Considerada por especialistas em educação um marco para a mudança no caminho da diversidade nas instituições federais de Ensino Superior (Ifes), a Lei de Cotas está completando 10 anos. A legislação, sancionada em 2012, determina que as universidades e institutos federais destinem metade de suas vagas para estudantes que tenham cursado o Ensino Médio em escolas públicas, com aplicação de reserva destinada a negros, indígenas, quilombolas, deficientes e com recorte de renda. O texto prevê ainda que uma revisão total do programa deveria acontecer dentro desse marco temporal de uma década, ou seja, até a segunda-feira (29).
A revisão, no entanto, não implica em determinar um fim ao programa de ações afirmativas previsto pela lei federal 12.711, mas uma avaliação dos seus resultados e da viabilidade em ser ampliada ou reduzida. Ainda que o texto não seja revisto em 2022 – considerando o período eleitoral, que diminuiu as atividades legislativas do Congresso Nacional – a lei segue valendo, mesmo porque as universidades têm autonomia em sua gestão. Por outro lado, há um vácuo sobre quem deve fazer esta revisão. No texto de 2012, estava previsto que Executivo deveria realizar o processo revisório, entretanto, em modificação feita em 2016, que incluiu os PCDs, suprimiu-se do artigo 7º a competência para a revisão da lei de cotas.
Propostas
Diante disso, tramitam inúmeras propostas que tratam da política. De acordo com a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Pesquisadoras Negras (ABPN), 74 projetos sobre o tema tramitam no Congresso Nacional, sendo que, pelo menos 31 propõem restrição das cotas. No entanto, poucos têm chance de serem apreciados e votados. Entre eles, está a proposta que prevê a alteração da lei nº 12.711 a fim torná-la permanente como reserva de vagas nas universidades federais e nas instituições federais de Ensino Técnico de Nível Médio.
A matéria estava na pauta de votações da Câmara dos Deputados ainda na primeira semana de agosto, quando os parlamentares fizeram uma espécie de esforço concentrado para votar medidas urgentes antes da campanha eleitoral. De autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS) e outros sete parlamentares, por ter teor semelhante, o texto foi apensado (agregado) ao projeto que prorroga a revisão do programa para 2062. Relator da proposta, Bira do Pindaré (PSB-MA) inicialmente previa em seu relatório um prazo de mais cinco anos antes da revisão. Como não houve acordo, o projeto foi retirado da pauta.
— Como não houve consenso, retiramos da pauta justamente porque não houve o ambiente adequado para a votação de um tema tão importante. Por isso, a discussão ficará para depois das eleições — disse.
O parlamentar também é autor do projeto de lei 1.788/21, que estende para 2042 o prazo para avaliação da lei das cotas, assim como prevê a extensão do programa de reserva de vagas para a pós-graduação. O texto está pronto para ser votado na Comissão de Educação da Câmara. O líder do PSB na Casa defende ainda que as cotas tenham como eixo direcionador o acesso, permanência e o êxito acadêmico.
Defensora da ampliação da lei de cotas, a deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS) acredita que não está inviabilizada a votação de algum dos projetos que tratam da revisão da lei de 2012, mas concorda que o ciclo eleitoral é um momento atípico para as atividades legislativas.
— Na semana do dia 5 de setembro, não há viabilidade e nem é correto no atual contexto. Mais adiante, com novos ares no país, os parlamentares poderão retomar o debate com perspectiva bem mais focada na educação, inclusão e ampliação de direitos — pontua.
Por outro lado, o presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, Kim Kataguiri (União-SP), que também tem projeto relacionado ao tema, defende uma revisão completa da legislação, com foco na modificação do público abarcado pelo programa de ações afirmativas. O parlamentar é contrário às cotas raciais e defende uma política com olhar somente sobre a renda:
– Entendo que os tribunais (comissões de avaliação formadas nas universidades) destinados à avaliação do tamanho de lábios, o formato do nariz, a tonalidade da pele são um mecanismo desumano. A autodeclaração de raça, por outro lado, dá muita margem para fraude como já vimos. Além disso, para os 20% mais pobres, o acesso à educação não vai acontecer porque eles estão em escolas sucateadas onde o ensino é precário.
O acesso aumentou em 10 anos
Qualquer alteração em uma política dessa importância só deve ser feita caso haja necessidade constatada por estudos adequados, defende a professora Márcia Lima, coordenadora do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e professora da Universidade de São Paulo (USP). Dados do Consórcio de Ações Afirmativas, que reúne pesquisadores de diferentes universidades públicas do país, ao qual a docente é uma das coordenadoras, mostram a ampliação do acesso nas universidades federais. Em 2001, entre as pessoas que passaram a entrar no ensino superior público, o contingente de pessoas das classes C, D e E era de 19%, pulando para 52% em 2020. No mesmo período, entre os pretos, pardos e indígenas, o contingente pulou de 31% para 52%.
Ainda assim, a professora destaca que algumas mudanças serão necessárias. O corte de renda, que hoje é de um salário mínimo e meio per capita, deveria ser menor a fim de alcançar as pessoas mais pobres, segundo a pesquisadora.
— Esse critério abrange quase 80% da população brasileira, é muita gente. Para realmente chegar às pessoas mais pobres, o corte de renda deveria ter um teto mais baixo. E quanto aos deficientes, quilombolas e indígenas, os dados são escassos, e com isso, a regra da proporcionalidade desses públicos nos estados deveria ser modificada e ser substituída por políticas públicas para necessidades específicas. A exemplo das pessoas com deficiência, muitas vezes se pensa somente na mobilidade e talvez as necessidades sejam outras — argumenta.
As cotas
A lei de cotas consolida e institucionaliza um processo que começou na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em 2002, com o primeiro vestibular do país destinando cotas raciais e sociais. Depois surgiram outros modelos de ações afirmativas, incluindo a Universidade de Brasília (UNB), em 2004, e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que implementou seu primeiro programa de ações afirmativas no processo seletivo de 2008.
No caso da UFRGS, com a decisão 134/2007 aprovada pelo Conselho Universitário (Consun), foi estabelecida uma reserva de vagas para estudantes de escola pública e autodeclarados negros de escola pública. Atualmente, a distribuição das vagas é definida por um recorte de 30% do total para o Sistema de Seleção Unificado (Sisu) e 70% para o vestibular. Das vagas destinadas ao processo seletivo, metade é de acesso universal e os outros 50% são reservados para cotas, dividido em oito modalidades.
Em 2009, com a expansão dos programas cotistas em universidades públicas de todo o país, o então partido Democratas (DEM) — antes PFL, que se fundiu com o PSL e hoje é o União Brasil — questionou no Supremo Tribunal Federal (STF) a constitucionalidade da reserva de vagas na UNB. Por unanimidade, a Corte definiu que as cotas estão de acordo com a Constituição Brasileira, decisão que abriu caminho para a Lei das Cotas, publicada há uma década.
O Ministério da Educação foi procurado para fazer uma avaliação do programa de ações afirmativas, mas ainda não respondeu à reportagem.