Diariamente, as três filhas da faxineira Deise Regina Pereira, 30 anos, tomam café da manhã, lanche, almoço e café da tarde nas escolas públicas em que estudam, localizadas na Vila Mapa, bairro Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre. A filha mais nova, de quatro anos, come até vazio assado na hora do almoço. Como a fome é saciada em refeitório escolar, as meninas só jantam uma fruta em casa. A situação contrasta com a da mãe: com a alta no preço de alimentos, Deise, que sustenta a família sozinha, leva alguns segundos para relembrar a última vez em que comeu carne vermelha. Faz como milhões de mães brasileiras e se sacrifica pelas filhas.
— Faz tempo que comi carne. Acho que a última vez foi no Natal. No dia a dia, consigo comprar ovo e, quando tem promoção, frango. Carne pesa muito no bolso — conta Deise, que perdeu na pandemia o emprego de auxiliar de serviços gerais e hoje trabalha com faxina.
Todos os dias, 40,3 milhões de crianças e adolescentes se alimentam gratuitamente em escolas públicas de todo o país. É como se, diariamente, o Brasil colocasse um exército de merendeiras para matar a fome de quase toda a população da Argentina. Mas, em meio ao empobrecimento dos brasileiros, com 33 milhões de pessoas passando fome todos os dias, segundo pesquisa divulgada em junho pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), cresce o número de crianças que comem carne ou consomem a única refeição do dia apenas na escola.
O cenário reforça a importância da merenda escolar – que garante a frequência às aulas e o crescimento com saúde. São fartos os estudos mostrando que a alimentação equilibrada está relacionada ao bom desempenho em aula. A fome reduz foco, memória e capacidade de raciocínio. Desnutrida, a criança desenvolve menos conexões neurais – o que, no futuro, pode prejudicar a ascensão social.
— Há evidências sólidas mostrando a influência entre boa alimentação e desenvolvimento cognitivo e também retenção escolar. A alimentação é uma política pública importante. Nós não podemos dar conta de toda a família, mas ao menos as crianças na escola se alimentam bem. Sem fome, vão ser mais saudáveis, menos obesas, aprender melhor e vão contribuir mais para a sociedade — comenta a nutricionista Sílvia Pauli, coordenadora da alimentação escolar da Secretaria Municipal de Educação (Smed) de Porto Alegre.
Na capital gaúcha, que tem a cesta básica mais cara do país, 23 milhões de refeições são servidas a cada ano a 68 mil crianças matriculadas em escolas da rede municipal. A prefeitura lida, assim como qualquer brasileiro, com a alta no preço de alimentos como arroz, feijão, carne, leite, tomate, óleo, açúcar e café. O quilo do leite em pó passou de R$ 24 no início do ano para R$ 41 nos últimos dias.
Faz tempo que comi carne. Acho que a última vez foi no Natal. No dia a dia, consigo comprar ovo e, quando tem promoção, frango"
DEISE REGINA PEREIRA
Mãe de três filhos que se alimentam na escola
Na prática, a merenda escolar funciona como transferência indireta de renda, já que alivia os gastos de brasileiros. É o que ocorre no orçamento da costureira venezuelana Maira Sifontes, 42 anos: ela vive há três anos no Brasil e hoje mora com marido e dois filhos em Dois Irmãos, no Vale do Sinos. Maira ainda se admira com a variedade de comida servida pela escola pública no almoço do filho Richard, quatro anos, matriculado em turno integral de uma escola municipal. Na Venezuela, ela conta, carne vermelha e frango “são coisa de gente rica” e muitos vegetais no prato são incomuns no dia a dia. Do sul do Brasil, ela só reclama do frio.
— Desde que chegamos aqui, não passamos fome. Meu filho come o dia todo na escola. Gosta de feijão, brócolis, cenoura, arroz, espaguete. Para mim, o Brasil está muito melhor do que a Venezuela. Estou muito agradecida — diz a costureira.
Maior gasto é das prefeituras
Alimentar 40,3 milhões de crianças é possível graças a uma gigantesca política pública existente há mais de 60 anos, admirada no mundo inteiro, inclusive por países ricos: o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). A estratégia é financiada em parte pelo Ministério da Educação (MEC) e em parte por Estados (no caso da merenda de escolas estaduais) ou por prefeituras (quando a comida é servida em escolas municipais).
A verba repassada pela União é considerada baixa por gestores e pesquisadores: começa em R$ 0,36 por dia para cada aluno do Ensino Fundamental ou Médio – não paga, portanto, um copo de leite – até R$ 2 diários por aluno de Ensino Médio em turno integral, modalidade que demanda quatro refeições, incluindo almoço com carne.
O valor representa pouco frente ao gasto real com alimentos: em solo gaúcho, prefeituras gastam de R$ 3 a R$ 5 por dia com cada estudante, conforme a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs).
Os valores per capita repassados pelo governo federal não são atualizados há cinco anos, a despeito da inflação. O Congresso chegou a aprovar um reajuste e incluiu a medida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), mas o presidente Jair Bolsonaro vetou o aumento no último dia 10, sob a justificativa de que a medida “contraria o interesse público” e que pesaria o orçamento do governo.
— A insegurança alimentar é fruto de duas coisas: desigualdade alta associada com pobreza, ou seja, muitas pessoas pobres em país desigual, e uma rede de abastecimento mal estruturada. O problema da fome no mundo não é falta de alimento, mas distribuição. Temos alimentos o suficiente, o problema é distribuir. Se não ofereço merenda de qualidade, perco a criança do ponto de vista de desenvolvimento. Ninguém estuda com fome — diz José Ely Mattos, professor de Economia na PUCRS.
O Observatório da Alimentação Escolar, reunião de organizações da sociedade civil, repudiou o veto. “A fome em domicílios com crianças menores de 10 anos subiu de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. A essas crianças, que têm na alimentação escolar uma das mais importantes refeições do dia, está sendo negado o direito à alimentação”, afirmou a entidade, em nota.
O total transferido do MEC para Estados e municípios ainda caiu em 2021, apesar do avanço da fome, destaca estudo da Associação Nacional de Pesquisadores em Financiamento da Educação (Fineduca). A redução sofre influência da queda no número de matrículas, mas reflete a estratégia do governo federal de conter gastos públicos, avalia Nalú Farenzena, vice-presidente da Fineduca e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— Desde 2017, não há atualização no valor per capita destinado para alunos. Mesmo que as matrículas tenham caído, o valor poderia ter sido reajustado, e aí o repasse do programa não teria caído tanto em termos reais. Há uma contenção de despesas que é parte da política de austeridade do governo federal, mas o resultado compromete o direito à alimentação e o direito à educação. O programa fica sem dar a contribuição devida para minimizar a insegurança alimentar no país, e isso também prejudica a agricultura familiar — diz a pesquisadora de financiamento da educação.
Em resposta aos questionamentos de GZH, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão do MEC responsável por repassar a verba federal para a merenda escolar, afirmou por meio de nota que “o único componente variável ano a ano é a quantidade de estudantes, ou seja, não houve diminuição nos recursos repassados” pelo programa de merenda escolar.
Indagado sobre as críticas da Fineduca, o FNDE responde que é favorável a aumentar a verba destinada à merenda escolar, mas que o aumento depende da área econômica do governo federal. “É importante registrar que o processo de elaboração orçamentária do Pnae segue o mesmo trâmite das demais despesas primárias do orçamento da União: a área gestora elabora sua necessidade de acordo com as regras do programa em meados do ano anterior, considerando o limite monetário definido pelo Ministério da Economia. Sobre o aumento do valor per capita a ser repassado, a posição técnica do FNDE é favorável. Cabe esclarecer que essa seria uma despesa permanente e não excepcional, demandando, assim, ampliação do orçamento alocado na ação orçamentária do Pnae, e consequentemente, no orçamento da União, o que depende fundamentalmente de autorização legislativa e de espaço fiscal”, afirma o órgão.
Contatado, o Ministério da Economia enviou trecho do decreto de veto assinado por Bolsonaro: “A proposição legislativa contraria o interesse público tendo em vista que incluiria valores mínimos específicos para programações do Ministério da Educação (referentes a universidades e institutos em geral, bolsa permanência e alimentação escolar), corrigidos na forma do teto de gastos, mas contabilizados dentro dos limites individualizados do Poder Executivo. A referida medida implicaria aumento da rigidez orçamentária e limitaria as decisões alocativas do Poder Executivo”.
Consequência: desigualdade
A pressão pelo reajuste do valor enviado por aluno é uma demanda de prefeitos e governadores, que, em um cenário de inflação em alta, aumentam gradativamente o aporte próprio para evitar que falte comida nas escolas. Como resultado, gestores municipais deixam de usar dinheiro em outras áreas da educação, explica o presidente da Famurs e prefeito de Restinga Seca, na Região Central, Paulinho Salerno.
— O valor que vem da União não é suficiente, e as prefeituras precisam entrar com valor bem maior. Com o dinheiro que o governo federal dá, seria possível comprar no máximo uma fruta e uma bolacha. Imagina na creche, quando crianças ficam todos os dias e tem leite para dar. Complementamos a diferença com recurso que poderia ser usado para outros investimentos na educação — diz Salerno.
O valor que vem da União não é suficiente, e as prefeituras precisam entrar com valor bem maior. Com o dinheiro que o governo federal dá, seria possível comprar no máximo uma fruta e uma bolacha."
PAULINHO SALERNO
Presidente da Famurs e prefeito de Restinga Seca
Quando municípios precisam entrar com caixa próprio para alimentar crianças, o repasse reduzido de verbas federais para merenda resulta em desigualdade no acesso à alimentação pelo Brasil, acrescenta o porta-voz de prefeitos gaúchos. Se uma criança nasceu em uma cidade rica, com grande arrecadação de impostos, a escola servirá uma merenda mais saudável do que em um município que depende da verba da União.
— Alguns municípios têm condições de colocar mais recursos, outros, de colocar menos. Como os valores repassados pela União são muito aquém dos custos, há uma diferença entre a alimentação escolar entre municípios, e claro que aqueles que têm melhor condição orçamentária proporcionarão uma merenda melhor e com mais produtos – acrescenta o presidente da Famurs.
Para evitar a piora na alimentação de estudantes, a Secretaria Estadual da Educação do Rio Grande do Sul (Seduc) lançou, em fevereiro deste ano, o programa Merenda Melhor. A ação estabelece que, para além dos R$ 0,36 diários enviados pela União para cada aluno, o governo gaúcho inteire outros R$ 0,80 do caixa estadual, totalizando R$ 1,16 diários para a alimentação de cada estudante da rede estadual. O total investido até dezembro pelo Piratini será de R$ 130 milhões.
“Com essa ação, em vez de serem servidos alimentos como pães ou bolachas, estão sendo oferecidas refeições quentes (comida de panela) todos os dias. Além desse aumento no repasse para todos os estabelecimentos de ensino da rede estadual, para as escolas localizadas em ambientes mais vulneráveis foi implantado o cardápio com duas refeições por turno, com um investimento de R$ 1,07 por dia por parte do governo do Estado. A ação começou por 45 instituições de ensino que integram o Programa RS Seguro no primeiro semestre de 2022 e terá expansão gradual a todos os territórios gaúchos. No caso das escolas em tempo integral, são disponibilizadas quatro refeições com um investimento de R$ 2,43 por dia oriundo do repasse do governo do Estado”, afirmou a Seduc, por nota.
Uma lei de 2009 determina que ao menos 30% dos alimentos devem ser comprados de agricultura familiar, uma forma de girar a economia local e garantir produtos mais frescos. O cardápio das escolas é escolhido por nutricionistas concursados, com base em exigências de consumo de carboidratos, proteínas e lipídios definidas em lei, além de levar em conta a diversidade culinária local e a oferta de agricultores da região.
Como resultado, o cardápio da merenda varia a depender da região do país. No Rio Grande do Sul, crianças consumirão laranja, bergamota e morango com frequência, enquanto crianças do Pará comerão açaí e, na Bahia, cuscuz de tapioca.
Após a retomada das aulas presenciais, a diretora da Escola Jardim da Alegria, Andréia Andriola, percebe que muitas crianças fazem a primeira refeição do dia na escola – a família, então, guarda a comida para o jantar. Para a família da faxineira Deise, a merenda salva o dinheiro para outros gastos domésticos.
— Elas comendo na escola, o que eu ia gastar em comida consigo comprar o que falta, como arroz e feijão, que estão muito caros — conta a mãe.