Testada em camundongos, uma formulação desenvolvida pelo professor Paulo Ivo Homem de Bittencourt Júnior produziu a reversão de uma série de problemas cardiovasculares. A substância aumenta a produção de uma proteína que ajuda, por exemplo, a desentupir artérias. Roedores que estavam para morrer de infarto ficaram como novos depois de recebê-la.
Homem de Bittencourt patenteou a fórmula, batizada de LipoCardium, e obteve em 2015 autorização para fazer testes em humanos, com a expectativa de ajudar obesos, diabéticos e portadores de doenças coronarianas. Pelos seus cálculos, se a droga estivesse disponível, o Ministério da Saúde poderia poupar R$ 94 bilhões ao ano.
Apesar das perspectivas promissoras, o cientista não consegue levar seu trabalho adiante e está com o laboratório quase paralisado. É uma das vítimas da penúria que a pesquisa vive no país, com o corte de verbas de órgãos de fomento como Capes, CNPq e Finep. Em lugar de receber recursos, Homem de Bittencourt acostumou-se a tirar dinheiro do bolso para cobrir despesas do Laboratório de Fisiologia Celular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— A cada três pessoas, uma morre de doença no coração. A nossa fórmula reverte problemas cardiovasculares. Quero botar no mercado e não consigo. Precisaria de R$ 15 milhões, mas dependo do CNPq — afirma o pesquisador.
Pouco mais de cinco anos atrás, ele comandava uma equipe de 30 pesquisadores. Hoje restam uma aluna de iniciação científica e outra de mestrado, as duas ameaçadas de deixar de receber o pagamento de suas bolsas do CNPq. O órgão, vinculado ao Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, está sem dinheiro e teve de fazer um remanejamento do orçamento para honrar os compromissos de setembro com os bolsistas. Para outubro em diante, no entanto, não há garantias.
A bolsista de iniciação científica recebe R$ 400. A de mestrado, R$ 1,5 mil.
— De 2014 em diante, os alunos foram terminando o doutorado, e eu não peguei novos, porque não estava vindo financiamento. Mas neste ano caíram os butiás do bolso. A gente está vendo que o CNPq não tem dinheiro e que a Capes não vai mais dar bolsas. Fiquei com essas duas bolsistas, que são a massa de trabalho que a gente tem. Para elas, a bolsa é a subsistência. Se elas não receberem, vamos fazer o que sempre fizemos: uma vaquinha para ajudar. Eu já disse a elas: "Se puderem ir para o Exterior, vão. Se melhorar, vocês voltam".
Seria a chamada fuga de cérebros. Recentemente, Homem de Bittencourt perdeu dois excelentes pesquisadores para uma universidade australiana, porque não havia oportunidades para eles no Brasil, devido à falta de investimento em pesquisa. Nesses casos, o laboratório abre mão de profissionais que vinham sendo treinados ao longo de anos. É o que pode acontecer com as duas bolsistas que trabalham hoje com o cientista. Quando elas concluírem a atual etapa, o caminho natural seria uma seguir para o mestrado e outro para o doutorado. Mas como o governo não está concedendo novas bolsas, essa rota ficaria bloqueada.
O próprio Homem de Bittencourt pode sofrer com a falta de pagamentos. Ele detém uma bolsa de produtividade do CNPq, no valor de R$ 2,4 mil, que investe integralmente no laboratório. É insuficiente, e ele costuma usar dinheiro do seu salário para bancar despesas. Todo mês, por exemplo, ajuda a comprar o hidrogênio líquido necessário para manter células congeladas.
A cada três pessoas, uma morre de doença no coração. A nossa fórmula reverte problemas cardiovasculares. Quero botar no mercado e não consigo. Precisaria de R$ 15 milhões, mas dependo do CNPq
PAULO IVO HOMEM DE BITTENCOURT JÚNIOR
Pesquisador da UFRGS
O laboratório ficou na penúria por causa dos cortes de investimentos do CNPq ao longos dos últimos anos. No passado, Homem de Bittencourt conseguia verbas concorrendo nos editais abertos pelo órgão, mas eles foram minguando até praticamente inexistirem neste ano.
Sem esse financiamento, faltam recursos para as coisas mais básicas. Como o nobreak quebrou, não é possível usar um microscópio que custou US$ 100 mil. Por falta de manutenção, um fotodocumentador de US$ 30 mil também estragou — e não tem peças de reposição, porque já saiu de linha. Dos 10 aparelhos de ar-condicionado do laboratório, oito estão fora de operação, e não há dinheiro para conserto.
— Eu não preciso de ar-condicionado para ficar no fresquinho, mas porque há equipamentos que só funcionam se tiver ar-condicionado. As coisas estão sucateando. A gente paga do bolso, para poder trabalhar. É um momento de profunda preocupação para nós todos. Não podemos jogar no lixo tudo o que já investimos com dinheiro público, dos nossos impostos — diz Homem de Bittencourt.
Pela primeira vez em 40 anos, programa não terá novos alunos de doutorado
Coordenador do centro de terapia gênica do Hospital de Clínicas, o professor Guilherme Baldo também é responsável pelo programa de pós-graduação em fisiologia da UFRGS, criado em 1979. Segundo ele, pela primeira vez nesses 40 anos, o setor não receberá no próximo semestre nenhum aluno novo de doutorado. Seis candidatos foram aprovados, mas todas as bolsas foram cortadas. Três eram da Capes e três do CNPq. Baldo descobriu que elas haviam sumido do sistema.
A ausência desses pesquisadores, que receberiam a bolsa para trabalhar em regime de dedicação exclusiva, terá impacto no andamento de estudos que poderiam trazer benefício à saúde da população.
— Tentamos tratar doenças genéticas corrigindo o DNA das pessoas. O trabalho meio que vai parar. Uma biomédica que entraria no doutorado, por exemplo, ia trabalhar com doenças raras. Outra ia estudar o uso de células-tronco no tratamento de doença intestinal. Se antes conseguíamos tocar cinco, seis projetos, vamos baixar para um ou dois, isso se conseguirmos os financiamentos para esses projetos, porque assim como as bolsas, eles também estão sendo cortados — diz Baldo.
A ameaça paira sobre todos os centros de pesquisa da maior universidade gaúcha, incluindo laboratórios que dão retorno direto à sociedade. O setor de patologia veterinária, por exemplo, investiga doenças que atingem variadas espécies, incluindo aquelas ligadas à produção econômica, como bovinos, ovinos, suínos e equinos. É usual que criadores de determinada região façam contato para informar que algum surto está atingindo seus rebanhos. Nesses casos, pós-graduandos são enviados a campo e, muitas vezes, a partir daí, dão início a projetos de pesquisa.
— Estudamos mais a fundo as doenças que acontecem nos rebanhos e auxiliamos os produtores rurais, com retorno para a economia. É fundamental conhecer as doenças, para poder prevenir, tanto nos rebanhos com na casa de tutores de animais domésticos. É importante inclusive para a saúde pública, porque há doenças que são transmitidas de animais para humanos bem como de humanos para animais — afirma Luciana Sonne, professora da Faculdade de Veterinária.
A gente não tem perspectivas. Uma série de linhas de pesquisas que temos hoje podem ficar inviabilizadas. Provavelmente vai diminuir bastante nossa produção científica e o retorno para a sociedade
LUCIANA SONNE
Pesquisadora da UFRGS
Com os cortes nas bolsas, todo esse trabalho e seus benefícios podem ser prejudicados, porque os bolsistas representam a mão de obra que auxilia na investigação. Dias atrás, o setor perdeu uma bolsa de pós-doutorado, das duas que teria. Um pesquisador foi aprovado na seleção, mas deve ser impedido de trabalhar devido à restrição de novos financiamentos implantados pela Capes. Esse pesquisador era bolsista de doutorado e trabalhava com diagnóstico de doenças pulmonares e intestinais em equinos. Como não poderá dar continuidade, essa linha de pesquisa ficará suspensa no setor de patologia veterinária da UFRGS. Além disso, a bolsa de doutorado que ele ocupava também poderá ser bloqueada — ou seja, poderá não ser repassada a um novo pesquisador .
O setor de patologia veterinária também vive a insegurança sobre o pagamentos das bolsas do CNPq. Três professores têm bolsas de produtividade, o que significa recursos para comprar insumos de pesquisa. Também há nove mestrandos e doutorandos bolsistas do CNPq sob risco de não receber a partir do mês que vem. Uma bolsa de iniciação científica, para a qual Luciana Sonne chegou a fazer a seleção, foi cortada em agosto — o que prejudicará um estudo sobre lesões cardíacas em felinos.
— A gente não tem perspectivas. Uma série de linhas de pesquisas que temos hoje podem ficar inviabilizadas. Provavelmente vai diminuir bastante nossa produção científica e o retorno para a sociedade — lamenta Luciana.
A GaúchaZH, o MEC, que responde pela Capes, disse que avalia “alternativas para recompor o orçamento de 2020. Todas as possibilidades estão sendo estudadas para garantir o pleno funcionamento dos serviços prestados”.
O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, responsável pelo CNPQ, não deu retorno até a publicação desta reportagem.
GaúchaZH também procurou a Finep, mas não obteve resposta até o fechamento de publicação.
BOLSAS DA CAPES
A situação
Quando a bolsa de um pesquisador chega ao fim, conforme determinação do Ministério da Educação, ela é considerada ociosa e fica congelada. Não pode ser passada a outro aluno, como era a praxe. Dessa forma, reduz-se o número de bolsistas nos laboratórios, com impacto na produção científica.
Os números
A Capes anunciou no começo de setembro o congelamento, até o fim do ano, de mais 5.613 bolsas no Brasil, um corte de R$ 37,8 milhões.
No Rio Grande do Sul, as novas bolsas suspensas são 725, o que significa menos R$ 4,7 milhões destinados ao fomento da pesquisa.
Somando as bolsas da Capes cortadas neste ano, o total no Brasil chega a 11.560. No Rio Grande do Sul, foram 1.065 bolsas perdidas.
Ao longo de todo o ano, a economia com bolsas chegará a R$ 94,8 milhões de reais, segundo a Capes.
BOLSAS DO CNPQ
A situação
Por causa de cortes em seu orçamento, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações ficou sem recursos para pagar os bolsistas.
O ministro Marcos Pontes anunciou ter feito um remanejamento interno de R$ 82 milhões para honrar os pagamentos de setembro.
Os números
O CNPq tem 80 mil bolsistas no país ameaçados de ficar sem receber recursos a partir de outubro.
O Ministério precisa de cerca de R$ 250 milhões para bancar os pagamentos até o fim de 2019, mas ainda não há definição se terá dinheiro para isso.
Um acordo firmado entre governo federal, Congresso e Procuradoria-Geral da República indicou que esse valor virá de um total de R$ 2,6 bilhões reavidos pela Petrobras após um acordo com os Estados Unidos.
Para 2020, o orçamento do CNPq prevê um aumento no valor destinado a bolsas (de R$ 784,7 milhões para R$ 1 bilhão), mas a verba de fomento à pesquisa cairá 87% (de R$ 127,4 milhões para R$ 16,5 milhões).
Leia as outras partes desta reportagem:
Referência internacional, grupo de pesquisa da UFPel sofre com cortes de bolsas
Além de Capes e CNPq, Finep também sofre com cortes no fomento à pesquisa