Na segunda semana de julho, a diretora de Segurança Alimentar e Nutricional da prefeitura de Caxias do Sul, Cristina Fabian Gregoletto, ligou para o Ministério da Cidadania com uma angústia: saber quando o município voltará a receber recursos do projeto federal que compra alimentos de produtores familiares para doar a populações vulneráveis. Não obteve resposta. A falta de previsão no município da Serra ilustra o cenário do Programa Alimenta Brasil (PAB) em todo o país: destinado a ajudar no sustento de pequenos agricultores e a encher a barriga de quem tem fome, ele próprio passou a definhar.
O valor executado caiu de R$ 361,9 milhões, em 2011, para R$ 10 milhões em nível nacional no ano passado – um recuo de 97%, conforme o Portal de Transparência da iniciativa. A esperança de prefeitos, produtores e famintos é de que se cumpra a promessa de um repasse emergencial de R$ 500 milhões vinculados à PEC dos Benefícios (aprovada pouco antes do recesso parlamentar de inverno, no Congresso), mas a falta de regularidade no financiamento é outra preocupação.
— Recebemos a última parcela em abril de 2020, que foi executada até abril do ano passado. Seguimos sem saber quando voltaremos a contar com o programa, muito importante para estimular a agricultura familiar e melhorar a qualidade alimentar da população — lamenta Cristina.
O projeto, rebatizado no ano passado pelo governo Jair Bolsonaro, foi criado em 2003 com o nome de Programa de Aquisição de Alimentos. O objetivo era provocar um duplo impacto social: estimular a agricultura familiar ao comprar produtos exclusivamente de pequenos produtores e aliviar a miséria por meio da doação dos itens para quem necessita.
A progressiva diminuição no volume de recursos, uma exceção foi 2020 em razão do esforço decorrente do combate à pandemia (veja gráfico), coincide com a disparada da pobreza no país em função da crise econômica.
De volta ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), o país hoje tem 60 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, e 15 milhões passam fome. Entre 2014 e 2016, em comparação, havia cerca de 4 milhões nessa condição mais precária.
O Alimenta Brasil conta com verba orçamentária do Ministério da Cidadania, mas recentemente passou a depender em maior grau de emendas parlamentares. O dinheiro pode ser encaminhado a governos estaduais, que repassam às prefeituras, ou de forma direta a municípios. Em nível de gestão estadual, os últimos reais ainda disponíveis foram gastos até maio.
— No momento, não temos mais projetos em execução ou recursos para novos projetos. Já solicitamos nova previsão (de retomada) ao Ministério da Cidadania, mas ainda não recebemos uma definição — revela a diretora do Departamento de Agricultura Familiar e da Agroindústria da Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural, Bruna Fogiato.
Variação
A Cooperativa Agropecuária de Sertão Santana, por exemplo, foi uma das últimas beneficiadas pelo programa no Rio Grande do Sul. Recebeu cerca de R$ 120 mil em 2020 para fornecer produtos como suco de uva e vegetais e, desde então, a fonte secou.
— O programa foi diminuindo ao longo dos anos, e quando virou Alimenta Brasil, parou completamente de comprar da nossa cooperativa. Antes disso, todo ano conseguíamos vender alguma coisa, o que ajudava bastante nossos 130 associados — afirma o vice-presidente da entidade, Jorge Fernando Ritter.
Em todo o país, a quantidade de agricultores contemplados variou de 4,7 mil, em 2019, para 31,1 mil, em 2020, e apenas 2,8 mil no ano passado. Não foi informado o número de pessoas beneficiadas com doações.
O que diz o governo federal
GZH procurou o Ministério da Cidadania por telefone e e-mail ao longo de uma semana, mas não obteve retorno. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que recebe recursos da pasta para operacionalizar o programa, informou apenas que o Portal de Transparência apresenta valores já executados (pagos), mas aponta que o total contratado (que inclui verbas não liquidadas) pode ser mais elevado. Em 2021, por exemplo, o valor orçado chegava a R$ 19 milhões, em comparação aos R$ 10 milhões relatados na página de transparência. A Conab informou não ter dados anteriores a 2019, o que dificulta comparações.
Escassez que prejudica famílias
A diminuição nos recursos pagos pelo programa Alimenta Brasil afeta famílias, crianças e pequenos produtores cadastrados como fornecedores e organizações sociais que necessitam das verbas do governo federal. Para exemplificar o impacto do encolhimento da iniciativa em solo gaúcho, GZH conversou com representantes de toda a cadeia do programa (que privilegia a compra e a doação dentro de um município), em Caxias do Sul.
A propriedade dos irmãos Jones e Joel Dalpiaz, no 1º Distrito, costumava fornecer produtos como beterraba, repolho, brócolis e frutas para o projeto federal. A intenção da dupla de agricultores, que contava com três tratores, era comprar mais um para incrementar a produtividade. Mas os cortes no Alimenta Brasil inverteram os planos.
— Tivemos de vender um dos tratores — conta Jones.
A comida negociada pelos irmãos e demais produtores do município, segundo a diretora de Segurança Alimentar e Nutricional de Caxias, Cristina Gregoletto, beneficiava 106 entidades cadastradas na prefeitura para receber os mantimentos.
— Já chegamos a executar R$ 1,7 milhão (anuais) pelo convênio. A última remessa foi de R$ 400 mil, em abril de 2020, e foi executada até abril de 2021 — diz a diretora.
A redução provoca prejuízos crescentes na ponta final do programa: a mesa de refeições. Conforme Cristina, as entregas de frutas e hortaliças pelo banco de alimentos municipal, que era semanal, virou quinzenal e, agora, passará a ser mensal. A situação só não é pior porque o município segue buscando outras fontes e doações.
A assistente social Maria de Fátima Santos Manique, da Associação Criança Feliz afirma que a escassez vem comprometendo a qualidade alimentar de 230 crianças e adolescentes de seis a 16 anos atendidos pela entidade no contraturno escolar, além de suas famílias:
— Antigamente, distribuíamos o excedente para as famílias das crianças. Agora, só receberemos frutas e hortaliças, pelo programa, uma vez por mês.
“É preciso ter uma política de Estado”, diz assistente social
Uma das esperanças de quem contava com o antigo programa de compra e doação de alimentos ou o renovado Alimenta Brasil é de que se cumpra a previsão de repasse de meio bilhão de reais este ano por meio da aprovação da PEC dos Benefícios.
A confirmação da medida, no entanto, não traz alívio definitivo para pequenos agricultores ou gestores de ONGs pelo fato de ser um recurso extraordinário e não o saldo de uma política pública regular com garantia de financiamento.
— Para nós a questão é a seguinte: se esse recurso for realmente liberado, o que seria ótimo, como voltamos a ficar depois do dia 31 de dezembro? É preciso ter política de Estado para combater a fome de maneira eficaz, permitindo que a gente trabalhe com planejamento e segurança — avalia a assistente social Maria de Fátima Santos Manique, que atua na ONG Associação Criança Feliz, de Caxias do Sul.
Outra preocupação dos beneficiados pelo projeto é se o valor previsto será de fato aplicado na íntegra, já que nem sempre os orçamentos são executados por inteiro.
— Na prática, muitas vezes o dinheiro previsto acaba sendo remanejado para investir em outras áreas — observa o presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Estado (Fetraf-RS), Douglas Cenci.
Cenci estima que o valor necessário para aplacar a fome atualmente no país chegaria a cerca de R$ 3 bilhões em um ano. Outro obstáculo no caminho do dinheiro até chegar à mesa da população é a burocracia envolvida: mesmo após a liberação do recurso, é preciso elaborar editais para selecionar os fornecedores, operacionalizar a aquisição e a distribuição dos mantimentos. Tradicionalmente, os editais de anos anteriores previam até um ano para a execução dos valores disponibilizados.