Quando se fala em sequelas da covid-19, logo se pensa em problemas objetivos, como falta de ar, cansaço ou perda de memória. Há, contudo, um dano silencioso decorrente da necessidade de fechar escolas durante a pandemia – a defasagem educacional, que afetou especialmente estudantes de escolas públicas. Para combater esse déficit, a prefeitura de Passo Fundo inaugurou neste mês o Centro Pós-Covid de Combate à Desigualdade Educacional. O local oferece atendimento multidisciplinar para alunos da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do município.
Cheio de brinquedos nas salas e ilustrações nas paredes, o recém-inaugurado prédio do Centro Pós-Covid, na Rua Antônio Araújo, região central de Passo Fundo, foi pensado de forma a tornar o processo de tratamento mais leve para as crianças. Segundo o secretário municipal da Educação, Adriano Canabarro Teixeira, desde antes da pandemia já havia uma demanda por parte das escolas por apoio com atendimentos psicológicos e outros serviços para além das dificuldades pedagógicas. Com o isolamento social, a necessidade se tornou ainda maior.
— A nossa rede atende 18 mil alunos, oriundos de realidades sociais muito diversas. Para alguns, a escola é o único suporte possível. Já prevíamos que, depois da pandemia, surgiriam questões que dificultariam o aprendizado das crianças. Por isso, desde ano passado começamos a pensar como potencializar o que já tínhamos na rede de forma a suprir essa demanda — relata o secretário.
Rochele Tondello da Silva, que coordena o Centro Pós-Covid, relata que, após o período de isolamento social, se tornou mais difícil diagnosticar qual era a dificuldade de cada criança – se pedagógica ou patológica.
— Não se sabia mais se a dificuldade era por não ter a escola aberta, por não ter o acesso às aulas, por não ter acompanhado as atividades ou se realmente a criança tinha uma deficiência. A partir de muito estudo com o secretário e as equipes gestoras, chegamos a um modelo para combater a desigualdade educacional em toda essas questões — explica Rochele.
Optou-se, então, por aproveitar os recursos humanos oferecidos antes no Centro Municipal de Atendimento ao Educando (Cemae), que era menor, funcionava em outro espaço e visava especialmente o público da Educação Especial. Agora, a equipe do Centro Pós-Covid inclui profissionais de diferentes áreas da pedagogia e da saúde, como a psicopedagogia, a psicomotricidade, as altas habilidades, a estimulação precoce, o atendimento educacional especializado, a fonoaudiologia, a neurologia, a psiquiatria, a pediatria e a fisioterapia.
O que é jornalismo de soluções?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
O encaminhamento é feito pelas próprias escolas, quando identificam alguma dificuldade no estudante. A direção, então, entra em contato com a família da criança, oferece o serviço e solicita uma vaga para aquele aluno no Centro Pós-Covid. Com o atendimento iniciado no dia 9 de maio, até esta quinta-feira (19), cerca de 80 consultas já foram oferecidas por sete profissionais da área pedagógica. Outros oito especialistas estão sendo contratados na área da saúde.
Ainda não é possível precisar qual será a capacidade de atendimento do Centro. Pioneiro, o serviço visa solucionar o impacto do isolamento social de forma integrada, o que não existe nesse formato em nenhum outro local, conforme o secretário da Educação. Por isso, tudo nele é novidade.
— Essa forma de trabalho pode parecer óbvia, mas não é trivial. Se tu procurares, não vais achar um espaço com essa proposta em outro local. Por isso, nós partimos do que consideramos que seria o ideal, com uma equipe multiprofissional que precisa se reunir e entender como vai ser esse processo — pontua Teixeira.
A ideia é que o Centro Pós-Covid faça diagnósticos, atendimentos pontuais e também tratamentos por um período mais longo, sempre de forma integrada às escolas. O secretário visa, ainda, fazer capacitações para os professores em questões pós-covid.
— A gente tem uma complexidade em sala de aula que nunca se viu. Tem questões que não necessariamente têm a ver com a covid, mas também situações ligadas à progressão do aluno. Tem aluno que está no sétimo ano hoje, mas que no quinto ano deixou de ir à escola e mesmo assim foi passando de ano, não só aqui no município, mas em qualquer lugar. A ideia é que venham para cá só aqueles casos que não foram resolvidos dentro da escola — ressalta Teixeira.
Ainda em fase de implementação, mesmo que com metodologia e instrumentos de avaliação já definidos, o Centro Pós-Covid surge como uma possibilidade de resolução ou amenização da defasagem educacional que preocupa municípios e estados de todo o Brasil.
Impaciência, dificuldade de concentração e problemas motores
A auxiliar de sanificação Silvana Pereira, 43 anos, é mãe de uma das primeiras crianças atendidas no local. Renan Pereira da Rosa, oito anos, vem apresentando impaciência na hora de estudar.
— O Renan se emburra e fica muito tempo emburrado. Aí, ele veio fazer uma avaliação pra ver se isso é normal, se é da idade. Ele costuma fazer tudo na aula, mas, de repente, fica emburrado e fica uma três horas assim — conta Silvana, que suspeita que a mudança possa ter a ver com o nascimento do novo irmãozinho.
"Tem aluno que está no sétimo ano hoje, mas que no quinto ano deixou de ir à escola e mesmo assim foi passando de ano, não só aqui no município, mas em qualquer lugar"
ADRIANO CANABARRO TEIXEIRA
Secretário de Educação de Passo Fundo
O processo de alfabetização do menino foi iniciado durante o período de aulas remotas. A mãe lembra que foi um período de muita dificuldade.
— Ele estava recém começando as aulas e não sabia muita coisa, aí eu tinha que ajudar, e ele não gostava muito de parar aquele tempo, porque ele não sabia fazer, aí ficava brabo. E tem coisas que a gente não lembra muito bem pra poder ajudar — comenta a auxiliar de sanificação.
A repositora de supermercado Jessica Adamy Ferreira, 29 anos, aguardava o final do atendimento da sua filha, Yasmin Adamy Moraes, seis anos, quando conversou com a reportagem de GZH. No caso da menina, as dificuldades encontradas são falta de concentração e problemas de motricidade.
— A Yasmin começa a fazer uma coisa e não continua, acaba se dispersando e não faz as atividades que foram passadas pra ela. Isso acontece principalmente nas atividades de Língua Portuguesa. Acho que ela tenta fazer, não consegue e acaba se desmotivando — analisa Jessica.
Durante a pandemia, Jessica, a avó, o pai e a tia de Yasmin se revezaram para tentar criar uma rotina de estudos para a menina. No entanto, a falta da frequência nas aulas de Educação Infantil deixou lacunas claras:
— A gente vê toda a dificuldade que ela tem. Até dificuldade para pegar um lápis certo.
Cidade Educadora
Com tradição em educação, Passo Fundo conta com um plano de combate à desigualdade educacional que tem, ainda, avaliações diagnósticas informatizadas semestrais, atividades individualizadas de reforço e uma equipe de professores que criam conteúdos digitais e ministram aulas síncronas para suprir as defasagens.
O município também faz parte de um grupo de sete cidades da região Norte do RS que se reuniram para planejar iniciativas de educação para além da escola. O projeto Cidades Educadoras, coordenado na região Norte do RS pela Universidade de Passo Fundo (UPF), propõe que crianças apontem os problemas e os desafios para a sua cidade e proponham alternativas e soluções.
A região Norte do RS é a que concentra o maior número de Cidades Educadoras do Brasil. O título é concedido pela Associação Internacional de Cidades Educadoras (AICE), após um processo de adesão. Com o apoio da UPF, os municípios de Passo Fundo, Carazinho, Guaporé, Marau, Sarandi, Soledade e Camargo integram o movimento internacional. Nesta quinta (19) e sexta-feira (20), ocorre o III Encontro das Cidades Educadoras, em Marau. Quem adere à Carta das Cidades Educadoras assume um compromisso de revitalizar os espaços públicos, ter como foco a formação das crianças e dos jovens, possuir um plano municipal amplo de educação e democratizar os bens culturais.