O turbilhão gerado pelo coronavírus no mês de março provocou, de uma só vez, mudanças em instituições de ensino de todos os níveis, das redes públicas e privadas. Em poucos dias, professores e alunos tiveram de se adaptar a um modelo completamente novo de aprendizagem: as mesas e cadeiras foram trocadas por telas de computadores ou de celulares, por onde passou a fluir o conteúdo ensinado.
Se a adaptação foi difícil para toda a comunidade escolar e acadêmica, alunos com deficiência precisaram voltar a enfrentar barreiras que, antes, pareciam em parte superadas. Sem o contato presencial, as dificuldades aumentaram, principalmente no trato com plataformas e ferramentas antes desconhecidas.
GZH ouviu cinco alunos com deficiência que estudam em universidades gaúchas para entender como estão lidando com a rotina de aulas online e o que pensam sobre a perspectiva de retorno. Esses relatos não representam toda a comunidade, mas, em suas individualidades, compartilham experiências mais amplas.
Além disso, a jornalista Cris Lopes, produtora na Rádio Gaúcha e estudante de Direito na UFRGS, escreve sobre sua experiência com o Ensino Remoto Emergencial da universidade.
Franciele
A vida escolar de Franciele Brandão, 33 anos, foi com papel e caneta, apesar da miopia. Aos 18 anos, no entanto, um descolamento de retina deu início a um processo que a fez perder a visão — hoje, consegue apenas perceber a claridade e a escuridão. A partir daí, precisou reaprender a ler e a escrever, desta vez em braile, a andar com bengala e a mexer no computador e no celular de outra forma.
Moradora de Porto Alegre, Franciele está no 6º semestre de Psicologia na Imed e é instrutora de braile na Associação de Cegos do Rio Grande do Sul (Acergs). Como única aluna cega da turma, precisou passar por desafios extras assim que as aulas online começaram por força da pandemia:
— Não conseguia ter acesso à plataforma da universidade porque o meu leitor de tela (software que lê, em áudio, os textos) não “lia” o botão que eu precisava clicar para entrar. De certa forma, o leitor passava por cima daquele botão e não identificava. Tive que entrar em contato com a equipe técnica para dizer que o site não estava sendo acessível. Mas eles foram bem receptivos. Em alguns dias funcionou.
Com o acesso corrigido, ficou mais fácil acompanhar as aulas e até realizar provas. Franciele diz que não está sendo prejudicada e que consegue acompanhar as aulas e fazer as atividades, mas algumas barreiras ainda precisam ser superadas em alguns momentos.
Há casos de professores que usam apresentações em imagens, sem fazerem a necessária descrição da figura — o que é só feito após intervenção da aluna. Em outros casos, os estudantes recebem textos para leitura em formatos não acessíveis, o que impede que o leitor de tela faça o reconhecimento.
— Acabo tendo trabalho redobrado, porque preciso de um programa que faça a conversão deste arquivo para texto, mas a leitura não fica 100%. Às vezes, uma letra é reconhecida como símbolo, outras saem erradas, mas pelo menos consigo entender o que o texto quer passar. A gente ainda tem dificuldade de uma realidade perfeita. Se os professores tivessem mais consciência de colocar textos em formatos acessíveis facilitaria para outros que vão vir também — diz.
Segundo a Imed, o ambiente virtual de aprendizagem se adapta às limitações visuais e auditivas e permite a interação do aluno diretamente com o professor. Em nota, a universidade informou que as avaliações são adaptadas e que o Núcleo de Apoio ao Estudante acompanha e dá suporte aos alunos com necessidades específicas, inclusive com atendimento remoto. No campus de Porto Alegre, há dois alunos com deficiência.
Rafael
Formado em Administração, o bancário Rafael Martins dos Santos, 42 anos, está no 6º semestre de Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Assim como Franciele, teve as formações anteriores com papel e caneta. No entanto, a doença degenerativa da retina descoberta aos 18 anos foi piorando e, hoje, ele tem baixa visão.
Com a tela em alto contraste e letras grandes, consegue enxergar algumas informações no computador. No entanto, as leituras de materiais acadêmicos são feitas com auxílio do leitor de tela. Como Franciele, Rafael também se incomoda com alguns tipos de conteúdos publicados pelos professores, como imagens, por exemplo:
— Já avançou bastante, mas ainda tem umas coisinhas. Noto que os professores, por vezes, não estão assim tão habituados a passar conteúdo para uma pessoa com deficiência. Fazem muito PowerPoint e falam “como estamos vendo aqui”... E eu não estou vendo nada. A gente fica imaginando. Outros não, são superpreocupados e fazem isso com uma maestria maravilhosa.
Inicialmente, Rafael teve dificuldade para se adaptar à plataforma utilizada pela PUCRS. Depois, com ajustes feitos, passou a solicitar versões em texto para materiais visuais, o que é produzido pelo Núcleo de Inclusão. O problema foi sendo resolvido com mais facilidade ao longo do semestre.
A grande dificuldade para Rafael foi fazer as provas das disciplinas. Pela ferramenta da universidade, ele não conseguia identificar onde acabava o campo de resposta de uma questão e onde começava o outro, o que gerou dor de cabeça no primeiro mês. A solução encontrada foi mudar de ferramenta: ele passou a entregar as provas em um documento de texto, onde consegue escrever com mais precisão.
— A PUCRS tem um tempo de resposta muito bom. Não fico empenhado por muito tempo. Passo dificuldade, divido com a técnica, que me dá suporte, e ela indica a solução ou mobiliza as pessoas. Pode demorar um tempinho, mas ela mobiliza — descreve.
Procurada, a PUCRS informou que conta com um Núcleo de Apoio à Educação Inclusiva, responsável por confeccionar materiais adaptados, acolher famílias e estudantes e orientar coordenadores a buscar o melhor formato pedagógico, entre outras funções. Por conta da pandemia, o núcleo atende os estudantes de forma remota. Além disso, segundo a universidade, professores participam de um grupo de aprendizagem contínua para minimizar a sobrecarga cognitiva e avaliar o processo de aprendizagem em atividades remotas.
Gabriel
Os primeiros dias de aula de Gabriel Deliberali Lazzari, 23 anos, também foram turbulentos. Com os professores ainda buscando as melhores ferramentas no primeiro semestre de 2020, ele teve dificuldades para acompanhar o conteúdo. Foi somente na mudança de semestre que o jovem, que tem síndrome de down, conseguiu aprender com mais facilidade:
— No início da pandemia, ficou difícil acompanhar as aulas. Neste semestre, está tranquilo — relata o estudante.
Gabriel está no 8º semestre de Educação Física no Centro Universitário Metodista IPA. Além de lamentar a falta de contato presencial com os colegas, sente falta da sala de recursos, que promove atendimento especializado para pessoas com deficiência. Os profissionais ajudam, por exemplo, a facilitar o entendimento de questionamentos feitos pelos professores em provas ou em trabalhos acadêmicos.
— A minha psicopedagoga me ajuda desde 2016 até a faculdade. E o meu pai. Porque nessa pandemia, estou sendo orientado pelo meu pai para as atividades que estou tendo na faculdade — diz.
Juvêncio Lazzari, aposentado, aproveita o período em casa para acompanhar o filho.
— Tenho procurado dar uma acompanhada no dia a dia dele, nas aulas que estão sendo feitas, para ele poder se organizar, separar o material que está sendo enviado. É normal que a turma tenha enfrentado algumas dificuldades porque a plataforma não era tão satisfatória no início. Isso apesar de todos o esforço que os professores fizeram, que é elogiável, em termos de buscar recursos e tecnologias — avalia o pai, que integra a Associação dos Familiares e Amigos do Down de Porto Alegre.
Em nota, o IPA confirmou que a sala de recursos está fechada em respeito aos protocolos, mas afirmou que o Núcleo de Apoio Pedagógico segue acompanhando e assessorando os estudantes e seus familiares. O núcleo, composto por profissionais das áreas de psicologia e psicopedagogia, orienta os professores com relação às adaptações necessárias. Ainda segundo a instituição, é natural que, diante das mudanças, “alguns docentes tenham apresentado algumas dificuldades inicialmente, mas contaram constantemente com suporte da instituição para minimizar dúvidas e garantir o acesso aos conteúdos por parte de todos os estudantes”.
Bruno
Com o apoio da intérprete Ida Cristina Miranda Gondin, GZH conversou, por vídeo, com o estudante Bruno da Silva e Souza, 20 anos. Surdo, ele faz uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras) para se comunicar.
Morador de Canoas, o jovem está no 2º semestre de Ciências Biológicas (bacharelado) na Universidade La Salle. Foram poucas semanas de aulas presenciais antes de todas as mudanças provocadas pela pandemia. Mesmo no ambiente online, Bruno tem seu direito garantido: todas as aulas contam com intérprete de Libras. A dificuldade aparece, às vezes, por conta da conexão de internet.
— Se o intérprete falta, rapidamente alguém substitui. Na hora. Não pode faltar. O que é difícil é a internet. Essas caídas de conexão são complicadas. A oscilação atrapalha — contou o jovem.
Pessoas surdas se apropriam do texto em português de forma diferente de ouvintes, e a escrita também não é feita da mesma forma. Bruno, muitas vezes, usa dicionário para entender os textos que os professores passam. Essa dificuldade, no entanto, é superada, inclusive com ajuda do intérprete nos horários de aula. O problema está quando alguns educadores pedem para que os alunos assistam a vídeos não acessíveis.
—Em vídeos do YouTube, a gente ainda tem essa dificuldade, porque às vezes não tem legenda. A gente sofre com essa falta de acessibilidade. Se não tem um dos dois (legenda ou intérprete), não tem comunicação. É impossível. Fico só olhando e não entendo nada, perco todo o contexto. Eu me sinto muito triste — relata o estudante, que também trabalha na General Motors, em Gravataí, e está afastado em razão da pandemia.
Procurada, a La Salle informou que fornece apoio no ambiente virtual de todos os cursos, seja nas aulas síncronas com os professores, nos encontros mediados pelos tutores, nas monitorias ou no apoio emocional e de aprendizagem. A universidade disse ainda que garante intérprete de Libras em todos os cursos e que os materiais didáticos são adaptados com acompanhamento dos intérpretes que apoiam o aluno.
Tháviny
Também surda, Tháviny Nascimento de Morais, 20 anos, cursa o 4º semestre de Pedagogia Bilíngue (Português e Libras) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Apesar da mudança na vida pessoal causada pela pandemia, a vida acadêmica sofreu menor impacto: como o curso já é a distância, a jovem estava adaptada à rotina de aulas online.
O fato de a turma ser composta por muitos alunos surdos também ajudou. Segundo a estudante, a acessibilidade nas aulas é total — a maior mudança foi ter ficado tanto tempo sem atividades devido à suspensão determinada pela UFRGS:
— A aula sempre foi acessível. É obrigatório. Está tudo tranquilo (com a acessibilidade), até porque já estávamos acostumados a isso. Mas, com a pandemia, me senti triste, nervosa, porque a faculdade foi fechada. Tivemos que ter essa adaptação (de ficar meses sem aulas).
Por meio da intérprete Ana Beatriz Seitz, da Associação de Crianças e Adolescentes Surdos do Rio Grande do Sul, Tháviny contou que a pandemia provocou grande transformação em sua vida. A jovem tem asma e está afastada do Tribunal de Justiça, onde trabalha. O contato com as pessoas na rua também mudou.
— Vou nos locais como farmácia ou supermercado, e as pessoas usam máscaras. Não consigo enxergar, ver a expressão, os lábios. Fiquei me sentindo muito limitada, muito brava. Eu dizia: “desculpa, sou surda”. Tive que usar a escrita, mostrar mensagens no celular — descreve.
Em nota, a UFRGS informou que disponibiliza em seu site uma série de orientações sobre acessibilidade e sobre o ensino remoto. Entre os materiais, estão orientações do Núcleo Incluir, que trabalha estratégias voltadas às pessoas com deficiência na comunidade universitária.
Retorno às aulas
Os cinco estudantes ouvidos por GZH consideram preocupante a retomada das aulas presenciais no Ensino Superior, por enquanto. Rafael avalia que os alunos devem poder escolher e argumenta que pessoas cegas podem ficar mais expostas ao coronavírus.
— A gente encosta muito mais nas coisas por não ver: precisa tocar, precisa às vezes de auxílio de condução, e fica mais vulnerável.
Bruno não concorda com o retorno:
— As pessoas não respeitam na rua, tiram a máscara. A gente está vendo que há desrespeito, que não há empatia. Para o aluno surdo vai ser muito mais trabalhoso ter que ficar toda hora escrevendo.
Acessibilidade não é favor, é direito
As instituições de ensino são obrigadas a garantir todos os recursos e a assistência pedagógica para que alunos com deficiência sejam incluídos em turmas regulares. Esses estudantes têm direito a receber o conteúdo da mesma forma que os demais colegas, sem nenhum tipo de prejuízo.
O procurador regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, Enrico Rodrigues de Freitas, lembra que a adaptação às aulas online foi feita às pressas em razão da pandemia. Ainda assim, não há desculpa para que as instituições não ofereçam todos os recursos devidos.
— Temos um quadro de uma educação a distância que não foi programada, mas, sim, decorrente da pandemia, e coube às instituições de ensino um grande desafio de adaptação em um prazo extremamente curto. Algumas universidades, inclusive, suspenderam aulas por um período mais longo, buscando organizar ou arranjar seus mecanismos de estudos. É claro que adaptações de larga escala precisam ser feitas para estudantes com alguma deficiência, e de forma que todos tenham acesso ao conteúdo das aulas — avalia Freitas.
O Conselho Nacional de Educação chegou a recomendar que, em um retorno às aulas presenciais, alunos com deficiência só pudessem voltar com uma avaliação da equipe da instituição ou quando a curva de contágio estivesse caindo. O parecer também estabelecia casos de alunos que deveriam ser “privados de interações presenciais”. O texto, que foi modificado, foi contestado pelo Ministério Público Federal em Brasília.
— Impor às pessoas com deficiência que não retornem às aulas é negar a elas o direito à educação, negar o direito à inclusão, a um tratamento de igualdade, e é criar uma maior diferença e, inclusive, uma barreira intransponível. O que há aí é uma necessidade de aquisição de equipamentos, de contratação de pessoal, de equipamentos de proteção para quem vai trabalhar com pessoas com deficiência — afirma o procurador.
Formadora do Instituto Rodrigo Mendes, entidade de São Paulo que trabalha pela educação inclusiva, Regina Mercurio atua há mais de 15 anos com formação de gestores e professores. Para a especialista, é importante pensar em conteúdos acessíveis desde a concepção, quando possível, e adaptar aqueles que não são:
— De tudo o que foi produzido historicamente pela humanidade, boa parte não é acessível. Mas a gente precisa garantir o mesmo currículo para todo mundo. No formato remoto, o professor e a própria universidade devem conversar com o estudante para saber quais são as tecnologias assistivas de uso pessoal. O que a gente não pode admitir é que eles recebam um outro conteúdo ou não tenham o conteúdo da mesma maneira que os outros.
Regina admite que a acessibilidade total é um processo, já que o conceito de educação inclusiva é recente. No entanto, destaca a necessidade de diálogo entre instituições de ensino e estudantes para a construção de um modelo adequado:
— O mundo ideal seria que jamais a universidade ou escola tivesse qualquer proposta pedagógica que, de antemão, excluísse as pessoas com deficiência. Mas a gente sabe que acontece, então essa troca é fundamental.