São raridades às quais ninguém jamais gostaria de se ver associado. As chamadas doenças raras se referem a um grupo gigantesco de enfermidades – estima-se algo entre 5 mil e 8 mil tipos diferentes – que se caracterizam pela baixa prevalência, ou seja, acometem um número reduzido de pessoas. De acordo com o Ministério da Saúde, considera-se rara a doença que afeta até 65 indivíduos a cada grupo de 100 mil. Em geral, os pacientes passam pelos consultórios de diversos especialistas até conseguirem descobrir o que de fato os afeta. Em 80% dos casos, a origem da doença é genética, por alteração nos genes ou nos cromossomos, herdada ou não dos pais. O problema ocorre na formação do feto, mas nem sempre é congênito (presente ao nascimento) – existem doenças raras com manifestação tardia, que aparecem apenas na adolescência ou vida adulta. No caso das enfermidades de origem genética, o geneticista é o profissional mais capacitado para dar o diagnóstico e a orientação para o tratamento, envolvendo muitas vezes uma equipe multidisciplinar.
Quando algo errado surge na infância, o primeiro especialista a ser procurado é o pediatra. Para os adultos, depende dos sintomas que se apresentam. Às vezes, segundo a médica geneticista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) Têmis Maria Félix, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica, demora até que se desconfie de um problema de origem genética. Como se trata de uma área muito específica, e nem todas as faculdades de medicina no Brasil contam com disciplinas desse tema, a formação do médico generalista fica com uma lacuna.
– Algumas doenças têm tratamento, mas os pacientes perdem tempo. Mesmo quando não há tratamento específico, as terapias de apoio acabam sendo iniciadas tardiamente, o que pode agravar o quadro – diz Têmis. – São doenças muito raras, às vezes ultrarraras. Até se entende que um pediatra ou médico geral nunca verá um caso desses – completa.
Além da demora do diagnóstico, é comum deparar com outra enorme dificuldade: como essas doenças atingem poucos pacientes, e as terapias, em geral, levam anos para serem desenvolvidas em estudos onerosos, o custo final da medicação – nas situações em que há algo específico a ser administrado – é altíssimo. Para efeito de comparação, pense em um remédio para um problema mais comum, como diabetes. A pesquisa que permitiu o desenvolvimento de uma nova droga também teve custo elevado, mas esse valor acaba sendo “repartido” entre uma população maior de doentes, que pagará menos pela medicação.
Uma saída pode ser incluir o indivíduo em um protocolo de pesquisa de drogas em teste, quando possível. Há medicações desenvolvidas no Exterior que já foram aprovadas para comercialização no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas cujos preços astronômicos levam cidadãos sem condições financeiras a reivindicá-las por via judicial, acirrando uma prática e uma discussão que se arrastam há tempos no Brasil: é justo gastar milhões para salvar apenas um paciente, enquanto a realocação desses mesmos recursos poderia beneficiar centenas ou milhares de outros?
Alguns remédios já foram incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e são distribuídos gratuitamente. Mas, mesmo nesses casos, pode haver ainda outros obstáculos no caminho, como a falta do produto ou a demora no processo burocrático que permite sua liberação sem custo ao paciente. Ou ainda, de maneira geral, convive-se com o demorado acesso a consultas e exames pela rede pública de saúde.
Gisela Martina Bohns Meyer, cardiologista e chefe do Centro de Hipertensão Pulmonar da Santa Casa de Porto Alegre, conta que sempre se envolveu muito com os pacientes. Ao longo da carreira, viu diversos casos de hipertensão arterial pulmonar e hipertensão pulmonar tromboembólica crônica, ambas classificadas como doenças raras. Sua empatia extrapolou os limites do consultório, e ela se engajou em reuniões com políticos e comissões em Brasília. Em outubro deste ano, foi aprovado, no Senado, um relatório sobre o tema que aguarda sanção ou veto presidencial (leia mais abaixo).
– Os pacientes com doenças raras se sentem muito solitários. Às vezes, ninguém no Estado tem a mesma doença que você. Muitos são crianças ou jovens. É um diagnóstico de muita solidão, você se sente um patinho feio. É muito importante fazer esse trabalho social e político. As pessoas não escolhem ficar doentes. Esses pacientes são minoria, por isso não têm voz – justifica Gisela.
A médica destaca que ainda é preciso avançar mais na legislação e no atendimento, criando-se vias rápidas que permitam que os doentes cheguem ao atendimento especializado, em um centro de referência, em um período de tempo mais curto. O projeto que acaba de passar pelo Senado ainda não contempla esse quesito.
– Uma tomografia pode levar três meses para ser feita, e às vezes o paciente de doença rara não tem três meses para esperar. A partir do diagnóstico, ele não deveria esperar 30 dias para chegar ao centro. Precisamos de um encurtamento de caminhos – enfatiza Gisela.
Recomenda-se que, a partir da confirmação da doença rara, o paciente e seus familiares procurem centros de referência (no Rio Grande do Sul, o HCPA é Serviço de Referência para Doenças Raras de origem genética) e grupos de apoio em busca de acolhimento e orientações sobre direitos e tratamento.
– Os pacientes devem ficar perto dos seus pares, e não sozinhos. A solidão acaba com eles. Uma criança que não acha um semelhante fica muito introspectiva. “Por que só eu sou diferente?” Isso pode gerar depressão. O ser humano não nasceu para viver sozinho. Tenho muita compaixão. Eles podem desempenhar papéis muito importantes. Todos os indivíduos que passam por essa situação se tornam melhores – comenta Gisela.
Deise Zanin, 34 anos, descobriu apenas aos 20 que sofria de mucopolissacaridose do tipo 1 – os sintomas, como contratura muscular nas mãos e dor nas articulações, começaram na infância. Ainda que tenha uma forma leve da doença, Deise transformou a luta em benefício dos direitos a pacientes como ela na ocupação central de sua vida. Atualmente, ela preside o Instituto Atlas Biosocial, antes chamado de Associação Gaúcha de Mucopolissacaridoses, que agora atende uma gama maior de doenças raras.
– Vivemos numa sociedade que ainda é preconceituosa, e no passado era muito mais. Sempre chorei muito, não falava, chorava sozinha. Hoje incentivo as pessoas a não se fecharem no seu mundo. Temos que nos inserir na sociedade mesmo com limitação – acredita Deise.
Têmis, do HCPA, salienta que todos com algum problema genético têm indicação de procurar um serviço de acompanhamento. Se alguém tem histórico familiar de doença genética e pretende ter filhos, é necessário se submeter a um aconselhamento genético. Exames específicos podem ser requisitados ou não para verificar se há um risco aumentado para o mesmo problema.
Conheça algumas doenças raras
- Acondroplasia: trata-se de um tipo de nanismo caracterizado por desproporções ósseas e macrocefalia. Não existe tratamento, e o acompanhamento médico se dá no sentido de que se evitem complicações do quadro de saúde, como a compressão do forame magno (abertura entre o cérebro, a caixa craniana e a medula espinhal), que pode ocasionar lesão na medula.
- Distrofia muscular de Duchenne: doença muscular degenerativa que acomete pacientes do sexo masculino. A capacidade de andar pode ser perdida por volta dos 12 anos.
- Esclerose lateral amiotrófica (ELA): é uma das principais doenças neurodegenerativas (mesma categoria das doenças de Parkinson e Alzheimer). Provoca a degeneração do sistema motor em vários níveis, como cervical, torácico e lombar.
- Esclerose múltipla: doença autoimune (o organismo ataca a ele próprio) que acomete o sistema nervoso central. Tem grande poder debilitante, e o paciente pode perder a capacidade de andar ou falar claramente.
- Fenilcetonúria: pode ser identificada no teste do pezinho, logo após o nascimento do bebê. Caracteriza-se pela falta de uma enzima que degrada o aminoácido fenilalanina, acarretando um acúmulo de ácidos tóxicos para o cérebro. O tratamento é feito pelo controle permanente da dieta alimentar, que deve ser pobre em proteínas e suplementada por uma mistura de aminoácidos isenta de fenilalanina e acrescida de minerais, vitaminas e outros nutrientes. Pode provocar deficiência intelectual, crises convulsivas e microcefalia.
- Fibrose cística: também chamada de mucoviscidose, é uma doença grave que causa infecções de repetição e problemas pancreáticos. Também pode ser diagnosticada no teste do pezinho. O paciente necessita de medicação pelo resto da vida para prevenir infecções pulmonares e problemas intestinais.
- Hipertensão arterial pulmonar: uma síndrome que pode ser consequência de um quadro inflamatório, hereditário, associado a outras doenças ou, às vezes, sem causa definida, que provoca um estreitamento das artérias pulmonares e falência cardíaca, que é a causa de morte. Pode ser congênita (a criança nasce com a doença) ou não, ocorrendo também como problema secundário a outra doença (HIV, hepatite C, doenças reumatológicas). Medicamentos vasodilatadores melhoram a circulação sanguínea e a absorção de oxigênio.
- Neurofibromatose: surgem manchas de cor café com leite no corpo e neurofibromas, que são pequenos tumores, embaixo da pele. Predispõe a tumores diversos.
- Síndrome de Turner: manifesta-se quando existe a ausência de um dos cromossomos X. A prevalência é de um caso a cada 2,5 mil mulheres. Causa baixa estatura, cardiopatia e infertilidade. O tratamento é feito com hormônio de crescimento e reposição hormonal. Se o paciente não é tratado, sua altura pode ficar em torno de 1m40cm.
- Síndrome de Rett: diagnosticada apenas em mulheres. Caracteriza-se por microcefalia e deficiência intelectual grave com degeneração (progressivamente, a criança vai perdendo a capacidade de andar).
- Síndrome do X frágil: deficiência intelectual ligada ao cromossomo X, é herdada da mãe e atinge um a cada 4 mil meninos e uma a cada 7,5 mil meninas. Como os homens têm apenas um cromossomo X, e as meninas, dois, a síndrome é mais grave e mais comum em indivíduos do sexo masculino.
Fontes: cardiologista Gisela Martina Bohns Meyer e geneticista Têmis Maria Félix
O que diz a legislação
- Está em vigor a portaria número 199, de 30 de janeiro de 2014, que institui a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, aprova as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e institui incentivos financeiros de custeio. O texto pode ser acesso em bit.ly/_doencasraras.
- Em outubro de 2018, a Subcomissão Especial sobre Doenças Raras, no Senado, teve seu parecer final aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais. O texto apresenta iniciativas para promoção e defesa dos direitos dos pacientes com doenças raras e propõe aprimoramentos na legislação específica, incluindo mais agilidade da Anvisa para facilitar a pesquisa e o registro de medicamentos, além da incorporação e distribuição de novos remédios pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O relatório manifesta apoio ao Projeto de Lei da Câmara (PLC) de número 56/2016, que institui a Política Nacional para Doenças Raras no Sistema Único de Saúde (SUS). A tramitação do PLC 56/2016 foi encerrada no Congresso Nacional e aguarda avaliação do presidente da República.