A opção de ensinar os filhos em casa, sem mandá-los para a escola, atraiu holofotes no Rio Grande do Sul graças a um projeto de lei que tramita na Assembleia Legislativa. Apresentado em abril pelo deputado Fábio Ostermann (Novo), a projeto autoriza a chamada educação domiciliar e cria regras para seu funcionamento. Essa modalidade de ensino também é uma bandeira do presidente Jair Bolsonaro, que remeteu ao Congresso proposta de regulamentação da prática.
Enquanto ainda engatinha em Brasília, no Estado o tema ganhou notoriedade porque a Constituição de Comissão e Justiça (CCJ) da Assembleia já recebeu para apreciação o parecer da relatora do projeto de Ostermann, a deputada Juliana Brizola (PDT). Depois de examinar o texto, a parlamentar concluiu que ele é inconstitucional, porque o tema seria de alçada federal, e não estadual. Contrariado, o autor do projeto produziu um contra parecer para rebater o da colega.
A Associação Nacional da Educação Domiciliar (Aned) estima em 16 mil as crianças e os adolescentes que são ensinados em casa no Brasil. Desse total, mil seriam do Rio Grande do Sul. Para Ostermann, é importante dar segurança jurídica a essas famílias, que hoje atuam à margem da lei.
— A nossa proposta não é acabar com a escola regular, não é obrigar todos os pais a educarem seus filhos em casa, mas permitir que os pais que tenham aptidão, disponibilidade e recursos necessários para que possam fazê-lo. É uma opção para os que não se sentem contemplados pelo atual sistema educacional gaúcho — afirma o deputado.
Ele argumenta que o ensino domiciliar já é um fato social e questiona:
— A gente vai ignorar isso e deixar essas familiais em uma situação de precariedade jurídica? Ou a gente vai tentar entender o fenômeno e construir um regramento claro, que resguarde o direito das crianças? Algumas famílias têm sofrido uma persecução injusta e descabida pelo fato de estarem buscando uma educação melhor para os seus filhos. Não existe um amparo legal nisso, mas o problema é que a gente se encontra numa zona cinza de regramento jurídico. Nosso projeto busca remediar essa situação.
No entendimento de Ostermann, não há inconstitucionalidade. Para defender a ideia de que a Assembleia pode legislar sobre o assunto, cita o artigo 24 da Constituição Federal, segundo o qual "compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação".
O ensino domiciliar já é um fato social, já é uma realidade. A gente vai ignorar isso e deixar essas familiais em uma situação de precariedade jurídica? Ou a gente vai tentar entender o fenômeno e construir um regramento claro, que resguarde o direito das crianças?
FÁBIO OSTERMANN
Autor do projeto
Também cita uma decisão do ano passado do Supremo Tribunal Federal (STF), quando a Corte avaliou um pedido de reconhecimento do ensino domiciliar para uma menina de Canela (RS). O relator, Luís Roberto Barroso, considerou que essa modalidade de ensino não é inconstitucional, mas os ministros decidiram que o recurso não poderia ser acolhido, uma vez que não há legislação que regulamente a educação domiciliar. É essa brecha legislativa que o deputado gaúcho espera preencher.
Juliana Brizola concorda que não se deve criminalizar os pais que já trocaram a escola pela educação em casa e entende que eles estão fazendo o que acham ser o melhor para seus filhos, embora alerte para o perigo de prejudicá-los, uma vez que essa educação caseira pode não ser reconhecida pelas instâncias oficiais - o que complicaria, por exemplo, a obtenção de diplomações e o ingresso na universidade.
A deputada afirma que, na condição de relatora do projeto na CCJ, não cabia a ela entrar no mérito da proposta, mas apenas atestar sua constitucionalidade ou não. Segundo ela, ainda que o artigo 24 da Carta determine a concorrência dos três entes da União, os Estados só podem legislar quando há um vazio de legislação da União.
— Neste caso, não há esse vazio, porque temos a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que é a lei nacional da educação, e essa lei diz que é obrigação dos pais garantir a frequência à escola e diz que é obrigatório aos pais e responsáveis efetuar a matrícula das crianças no Ensino Básico a partir dos quatro anos de idade. Ainda há o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que também tem um artigo que obriga os pais a matricular os filhos no ensino regular. Tanto isso é verdade que o projeto em tramitação no Congresso Nacional prevê justamente mudar isso, para permitir o ensino domiciliar. Hoje, o projeto do deputado Fábio Ostermann é inconstitucional. Pode ser que daqui a algum tempo, se o projeto nacional vier a ser regulamentado no Congresso, deixe de ser — defende Juliana.
No dia 5 de novembro, ocorreu uma sessão da CCJ em que o parecer da deputado poderia ser apreciado, mas isso não ocorreu porque ela não compareceu. Ostermann afirmou que a ausência fazia parte de um estratégia protelatória de Juliana, mas ela não foi à Assembleia porque levou ao hospital a filha, vítima de uma crise de bronquite asmática.
Hoje, o projeto do deputado Fábio Ostermann é inconstitucional. Pode ser que daqui a algum tempo, se o projeto nacional vier a ser regulamentado no Congresso, deixe de ser.
JULIANA BRIZOLA
Relatora do projeto
— Compreendo a pressa do deputado. Quem vem de fora tem dificuldade de compreender o tempo da Assembleia Legislativa, que muitas vezes é moroso. Tenho dois projetos sobre amamentação que estão tramitando há quatro anos e não consigo levar a plenário, por sucessivos pedidos de vista ou por demoras em relatórios. Claro, a gente fica chateada, quer que ande, mas não adianta. Tenho certeza absoluta de que, até o final deste ano, o projeto de lei vai sair da CCJ, a favor ou não — afirma a parlamentar.
No dia 12, o deputado Elizandro Sabino (PTB) pediu vistas do projeto, empurrando para esta semana uma eventual votação.
Consultado por GaúchaZH, o Ministério da Educação informou que, a partir do voto de Luís Roberto Barroso, entende "que seja possível a educação domiciliar, uma vez que não é inconstitucional, mas é necessário que seja regulamentada pelo Congresso Nacional". A partir de uma regulamentação, "o MEC irá planejar a forma da implementação dessa modalidade de ensino".
Rotina de aprendizado em casa
Lorenzo Salvador tem 10 anos, mora em Gravataí e nunca foi à escola. Mas segue uma rotina diária de estudos. Os professores são os próprios pais.
Daniele e Giovani Salvador decidiram apostar na educação domiciliar depois de fazerem amizade com uma filha de Rick Dias, presidente da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned).
— Ela veio parar aqui em casa, ficou um mês e começou a falar da sua experiência. Ficamos pensativos e concordamos que queríamos isso para o nosso filho também. Achamos que era a melhor escolha para ele, que vemos como uma criança única. Decidimos por causa da qualidade do ensino em nosso país, que é a segunda pior do mundo — diz Daniele.
No sentido de aprendizado, não tenho nenhum medo de que ele fique para trás, porque estou bem por dentro do que acontece e vejo que ele tem coisas extras que não teria na escola. Acho que ele não perde nada. A gente vê que dentro das escolas é muito comum hoje mutilação, abuso, abandono, tudo isso.
DANIELE SALVADOR
Mãe de Lorenzo, educado em casa por ela e pelo marido
A formação caseira de Lorenzo começou quatro anos atrás. No princípio, o casal contratou uma pedagoga, que fez um planejamento anual e vinha três vezes por semana para um acompanhamento presencial. Giovani, que é gerente de TI e professor universitário, e Daniele, formada em Letras no ano passado, revezam-se nas aulas.
— Lorenzo acorda, toma café e depois vem para a rotina. Ele tem matemática e português quatro vezes por semana. Tem ciências, geografia e história duas vezes. E tem mais a parte de projetos, que fica com meu esposo. Dá bem mais trabalho do que colocar numa escola — afirma a mãe.
Segundo ela, um dos diferenciais da educação familiar é não seguir adiante sem que a criança tenha dominado os conteúdos. No ano passado, quando Lorenzo demonstrou dificuldade com a multiplicação, Daniele e o marido focaram durante três meses apenas nisso.
— Quando há 40 crianças numa sala de aula, eles não são vistos nas suas dificuldades. Não tem como o professor ter esse domínio, porque são muitos alunos. No sentido de aprendizado, não tenho nenhum medo de que ele fique para trás, porque estou bem por dentro do que acontece e vejo que ele tem coisas extras que não teria na escola. Acho que ele não perde nada. A gente vê que dentro das escolas é muito comum hoje mutilação, abuso, abandono, tudo isso — acrescenta Daniele.
Fora de casa, as aulas que Lorenzo frequenta são de inglês. As idas à escola de idiomas, acreditam os pais, servem também para que ele desenvolva a socialização. A mãe afirma que, no momento que o menino quiser, ele pode decidir ir para uma escola regular.
— Mas ele não quer, de forma alguma, porque vê o resultado. Precisamos ser ouvidos. Queremos acrescentar na educação, para melhorá-la. Não é uma competição entre as crianças que estudam em casa e as que estudam na escola. É só uma modalidade diferente —defende Daniele.
MP orienta pais a buscarem declaração de direito na Justiça
O Ministério Público Estadual (MP) se posiciona de forma contrária ao projeto de lei apresentado pelo deputado Fábio Ostermann. Segundo a promotora Luciana Casarotto, que representou o MP em audiência pública sobre o projeto realizada na Assembleia Legislativa, frequentar a escola é um direito da criança, ainda que esse não seja o desejo dos pais.
— A luta é pela inclusão de todos. É contra isso que vai o ensino domiciliar, no qual os pais querem que o filho seja excluído do sistema. O que buscam é que suas crianças não tenham certas vivências, porque julgam que são prejudiciais. Mas não oferecer essas vivências - de convivência, socialização, inserção social e contato com formas diferentes de pensar - fere o direito da criança. Ela perde quando deixa de ter a oportunidade de ir para a escola. A criança tem direito à convivência com pontos de vista diferentes, para que desenvolva o sentimento de tolerância, e ao contato com outros tipos de valores, para que possamos formar cidadãos responsáveis — afirma Luciana.
A promotora ressalta que os pais não são privados de educar seus filhos, mas isso deve ser feito de forma complementar ao sistema de ensino. Eles não detêm direto absoluto sobre que tipo de informação deve chegar aos pequenos. É por isso que a legislação determina a inserção no sistema educacional a partir dos quatro anos.
A luta é pela inclusão de todos. É contra isso que vai o ensino domiciliar, no qual os pais querem que o filho seja excluído do sistema. O que buscam é que suas crianças não tenham certas vivências, porque julgam que são prejudiciais. Mas não oferecer essas vivências - de convivência, socialização, inserção social e contato com formas diferentes de pensar - fere o direito da criança. Ela perde quando deixa de ter a oportunidade de ir para a escola.
LUCIANA CASAROTTO
Promotora do MP
Citando a decisão do ano passado do Supremo Tribunal Federal, a promotora sustenta que a educação domiciliar é "radicalmente contra a Constituição" enquanto não houver uma regulamentação do assunto. Segundo ela, essa regulamentação precisa ser federal - já que o Estado não teria competência para legislar na área. Enquanto não existe essa regulamentação, do ponto de vista do MP, uma criança que é educada em casa e não vai à escola está infrequente. Como a frequência é obrigatória dos quatro aos 17 anos, os pais estariam infringindo os deveres do seu poder familiar, ficando sujeitos a penalidades previstas no ECA.
Além disso, observa Luciana, pela legislação vigente, uma criança que não tenha o mínimo exigido de presenças em sala de aula não pode receber o diploma, por melhor que seja seu desempenho em exames.
— Uma medida de cautela para os pais que pretendem infringir as leis e a Constituição é buscar judicialmente a declaração desse direito, para que não haja prejuízo à criança. Que só retirem da escola quando houver ordem judicial para isso. Aí ele vai se garantir —ressalta.
Aned sustenta que 64 países já reconhecem o método
Presidente da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), Rick Dias tirou os dois filhos da escola em 2010 e passou a educá-los em casa. Para que a filha, de 21 anos, ingressasse na universidade, ele obteve uma decisão da Justiça. No caso do filho, de 18 anos, bastou fazer as provas do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) para obter as certificações referentes à conclusão do Ensino Básico.
— Os supletivos e o Encceja não podem exigir nada, porque são os programas do governo para quem justamente não frequentou à escola. A gente aproveitou isso — afirma, ao ser questionado sobre a questão da infrequência à escola.
Para nossa tristeza como cidadãos brasileiros, esses países que reconhecem a educação domiciliar estão à nossa frente nos índices educacionais. Defendemos essa modalidade porque ela é extremamente viável, não onera o Estado e proporciona a chance de dar uma instrução mais personalizada aos nossos filhos, na qual se podem desenvolver dons, talentos e habilidades.
RICK DIAS
Presidente da Aned
Segundo Dias, há atualmente 64 países em que a educação domiciliar é reconhecida e regulamentada. Nos Estados Unidos, a modalidade abrangia 1,77 milhão de crianças e adolescentes, segundo dados governamentais de 2012. Pelos dados da Aned, 360 famílias eram adeptas do modelo em 2011. No ano passado, esse número teria chegado a 7,5 mil. Para 2019, a expectativa é de 11 mil. O Rio Grande do Sul seria responsável por 11% do total.
— Para nossa tristeza como cidadãos brasileiros, esses países que reconhecem a educação domiciliar estão à nossa frente nos índices educacionais. Defendemos essa modalidade porque ela é extremamente viável, não onera o Estado e proporciona a chance de dar uma instrução mais personalizada aos nossos filhos, na qual se podem desenvolver dons, talentos e habilidades. A educação domiciliar também produz excelentes resultados acadêmicos, 15% a 30% superiores, segundo pesquisas feitas nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália — diz o presidente da Aned.
Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fernando Becker prefere uma posição de "meio termo" no que diz respeito ao ensino doméstico. Ele considera que a escola cumpre uma importante função na socialização das crianças e adolescentes, permitindo que eles convivam com a diferença. Por isso, acha que é importante a frequência. Ao mesmo tempo, não vê razões para que pais habilitados a isso deixem de assumir a formação dos filhos nas áreas que dominam.
— Se o pai sabe Física ou Matemática e se a mãe sabe História ou Português, por que não podem prover essa parte em casa, se a escola não oferece novidade, não desafia? Porque tem de ser tudo na escola ou tudo em casa? Dosar essas duas coisas teria como consequência desafiar a própria escola a se modificar — pondera.
O que prevê o projeto
Confira pontos da lei proposta pelo deputado Fábio Ostermann
- A educação domiciliar, sob o encargo dos pais ou dos responsáveis pelos estudantes, passa a ser admitida, com articulação, supervisão e avaliação periódica da aprendizagem pelos órgãos do sistema de ensino;
- A opção pode ser feita a qualquer momento e deve ser comunicada à instituição escolar na qual o estudante se encontra matriculado;
- Quem escolher a educação domiciliar deve declarar a sua escolha à Secretaria de Educação do município por meio de formulário específico. O recebimento do formulário implica a autorização para a educação domiciliar e passa a ser considerado como matrícula para os efeitos legais;
- As famílias que optarem pela educação domiciliar devem manter registro das atividades pedagógicas desenvolvidas com os seus estudantes;
- As crianças e adolescentes educadas no regime domiciliar serão avaliadas pelo município por meio de provas.
Números do ensino domiciliar
- A Aned estima em 16 mil as crianças e os adolescentes que são ensinados em casa no Brasil.
- Desse total, 1 mil seriam do Rio Grande do Sul.
- Segundo a associação, há atualmente 64 países em que a educação domiciliar é reconhecida e regulamentada.
- Pelos dados da Aned, 360 famílias eram adeptas do modelo em 2011.
- No ano passado, esse número teria chegado a 7,5 mil.
- Para 2019, a expectativa é de 11 mil.
- O Rio Grande do Sul seria responsável por 11% do total.