campo Grande.
Graduada em dezembro de 2016, Laura foi a primeira indígena a se formar em Medicina pela UFSM. Depois disso, voltou para seu Estado, onde fez especialização em cirurgia geral. Desde abril, atua em um hospital do Exército como militar temporária. Mais do que realizar o sonho de ser médica, as cotas abriram uma porta que até então era inédita para seus familiares: o acesso ao Ensino Superior.
— Medicina sempre foi um sonho, mas não era uma realidade. Não tinha condições de pagar um cursinho. Fui - de ambos lados da família, do meu pai, que veio da aldeia, e da minha mãe, da favela de São Paulo - a primeira a entrar na faculdade. Graças ao sistema de cotas — frisa Laura.
Larissa formou-se dois anos depois, em 2018. Assim como a irmã mais velha, voltou para o Mato Grosso do Sul após a conclusão do curso. Atualmente, faz residência em clínica médica em Campo Grande.
"Não consigo competir de igual para igual com todo mundo"
Patrick Schnvendler, 24 anos, cotista com deficiência da Furg
Patrick Schnvendler ingressou na Universidade Federal do Rio Grande (Furg) em 2017 por dois motivos: recomendação da irmã, que já estudava na instituição, e pelo fato da Furg ser uma das poucas instituições que já ofereciam a cota para pessoas com deficiência. Patrick tem uma limitação que afeta a coordenação motora e dificulta a leitura e a escrita.
— A política das cotas faz toda a diferença. Algumas pessoas não entendem isso. Nem todas as pessoas têm as mesmas oportunidades, os mesmos privilégios, as mesmas circunstâncias de estudo, de capacitação — afirma o estudante do curso de bacharelado em Química.
Com 24 anos, Patrick, que é paulista, encarou o desafio de viajar até o sul do Rio Grande do Sul em busca do sonho. Na universidade, ele encontrou condições favoráveis à permanência. Ele conta com apoio de um bolsista da instituição para auxiliar nos estudos.
— Meu ritmo de estudo é mais lento do que as pessoas que não têm a mesma deficiência. Eu não consigo competir de igual para igual com todo mundo. A política das cotas é algo necessário — complementa.
Patrick planeja conquistar o diploma no ano que vem. A ideia é seguir na área acadêmica e cursar mestrado e doutorado. Embora os planos ainda sejam incertos, o estudante pensa na possibilidade de ser professor.