Desabafos dramáticos sobre distúrbios emocionais, ideação e tentativas de suicídio, além de assédio moral e má conduta por parte de professores, estão surgindo na página do Facebook Previamente Hígido, criada por estudantes da Faculdade de Medicina (Famed) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no mês passado. Os relatos são anônimos, indicando apenas o sexo e a idade de quem submete seu depoimento. A iniciativa foi de alunos do curso, alarmados com a quantidade de casos de colegas doentes e em sofrimento – há também testemunhos de médicos formados – e desgostosos com práticas que consideram arbitrárias, para que expusessem suas vivências, "questões essas muitas vezes negligenciadas pela faculdade", segundo o texto de apresentação.
"Na véspera de uma prova final, quando uma colega falava sobre estudar, tive uma crise feia de ansiedade, pela simples menção de estudar mais. Eu estava esgotada e fui para casa decidida a me matar. Ainda não entendo como, mas consegui sair do estado entorpecido e lutar contra isso. Em 2016, na transição entre o terceiro e quarto semestre, eu também me sentia esgotada, e naquela ocasião de fato tentei suicídio", conta uma jovem de 23 anos em um dos posts.
Em outro texto, uma médica de 25 anos cita um episódio em que "o professor era desrespeitoso com as pacientes, sendo irônico com a falta de orientação delas (muitas vezes fazia piadas sem que elas percebessem) ou sendo desrespeitoso com nós estudantes enquanto atendíamos o paciente". Ela acrescenta que, em certa ocasião, aproveitando que o professor perguntara sobre como estava o estágio, comentou que era possível aprender mais e ter mais vontade de estudar quando ele era respeitoso com alunos e pacientes. "O professor mudou as feições, me tratou diferente e achou um absurdo minha queixa, como se ele nunca tivesse feito isso, como se eu tivesse inventando essa história de desrespeito ou fosse uma mentira deslavada. Ele riu da minha cara e disse: 'Onde já se viu um soldado falar para um general (fez uma voz fininha e continuou debochando): 'Por favor, seu general, me trate com mais respeito?' E continuou rindo e mostrando para os meus colegas o quanto eu era ridícula", continua a médica.
Lúcia Maria Kliemann, diretora da Famed, classificou os relatos como "chocantes" e alegou desconhecer esses fatos.
O nome da página ("hígido" é sinônimo de "sadio"), que já soma mais de 800 curtidas, faz referência a um jargão da profissão, utilizado para descrever o paciente em exame que estava bem até então – e também cabe para definir, conforme explicam os moderadores, o estado dos alunos antes de ingressar no concorrido curso de Medicina. A ideia dos idealizadores é chamar a atenção de professores e da direção da instituição e prestar auxílio a quem pedir orientação, encaminhando os alunos para o atendimento de profissionais especializados. "Se necessário, não hesite em contactar o CVV (Centro de Valorização da Vida) através do telefone 188. O centro presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo. A ligação é gratuita!", informa a página.
– Não posso dizer que algum relato me surpreendeu. É sempre chocante, claro, mas a gente sabia que isso acontecia e que a situação estava nesse nível. De tentativas de suicídio, tem vários relatos, eu já sabia. Isso está acontecendo. Os professores falam que na época deles não era assim. Várias coisas chegam à Comgrad (Comissão de Graduação), mas não vemos um movimento para mudar, para nos dar mais apoio – afirma uma das criadoras do Previamente Hígido, de 23 anos, que não quis se identificar temendo represálias. – Tivemos muitas reuniões com a Comgrad. Numa delas, falaram coisas absurdas: "Se os alunos de Medicina não aguentam uma prova, o que vocês vão aguentar?". De um médico, ouvimos: "A faculdade não provoca problemas psicológicos".
"Modelo autoritário" e "competição absurda"
Professora da Famed e preceptora da residência médica em Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Simone Hauck é muito procurada por graduandos com problemas. Na sua época de estudante, relembra, ocorriam casos semelhantes aos narrados hoje, mas que acabavam não vindo à tona. Hoje em dia, Simone acredita que as situações ganham mais visibilidade e que há estressores novos, como o baixo nível socioeconômico de alguns alunos – em decorrência do sistema de cotas, turmas antes repletas de filhos de famílias de grande poder aquisitivo se tornaram mais heterogêneas. Ela ressalta ainda outras características que tornam a graduação médica tão desafiadora, do ingresso à conclusão.
– O modelo é, muitas vezes, autoritário, tem uma competição absurda, a cultura é de que você tem que sobreviver a qualquer custo. A carga horária do curso de Medicina é muito maior, a demanda de trabalho é muito maior, e o contato com doença e morte é muito difícil. Dizer para uma mãe que o filho morreu, dizer que uma doença é terminal... Sofrer ou adoecer durante essa trajetória é esperado. São pessoas. Faz parte da formação médica – comenta Simone. – Isso talvez torne alguns professores mais frios. Não é que os professores sejam vilões, eles também são vítimas, lidam com uma carga alta. Não acho que alguém que maltrate um aluno ostensivamente esteja bem. Temos que desenvolver uma couraça, mas uma couraça saudável. Não tenho que me anestesiar para o sofrimento, mas desenvolver algo maduro e saudável que ajude a auxiliar o paciente – acrescenta.
Para buscar respostas e descobrir maneiras de tornar o ambiente e os semestres menos sacrificantes, Simone deu início, recentemente, à coleta de dados para um estudo que envolve cerca de 15 pesquisadores e pretende englobar todos os alunos da Famed ao longo de pelo menos seis anos. Os resultados devem ser apresentados à comunidade docente e discente periodicamente, para que se possa pensar sobre a realidade e possíveis soluções.
– Uma aluna me falou: "Será que não é verdade que a gente é fraco?". Não acho que eles são mais fracos, acho que eles talvez sejam mais fortes. Eles não aceitarem algumas coisas tem um lado positivo, é resultado de uma mudança na sociedade. Os alunos têm menos vergonha de pedir ajuda – analisa Simone. – Queremos nos aprofundar muito, entender as pessoas, o que faz o aluno adoecer, o que o faz ir em direção a uma identidade profissional saudável. Queremos entender o fenômeno e desenvolver intervenções que possam ser aproveitadas em outras instituições.