A Lei de Cotas completa 10 anos como um marco no acesso ao Ensino Superior, garantindo metade das vagas nas universidades e institutos federais para quem estudou em escolas públicas, com reserva para pessoas de baixa renda, negros, indígenas e pessoas com deficiência. Conforme seu texto original, deveria sofrer uma revisão até o final de agosto deste ano, mas ela ficou para depois.
Sem o cumprimento deste prazo legal, nada mudará no programa de ações afirmativas, conforme especialistas ouvidos por GZH. No Congresso Nacional, tramitam mais de 70 propostas sugerindo modificações na lei, sendo que 31 preveem a restrição das cotas. A expectativa é de que o tema seja retomado somente após as eleições de outubro.
Um dos diretores da Associação Brasileira de Pesquisadores e Pesquisadoras Negros (ABPN), Delton Aparecido Felipe critica o fato de que metade das propostas dos parlamentares busca limitar as cotas a estudantes de escolas públicas, sem o recorte racial.
— O problema de uma revisão da Lei de Cotas é o contexto em que vivemos, em que o governo federal e parte dos congressistas entende que as cotas não deveriam ser aplicadas à população negra. Temos de lembrar que, entre os objetivos da lei, está o combate ao racismo e, consequentemente, alcançar a redução das desigualdades sociais — pondera Felipe, que é professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Coordenadora do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União (DPU), Rita Cristina de Oliveira lembra que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana Contra o Racismo, que estabelece a aplicação de políticas afirmativas em caráter temporário. No entanto, segundo ela, os indicadores mostram que há um longo caminho a percorrer até que as cotas não sejam mais necessárias.
— Tivemos um aumento expressivo de estudantes cotistas nesses 10 anos. Não temos, no entanto, um aumento suficiente para dizer que a desigualdade de acesso foi superada — reforça.
O que mudou em 10 anos
Em 2010, quando ainda não havia a Lei de Cotas no Brasil e algumas universidades federais tinham seus próprios programas de reserva de vagas, 90% dos estudantes entravam por ampla concorrência e apenas 10% pelas ações afirmativas. Em 2019, com a vigência da lei, o ingresso por ampla concorrência caiu para 61% e, pela reserva de vagas, subiu para 39%.
Os dados são da pesquisa Avaliação das políticas de ação afirmativa no Ensino Superior no Brasil: resultados e desafios futuros, realizada pela ONG Ação Afirmativa em parceria com o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que se baseou no Censo da Educação Superior.
Precisamos de mais investimentos, principalmente para que a gente possa dar conta da permanência dos estudantes."
SIBELE DA ROCHA MARTINS
Pró-reitora de graduação da Furg
Na avaliação da educadora Denise Carreira, coordenadora institucional da ONG e uma das responsáveis pela coordenação da pesquisa, o principal benefício da lei foi implementar a reserva de vagas com o recorte racial:
— Antes de 2010, havia pouca reserva de vagas para negros. A maioria das ações afirmativas das universidades era destinada a alunos de escolas públicas. Somente em 2012, com a Lei de Cotas, começamos a observar maior entrada de estudantes pretos e pardos.
Considerando o período entre 2013 e 2019, a pesquisa mostra que houve um aumento de 205% no ingresso do tipo de estudante tido como mais vulnerável: aquele que, além de ser egresso de escola pública, é negro ou indígena e pertencente a família de baixa renda. Já a participação dos egressos de escolas públicas e integrantes de famílias de baixa renda, sem recorte racial, aumentou 105%. As taxas de evasão têm pouca diferença: 10% dos não cotistas abandonaram os estudos superiores nos anos iniciais, enquanto o índice de desistência dos cotistas é de 9%.
Desempenho acadêmico
O desempenho acadêmico dos cotistas é um argumento da parte dos opositores da lei que alega que os estudantes não teriam o conhecimento necessário para acompanhar as aulas das universidades federais. Segundo o pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Adriano Senkevics, essa hipótese não se confirmou.
— De fato, os cotistas entram com uma nota um pouco mais baixa, o que é natural, porque o objetivo da cota é possibilitar que aquela pessoa ingresse. Ao longo do curso, as trajetórias convergem e cotistas e não cotistas vão terminar o curso com notas similares — salienta Senkevics.
O desafio de permanecer na universidade
Além de dar acesso ao Ensino Superior, é importante que a lei, se for revista, garanta que o cotista tenha como custear a alimentação, o transporte e o material para conseguir dar sequência aos estudos, observa Wilson Mesquita de Almeida, professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC e especialista em Ensino Superior no Brasil.
— A política de acesso deve ser pensada junto com a de permanência. Não se pode deixar o aluno de baixa renda que entrou em Medicina na UFRGS ir embora, porque ele vai mudar a família dele, a irmãzinha vai querer estudar. Ao mesmo tempo, é um prejuízo financeiro e de geração, porque ele não vai trabalhar, não vai ter produtividade para o país — explica.
A pandemia e a redução de recursos destinados ao Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), que oferece assistência a estudantes de baixa renda, como moradia, transporte e alimentação, são fatores que impactam na permanência dos cotistas, lamenta a presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Bruna Brelaz:
— Há muita dificuldade em fazer com que esses estudantes permaneçam no Ensino Superior porque os subsídios que eram dados estão sendo cortados e eliminados do orçamento, e isso nos preocupa bastante.
A Lei de Cotas nas Universidades Federais do Rio Grande do Sul
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Nos 10 anos da Lei de Cotas, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) formou 3.601 cotistas. Destes, 1.118 se identificavam como pretos, pardos e indígenas (31%). Atualmente, 7.475 alunos com matrícula ativa na instituição são cotistas, sendo que 2.428 se identificam como pretos, pardos e indígenas (32,4%).
Desde 2008, a UFRGS tem, por iniciativa própria, reserva de vagas para egressos de escolas públicas e autodeclarados negros. Em 2018, foi criada uma comissão para entrevistar os candidatos para essas vagas, uma medida que busca evitar fraudes.
Na avaliação do coordenador da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas (CAF) da UFRGS, o sociólogo Edilson Nabarro, o receio de especialistas em educação é que a revisão da lei encerre a oferta de vagas destinadas a negros e indígenas, pauta de quem defende que as cotas sejam somente para estudantes de escolas públicas, sem o recorte racial.
— Aí teríamos um retrocesso da presença de pretos e pardos nas universidades públicas. Não há dúvida de que o perfil das universidades mudou. A diversidade aumentou e é esse o objetivo da implantação de medidas compensatórias, reparadoras. Não podemos tratar como iguais os que vivem em desigualdade — pondera.
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA)
Após a Lei de Cotas, 326 alunos de ações afirmativas se formaram na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Atualmente, a faculdade conta com 988 estudantes cotistas matriculados.
A política de acesso deve ser pensada junto com a de permanência. Não se pode deixar o aluno de baixa renda que entrou em Medicina na UFRGS ir embora, porque ele vai mudar a família dele, a irmãzinha vai querer estudar.
WILSON MESQUITA DE ALMEIDA
Professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC
O acolhimento destes acadêmicos é um desafio, de acordo com a professora Monica de Oliveira, que coordena, dentro da UFCSPA, a Comissão de Heteroidentificação para verificar os requisitos das cotas e promover formações a professores e funcionários.
Monica faz parte do grupo de nove docentes que se autodeclaram negros ou pardos no quadro de 387 professores da instituição. Um aluno negro, 34 anos, que é cotista e não quis se identificar, contou a GZH que ainda sente falta de representatividade:
— A universidade praticamente não tem professores negros, é difícil se enxergar como parte da UFCSPA dessa forma. Os negros são vistos como extraterrestres lá dentro. Eles falam em um projeto de acolhimento de alunos negros, fazem algumas palestras no início do semestre, porém, depois não é feita uma manutenção disso, sabe?
A professora Monica reconhece que a pandemia foi um problema para seguir nesse trabalho de acolhimento porque as atividades presenciais só foram retomadas em maio deste ano. No entanto, ela salienta que estão programadas novas ações para os próximos meses, como a atuação do coletivo negro da universidade e de grupos de estudo que se reúnem para debater essas questões.
— Sabemos que existe um racismo estrutural, mas há um envolvimento para que ações sejam desencadeadas e se entenda que esse aluno seja respeitado. Cota não é esmola — enfatiza.
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)
Com três campi no Rio Grande do Sul, a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) formou 1.164 estudantes cotistas desde a implantação da lei, em 2013. Foram 550 no Campus Cerro Largo, 503 no de Erechim e 111 no de Passo Fundo.
Conforme o diretor de registro da UFFS, Maiquel Tesser, a maioria dos estudantes da instituição já vem da escola pública, ocupando cerca de 85% a 90% das vagas. No Rio Grande do Sul, são 2.117 alunos cotistas e 976 não cotistas estudando nos 20 cursos disponíveis atualmente.
— Temos dificuldades em conseguir preencher as vagas de autodeclarados, com exceção dos cursos mais procurados. A instituição também teve que passar por um processo de readaptação para receber pessoas com deficiência — avalia Tesser.
O diretor ainda destaca a comprovação de renda exigida pela legislação como uma dificuldade encontrada na hora da matrícula:
— A renda é complexa, por exemplo, para o servidor público é uma coisa, o agricultor é outra, o assalariado, o microempreendedor... as universidades tiveram que criar as suas normas internas para coibir fraudes.
Universidade Federal do Pampa (Unipampa)
Aproximadamente 34% das matrículas ativas na Universidade Federal do Pampa (Unipampa) são de cotistas. O dado pode variar para mais, já que apenas a partir de 2017 o sistema da universidade passou a oferecer o campo para registro da modalidade de ingresso no momento da matrícula. O problema também impede que se chegue ao número exato de cotistas graduados na universidade desde o início da sua fundação, em 2008. A estimativa é de que pelo menos 942 cotistas tenham se diplomado entre 2017 e 2021, o que representa 17,9% dos graduados nesse período.
Com 10 campi espalhados pela Campanha, Fronteira Oeste e sul do Estado, a Unipampa também criou, em 2019, via resolução própria, outras duas reservas de vagas para autodeclarados negros e pessoas com deficiência, independentemente de serem oriundos de escola pública. No mesmo ano, uma comissão foi formada para evitar fraudes entre os cotistas, realizando entrevistas e avaliações.
Segundo a assessora para Ações Afirmativas, Diversidade e Inclusão do Gabinete do Reitor da Unipampa, Marta Camargo, é importante que as instituições garantam que as cotas sejam destinadas a quem realmente precisa, para que a validade da política pública não seja posta em questionamento.
— A comissão de verificação é importante porque checa se a pessoa de fato se enquadra. Infelizmente, temos estudos que mostram que parcela dos autodeclarados negros não era signatária das políticas de cotas — diz.
Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
Além de cumprir o seu papel, a Lei de Cotas provocou uma revolução nas universidades federais. É esse o entendimento da coordenadora de Diversidade e Inclusão da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Airi Sacco. Atualmente, dos 18.513 estudantes matriculados na instituição, 8.212 são cotistas. A universidade reserva 50% das vagas para as cotas, como determina a lei, e também promove processos seletivos específicos para indígenas e quilombolas. O percentual reservado é ainda maior pelo Programa de Avaliação da Vida Escolar (Pave). O candidato inscrito no programa realiza uma prova ao final de cada ano do Ensino Médio. Neste processo, a reserva de vagas chega a 90%.
— A universidade, se a gente pensar em termos históricos, sempre foi uma fotografia bastante fiel da desigualdade racial no nosso país. Temos uma maioria da população negra, mas quem ocupa os espaços de poder são as pessoas brancas. E conhecimento é poder. Quando a gente passa a ter a implementação da Lei de Cotas, abrimos a universidade para esses grupos — analisa Airi.
Desde a implantação da reserva de vagas, a UFPel formou 3.533 estudantes oriundos da ampla concorrência. No mesmo período, o número de cotistas formados foi de 2.593. Assim, como outras universidades, a instituição também enfrenta problemas de recursos.
— A situação das universidades para fechar o ano é dramática. A gente não tem dinheiro para terminar o ano. E quem mais sofre com isso, evidentemente, são as pessoas mais vulneráveis. As universidades precisam ter as condições necessárias para garantir a permanência dos estudantes — pontua.
Universidade Federal de Rio Grande (Furg)
Na Universidade Federal de Rio Grande (Furg), a discussão de reserva de vagas já existia antes mesmo da integralização da Lei de Cotas na instituição, em 2014. Em 2009, a Furg contava com um programa de ação inclusiva que destinava bônus para estudantes de escolas públicas. A avaliação da política de cotas é positiva, mas a universidade observa que pode avançar ainda mais.
— Precisamos de mais investimentos, principalmente para que a gente possa dar conta da permanência dos estudantes — avalia a pró-reitora de Graduação, Sibele da Rocha Martins.
Em 2021, a Furg formou 1.162 estudantes. A maior parte, 629, são da ampla concorrência. Os demais, que somam 533, são cotistas. Em 2022, a instituição ofertou 2.740 vagas para ingresso. Destas, 1.370 são vagas reservadas em cotas e distribuídas de forma igualitária nos cursos de graduação. A Furg também realiza um processo seletivo específico para estudantes indígenas e quilombolas.
Conforme a instituição, a média de nota é maior entre cotistas do que entre estudantes que ingressaram na ampla concorrência. A média de notas dos cotistas é de 5,6, enquanto que a da ampla concorrência é de 5,3.
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) tem 19,3 mil alunos regularmente matriculados. Destes, 8.079 são estudantes que ingressaram pelo sistema de cotas, o que representa 42% do total.
O pró-reitor de graduação da UFSM, Jerônimo Siqueira Tybusch, explica que 50% das vagas ofertadas na instituição são para cotistas. No entanto, nem sempre esse quantitativo é preenchido completamente por estes estudantes. Com isso, as vagas migram para a ampla concorrência.
A UFSM foi uma das pioneiras para o ingresso de indígenas no Ensino Superior. Desde que o vestibular deu lugar ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu), os candidatos indígenas passam por uma seleção específica com uma prova aplicada pela pró-reitoria de graduação.
— Nós fomos uma das precursoras. Começamos a trabalhar com ações afirmativas a partir do ano de 2007. Esses processos já se desenvolviam na UFSM. Em 2012, implementada a Lei, antes do prazo, já implementamos os 50% de cotas por decisão do nosso Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão — explica Tybush.