Um passo de cada vez e, de preferência, olhando nos olhos do outro para entender o que está se passando com ele. Para especialistas em saúde mental, só a interação social, que vai desde as conversas em família até o convívio com colegas e professores, será capaz de reduzir a inquietude atual apresentada por crianças e adolescentes, seja em casa ou na escola.
Se tornou cena comum crianças se dizendo entediadas em casa e estudantes impacientes com aulas prolongadas, falta de atenção às explicações e de foco para leitura e o despertar de medos antes considerados incomuns. No Colégio Santa Inês, em Porto Alegre, a equipe de coordenação pedagógica percebeu uma mudança de comportamento em pelo menos 30% dos estudantes no retorno às aulas presenciais, em 21 de fevereiro.
Segundo a coordenadora Pedagógica do Ensino Fundamental Anos Iniciais da instituição, Viviane Nectoux, parte dos alunos demonstrou ansiedade mais frequente, dificuldade de concentração, pouco tempo de tolerância para ficar em sala de aula e medos que antes da pandemia não costumavam ocorrer, como temor pela chegada da chuva.
— Observamos as crianças entrando na escola com uma postura cabisbaixa, ombros caídos, apresentando dores no corpo por ficarem sentados nas suas cadeirinhas e até desorganização na mesa escolar, porque muitos vinham trabalhando na mesa da sala de casa de uma maneira mais individualizada. Por mais diferenciadas que sejam as propostas da escola, os alunos cansam com mais frequência — relata Viviane.
Para a psicóloga Giuliana Chiapin, mestre em saúde mental e desenvolvimento infantil pela Tavistock Clinic/Londres, é preciso pensar de forma global e integral questões relacionadas ao comportamento atual de crianças e adolescentes. Ela salienta que as angústias sobre o desconhecido, a ansiedade, acompanham o ser humano desde o nascimento e, ao longo da vida, é na mediação com o outro que ele vai dando forma às emoções.
— É fundamental o contato com o outro, do início da vida ao longo do desenvolvimento, pois dá ritmo e qualidade para esta compreensão ao que está ocorrendo em termos de sensações dentro de nós. Por isso, a importância de pensarmos hoje em dia como estão os outros: os pais, a escola, as equipes pedagógicas e como está a sociedade para lidar com as crianças e os adolescentes que, sim, estão sobrecarregados — explica Giuliana.
Ela alerta ainda que não se pode esquecer que seguimos na pandemia de coronavírus e a sociedade passou por uma questão histórica mundial capaz de eclodir todas as ansiedades de todos os humanos do planeta. Em outros tempos, lembra Giuliana, se a criança ou adolescente demonstrasse ansiedade ou preocupação, teria um responsável ou a escola para apoiá-lo, pois não estavam vivenciando a mesma situação. Com a pandemia, ressalta, foi diferente: todos os seres humanos passaram pelo mesmo problema. Do ponto de vista psíquico, esclarece, ficaram os registros da tensão e da eclosão desta ansiedade sem nome porque a humanidade não havia vivido algo semelhante. Todos precisaram se recolher como proteção e forma de começar a entender o que estava ocorrendo. O período mais forte da pandemia favoreceu a intensificação de medos e ansiedades já existentes em crianças e adolescentes, gerando outros sintomas.
— Estamos vivendo uma pandemia em saúde mental, com os impactos destes efeitos do que passamos na pandemia de coronavírus. A vivência neste período foi completamente diferente para cada ser humano. Em casa, os pais precisaram dar conta de tudo e dos seus filhos, com maior ou menor habilidade emocional de lidar com suas próprias angústias e também as dos filhos. Se pensarmos que as crianças e os adolescentes ainda estão numa fase de dependência da capacidade emocional dos adultos para lidar com as suas, elas foram mais exigidas neste período — explica Giuliana.
O que é jornalismo de soluções?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
A médica psiquiatra Marta Knijnik Lucion, especialista em psiquiatria da Infância e Adolescência, concorda que o impacto de ficar em casa por dois anos foi diferente para as crianças e os adolescentes com relação aos adultos. E ela justifica pela questão do desenvolvimento infantil, período de grande transição da infância até a adolescência, de crescimentos em termos cognitivos e psíquicos e de desenvolvimento cerebral intenso: até os seis anos, a família é o mais importante para a criança. No início da idade escolar, o mundo se amplia para ela e o professor passa a ser a nova referência de adulto do qual a criança espera uma validação. Na adolescência, a validação do mundo dos adultos não é tão importante e o que importa é o que os pares pensam sobre ela.
— Com a pandemia, as crianças que estavam naquela fase de ampliar o mundo, tiveram desenvolvimento diferente do esperado para o período. Ficou um gap. A vida em sociedade, fora do núcleo familiar, fez muita falta para as crianças neste período. Elas perderam este momento de aprender como é a regra social, do desenvolvimento gradual. Cabe aos adultos retomar com eles aos poucos este caminhar. São alunos que não estavam acostumadas com as regras. Por isso, haverá um período de adaptação para cada grupo — aponta Marta.
Construção do coletivo
Na escola Santa Inês, a coordenadora destaca que uma criança hoje do terceiro ano do Ensino Fundamental esteve fora da escola nos dois primeiros anos, os mais importantes para a construção do coletivo.
— Esperamos que as crianças consigam retornar ao que eram no sentido de se sentirem seguras, tranquilas e bem para aprender. Mas, óbvio, a escola jamais será a mesma. Estamos sempre repensando, aprofundando e ampliando as possibilidades para trabalharmos com os estudantes. Porque, além de todas estas questões socioemocionais, há também o compromisso de desenvolver neles habilidades fundantes que muitos deixaram de construir — alerta Viviane.
Para mudar a situação, a escola vem organizando laboratórios de aprendizagem no turno inverso para resgatar habilidades consideradas fundantes para cada nível de ensino. A escola também instalou oficinas de criação e contação de histórias para aqueles que apresentam grandes habilidades.
Em casa, tecnologia como fuga das situações da vida
Na tentativa de evitar o tédio dos filhos ou, até, para mantê-los ocupados, muitos pais optam por fornecer um celular, um tablet ou uma televisão para a criança ou adolescente se distrair. Porém, Marta destaca que o tédio faz parte da vida e é um espaço mental para a criação. O adulto, neste caso, precisa ofertar coisas menos prontas para que pensem juntos algo a fazer.
Mesmo destacando a importância das redes sociais, principalmente, durante a pandemia, Marta afirma que é preciso estar atento à qualidade do uso das telas pelas crianças e adolescentes, principalmente, se não houver interação com um ser humano do outro lado.
— Se a criança está jogando e interagindo com os amigos, não é um problema. Mas se ela está apenas passando de um vídeo para o outro, para o cérebro é um estímulo passivo, de dependência.
A psiquiatra acredita que é preciso existir um momento em que o adulto possa se desligar das desmandas, largar o celular e ter um tempo para ficar mentalmente envolvido com o filho:
— Para os pais, o principal é ter esta abertura com os filhos. Parece algo simples, mas não neste mundo acelerado que estamos vivendo. O mais importante não é o tempo que se passa com a criança, mas o quão genuíno e verdadeiro ele é.
A psicóloga Giuliana acrescenta que quando se abre mão do encontro com o ser humano para substituí-lo pela tecnologia, se prejudica o desenvolvimento psíquico. E este é um grande desafio para as escolas atualmente: como engajar e como se fazer importante para os estudantes? Os alunos têm opções de outros professores disponíveis e ensinando o mesmo conteúdo nas redes sociais, dando a sensação de que se pode acessar conhecimento a qualquer hora. É como se a presença do outro quase não fosse mais necessária. A grande sacada para se fazer presente, aponta Giuliana, é pelo vínculo. Quando o professor está pelo encontro, e não pelo conteúdo, haverá interesse da outra parte.
— Independente da tecnologia que venha, o encontro com o outro é a chave. Hoje, porém, nascemos com um telefone na mão. E isso constitui estas novas crianças e adolescentes que, sim, não conseguem acompanhar um filme infantil inteiro porque estão acostumados com vídeos curtos na internet. Em termos de cognição e processamento psíquico é péssimo. É só informação que entra, não há o processo de se emocionar, cansar, se frustrar, pensar e criar, que é o que os filmes trazem e representa o movimento do encontro com o outro. Esta alta velocidade em tudo dá a falsa ideia de não tolerância à frustração: o mundo é como eu quero, na hora e com tudo o que eu quero. Quando preciso sentar em sala de aula e prestar atenção numa matéria que não gosto, surge a incapacidade — justifica a psicóloga.
E o que fazer nestes casos? Para Giuliana e Marta, a saída é voltar ao manual: trabalhar a incapacidade, tentar encontrar uma linguagem, entender por que eles ficam o tempo todo nas telas e se falta um outro que possa interagir.
— Não vemos mais crianças gritando em restaurante, chorando ou dando gargalhada na rua porque elas estão uma tela nas mãos, rompidas com a realidade. A criança não está calma por estar com a tela. Ela está, sim, hipnotizada e abduzida. Não é silenciando uma criança que se deixa ela calma, se trabalha a calma lidando com a angústia e a frustração. Quando se tira o celular, ela se desintegra e berra porque já não consegue viver sem aquilo ali. E esta criança é aquela que depois não consegue prestar atenção em sala de aula. Não adianta dar remédio para hiperatividade e déficit de atenção. Não é que as crianças não têm foco ou estão hiperativas, elas não estão conseguindo tolerar a angústia de fazer as coisas do dia a dia, do humano — alerta Giuliana.
Ainda assim, a psicóloga garante que é possível acolher e conter estas angústias. Os métodos precisam ir se alterando, não na velocidade da música curta e do vídeo na internet para não ser mecânico. Otimista, ela afirma que as crianças ainda gostam de brincar, só não têm tanto espaço para isso. E os adolescentes amam interagir com os pares. Por isso, aqueles que dão sinais de distanciamento, precisam de atenção maior para as questões emocionais.
No consultório, depois de voltar do período em distanciamento, Giuliana não necessitou fazer alterações no ambiente. Pelo contrário, o artesanal seguiu encantando as crianças, como jogos de tabuleiro, bola, espaço para não fazer nada, desenhos e cola. Há pacientes pequenos, revela a especialista, que gastam até três tubos de cola durante uma consulta porque não têm acesso em casa para não fazerem bagunça.
Outra fórmula simples, que quase parece "mágica" e tem dado efeito no consultório, são os jogos do sério, ficar olhando um para o rosto do outro até um dos dois rir, e do piscar, que tem a mesma técnica, mas um dos dois deve piscar primeiro.
— É o encontro mais singular para olhar para o outro. E isso se tornou tão raro hoje em dia, de pararmos, não fazermos nada e só ficar se olhando, que eles se encantam de ficar fazendo jogo do sério e jogo de piscar comigo. Isso é uma desaceleração e tem muita interação, competição, respeito ao tempo do outro. E estou falando de crianças do tempo da tecnologia porque o que envolve mesmo é o investimento emocional no outro, o olhar do outro, são as emoções que ocorrem naquele encontro e é isso que nos diferencia como humanos — finaliza Giuliana.