Com a pandemia, a prática do chamado homeschooling, ou ensino domiciliar, se popularizou. O formato educacional, porém, ainda não possui regulamentação no Brasil. Agora, projetos sobre o tema que tramitavam há anos nas casas legislativas ganharam fôlego e avançam em comissões e plenários em níveis federal, estadual e municipal. No Rio Grande do Sul, o texto proposto pelo deputado estadual Fábio Ostermann (Novo) foi aprovado e aguarda sanção ou veto do governador Eduardo Leite.
Apesar de a discussão sobre o homeschooling ter aumentado durante a pandemia, as aulas remotas não são, na verdade, o alvo dos projetos de lei. O que se debate nas casas legislativas é se uma criança ou adolescente pode ser educada por seus próprios pais ou tutores, sem frequentar uma escola – diferentemente do ensino remoto, que é conduzido por professores ligados a uma instituição de ensino, mesmo que o estudante esteja em casa.
Em resumo, os projetos propõem que a Educação Básica possa ser oferecida em casa, sob responsabilidade de pais ou tutores legais. Caberia ao poder público fazer a supervisão e a avaliação periódica da aprendizagem desses estudantes. Em nível federal, um projeto de lei do deputado Lincoln Portela (PL-MG) sobre o tema tramita desde 2012 na Câmara dos Deputados. Em paralelo, um projeto de 2019 das deputadas Chris Tonietto (PSL-RJ), Bia Kicis (PSL-DF) e Caroline de Toni (PSL-SC) pretende que o homeschooling não possa ser tipificado como crime de abandono intelectual no Código Penal. Ambas as propostas aguardam apreciação do Plenário. Depois, precisam ser analisadas pelo Senado e sancionadas pelo presidente Jair Bolsonaro.
Muito antes da pandemia, em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) havia negado, em recurso extraordinário, a autorização de que uma menina de 11 anos, moradora de Canela, fosse educada em casa. A corte entendeu que não poderia aprovar a prática, já que não havia previsão para ela na legislação brasileira.
Apesar de entender a prática do homeschooling como inconstitucional, o jurista Lênio Streck acredita que os projetos de lei que tramitam hoje em nível federal serão aprovados e que o STF não irá considerá-los inconstitucionais, por respeito à decisão legislativa.
— Em algumas questões, o STF tem sido muito sensível à liberdade de conformação do legislador, então, se o Parlamento decide, essa é uma deferência ao Legislativo — avalia Streck.
Em tese, para que a educação domiciliar se torne integralmente legal, o jurista destaca que é necessária a aprovação dos dois projetos que tramitam na Câmara dos Deputados – o que autoriza o homeschooling e o que o exclui das previsões para abandono intelectual. Porém, caso apenas a proposta do deputado Portela se torne lei, o que pode acontecer é a configuração do ensino domiciliar como abandono intelectual se tornar obsoleta.
— A maioria dos casos que chega aos tribunais de denúncias por abandono intelectual é de pais pobres, que às vezes nem sabem que precisam mandar seus filhos para a escola — relata o advogado.
Já em nível estadual, Streck considera que a Assembleia Legislativa não tem competência para legislar a respeito do assunto:
— É muito difícil que uma lei estadual permaneça em pé sem uma regulamentação federal.
Constitucionalidade do homeschooling é impasse
Há um impasse na comunidade jurídica sobre se o homeschooling pode ou não ser um formato aceito de ensino, sem que a Constituição Federal seja ferida. Enquanto a Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Sul (OAB/RS), por exemplo, se limita a defender que a pauta seja regulamentada para, então, ser analisada a constitucionalidade da prática, juristas como Streck consideram que não há dúvidas.
— Não há um direito fundamental de os pais não mandarem seus filhos para a escola, e sim um dever fundamental, tanto que configura crime — ressalta.
Outros dois pontos destacados pelo advogado são a impossibilidade de aplicação do homeschooling para todas as crianças, o que não torna essa uma prática universal, e a necessidade de transferência de recursos para a implementação da modalidade, uma vez que caberá ao Estado criar instrumentos e instâncias avaliativas para averiguar se o ensino oferecido pelos pais está sendo adequado.
— Se o homeschooling passar, os pobres vão ficar analfabetos em casa, para economizar com uniformes, transportes e afins, e os ricos terão uma boa educação. Essa é uma prática que tem uma impossibilidade de execução em um país tão desigual como o Brasil — observa o jurista.
Governador terá reuniões para decidir se sanciona lei
O governador Eduardo Leite e o deputado Fábio Ostermann se reuniram na terça-feira (15) para falar sobre o projeto de lei que autoriza o homeschooling no Rio Grande do Sul. Leite tem até 10 de julho para sancionar ou vetar a proposta, já aprovada pela Assembleia Legislativa. Nesta semana e na próxima, o parlamentar ainda deve se reunir mais uma vez com Leite para tratar do tema. O governo também terá conversas internas a respeito, junto à Casa Civil e à Procuradoria-Geral do Estado (PGE).
— Vamos enviar alguns materiais para ele entender o tema e tomar a decisão mais acertada possível. Mas, claro, queremos ver o projeto sancionado e que haja espaço para sua regulamentação, que é uma demanda de outros deputados, que querem participar do processo de implementação da lei — pontua Ostermann.
Para o deputado, se há questionamentos sobre a constitucionalidade da proposta, é possível, após a sanção, mover uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). No entanto, Ostermann considera que a pauta já foi muito discutida, tendo tramitado por mais de um ano na Assembleia Legislativa, com a realização de três audiências públicas, e que não há dúvida de que o Estado pode, sim, legislar a respeito.
— A Constituição diz que a competência é concorrente entre União e Estados, tanto que o Distrito Federal criou lei. Na ausência de regramento nacional, os deputados têm competência suplementar para legislar sobre o tema — defende.