Uma sensação corporal comum, como um formigamento após passar muito tempo com a perna cruzada, é erroneamente interpretada como sintoma de um tumor na medula, gerando grande certeza ou preocupação.
Segundo especialistas, a situação descrita é um exemplo de como o transtorno de ansiedade de doença pode se manifestar. A condição psíquica, também conhecida como hipocondria (termo menos utilizado hoje em dia por causa da conotação pejorativa associada à palavra hipocondríaco), é caracterizada pelo medo excessivo e desproporcional de ter ou contrair alguma enfermidade grave.
Pacientes com esse tipo de transtorno de ansiedade costumam ter relações peculiares com seus corpos, já que a atenção é retirada do mundo externo e focada em si próprio. Assim, qualquer alteração corporal é hipervalorizada, de forma muito obsessiva e não da perspectiva do autocuidado, explica a psicóloga clínica e psicanalista Camila Allegretti, diretora administrativa da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul (SPRGS):
— Muitas vezes, esse paciente vai interpretar erroneamente os sinais e alterações normais do corpo ou, até mesmo, as próprias funções e sensações corporais. Tudo se torna muito aflitivo e angustiante.
De acordo com Analuiza Camozzato, professora de psiquiatria da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e chefe do Serviço de Psiquiatria da Santa Casa de Misericórdia, o medo desses indivíduos se mantém mesmo após avaliações médicas e exames físicos e laboratoriais constatarem que a doença não existe. Ou seja, eles não se convencem de que não estão doentes.
O trecho do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), de 2014, sobre transtorno de ansiedade de doença destaca que as preocupações desses pacientes acerca de quadros de saúde não diagnosticados também “não respondem a medidas de tranquilização médica apropriadas, exames diagnósticos negativos ou um curso benigno” e que “as tentativas do clínico de tranquilizar o indivíduo e aliviar o(s) sintoma(s) geralmente não ajudam a diminuir as preocupações e podem até aumentá-las”.
Além disso, o documento aponta que indivíduos com essa condição se tornam facilmente “assustados por doenças”, como quando descobrem que alguém ficou doente ou leem uma reportagem relacionada à saúde. Dessa forma, essas preocupações assumem um lugar de destaque na vida da pessoa, afetando atividades cotidianas e relações sociais e de trabalho.
Quando a preocupação com a saúde vira problema
As especialistas sinalizam que a preocupação com a saúde pode ser considerada uma doença quando extrapola o limite, causando muito sofrimento ou prejuízo em determinado aspecto da vida da pessoa, ou quando o cuidado com a saúde é tão rígido que impede a pessoa de viver, já que ela só fica pensando no adoecimento e na morte.
— Uma coisa é estar atento ao corpo e tomar medidas para prevenir doenças, outra é interpretar funções vitais ou qualquer mínima alteração corporal como um grave padecimento e ficar extremamente angustiado apenas com base em uma ideia infundada — esclarece a psicanalista Camila Allegretti.
Para a professora da UFCSPA Analuiza Camozzato, um paciente com transtorno de ansiedade de doença sabe identificar que o medo é desproporcional, mas, mesmo assim, não consegue deixar de ter esse comportamento. E exemplifica:
— A pessoa tem medo de ter covid-19, faz o teste e dá negativo. Está sem sintomas, mas faz o teste de novo, é avaliada por médicos, só que continua com medo. É reassegurada de que não tem a doença, mas a preocupação não passa, é desproporcional.
Quem já tem algum quadro clínico, como hipertensão, também pode ser diagnosticado com o transtorno. Neste caso, pode haver uma preocupação excessiva de se ter um acidente vascular cerebral (AVC), por exemplo.
Outro ponto importante é que as preocupações sempre envolvem doenças graves, com desfechos catastróficos, que causam muita angústia. Assim, uma dor de cabeça normal do dia a dia já pode ser considerada sintoma de tumores no cérebro e um incômodo nos olhos devido ao uso de telas pode ser interpretado como um câncer, que fará com que a pessoa fique cega de uma hora para outra.
Prevalência e subtipos
As estimativas de prevalência do transtorno de ansiedade de doença citados pelo DSM-5 baseiam-se nos dados de diagnóstico de hipocondria dos dois manuais anteriores. Conforme o documento, a prevalência em um a dois anos de ansiedade acerca da saúde e/ou convicção de doença em levantamentos em comunidades e amostras populacionais vai de 1,3% a 10%. Já em populações médicas ambulatoriais, as taxas em seis meses a um ano ficam entre 3% e 8%. Homens e mulheres são acometidos pela doença na mesma proporção.
Analuiza Camozzato comenta que esse transtorno geralmente começa na adolescência ou na fase adulta e vai piorando com a idade, sendo raro em crianças.
— É uma condição crônica, ou seja, os pacientes passam a vida toda tendo essa preocupação excessiva. Mas pode mudar o foco da preocupação, não é sempre a mesma doença, pode ser mais de uma — salienta.
Há dois subtipos de pacientes: aquele que busca o cuidado médico, utilizando com frequência o sistema de saúde ao consultar com diferentes profissionais e realizar diversos exames e procedimentos, e o que evita o cuidado porque acredita que tem a doença, mas tem um medo excessivo de diagnosticá-la.
Causas e fatores de risco
De acordo com Analuiza Camozzato, não se sabe exatamente qual a causa dessa condição, mas algumas situações podem aumentar o risco: contexto familiar onde se tem muita discussão e preocupação com a saúde; histórico de doença grave na infância ou em alguém da família; diagnóstico prévio de transtorno de ansiedade generalizada; costume de ler muito conteúdo relacionado à saúde na internet.
Além disso, a diretora administrativa da SPRGS reforça que uma doença mental é sempre resultado da estrutura psíquica da pessoa, que é formada por características genéticas e por traços que são adquiridos no decorrer da vida. Desta forma, sujeitos que tenham essa estrutura abalada, como aqueles com maior nível de ansiedade, são mais suscetíveis a desenvolver a condição.
— Os pacientes que trazem esse sofrimento podem apresentar alguns pontos frágeis na estrutura psíquica. Por consequência, se sentem mais vulneráveis, tendo medo excessivo de serem acometidos por alguma doença — comenta Camila Allegretti.
Por vezes, existe um conflito interno, que gera angústia, e o paciente projeta no externo, resultando no medo de uma doença. Isso, segundo a psicanalista, é uma forma inconsciente de autodefesa, já que pode haver uma tentativa ineficaz de resolver a situação indo a consultas, fazendo exames e buscando tratamento para o suposto problema.
No contexto da pandemia
Não há dados específicos sobre o aumento de diagnósticos de transtorno de ansiedade de doença durante a pandemia. Entretanto, a psicanalista Camila Allegretti relembra que a chegada do coronavírus intensificou as questões psíquicas de forma geral, resultando no surgimento de novos casos e no agravamento de patologias já existentes.
Ela destaca que o distanciamento social e a necessidade de uma atenção maior com a saúde também fizeram com que as pessoas ficassem mais voltadas para si, o que impacta diretamente os pacientes com esse transtorno:
— Esses pacientes já canalizam de forma excessiva o investimento em si, então com certeza a angústia se intensificou, principalmente porque todo mundo estava voltando a atenção para o vírus e suas manifestações no corpo.
O risco da automedicação
Entre os principais riscos do transtorno de ansiedade de doença, estão a automedicação, a incapacitação e um grande impacto na qualidade de vida do paciente.
O risco de automedicação está relacionado à vontade de tratar a doença que a pessoa tanto teme ter. Vinícius Sabedot Soares, coordenador médico de governança clínica do Hospital São Lucas da PUCRS, afirma que é bastante comum pacientes consultarem várias vezes em pronto-atendimentos, só para renovar a receita de um medicamento controlado, que foi prescrito em algum momento, porque acreditam que têm uma doença e precisam daquela medicação, mesmo que não apresentem nenhum sintoma atualmente.
Já o impacto na qualidade de vida tem relação com a quantidade de tempo gasto com as preocupações com a saúde, alerta a professora Analuiza Camozzato. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) também destaca que, com frequência, o transtorno interfere “nas relações interpessoais, perturbam a vida familiar e comprometem o desempenho profissional”.
Camila Allegretti concorda, afirmando que, muitas vezes, o foco da vida de quem sofre com essa questão será comprovar que tem a doença e que, para isso, podem peregrinar em diferentes médicos, fazer inúmeros exames — por vezes até invasivos —, frequentemente se ocupando com alguma doença e pesquisando a respeito durante longos períodos. Por este motivo, a psicanalista enfatiza que se trata de uma doença muito incapacitante em alguns casos, já que a pessoa fica tomada pela angústia.
Diagnóstico e tratamento
O diagnóstico do transtorno de ansiedade de doença é feito por psicólogos e psiquiatras. No entanto, o primeiro a identificar os sinais e sintomas pode ser o médico clínico, pois é o profissional que costuma ter o contato inicial com esses pacientes, esclarece Analuiza Camozzato:
— É possível notar que a preocupação é excessiva, desproporcional. Os pensamentos catastróficos em relação à doença são indicativos para os médicos. E é importante que todos os profissionais entendam que é uma doença, porque dizer para aquela pessoa que “é coisa da sua cabeça” é o pior para ela. A recomendação é explicar que existe esse transtorno e encaminhar para um psiquiatra.
O problema é que, diante da mudança excessiva de médicos, o diagnóstico pode demorar. Segundo Vinícius Sabedot Soares, do Hospital São Lucas da PUCRS, um fator que dificulta, especialmente em serviços de pronto-atendimentos, é que as consultas costumam ser rápidas, com duração em torno de 15 minutos, e que não existe uma relação prévia com aquele paciente. Por isso, às vezes os sinais passam despercebidos.
No sistema privado de saúde, existe mais uma questão: muitas vezes, o paciente consegue marcar consultas diretas com especialistas, sem passar por um clínico, e pode ir trocando de médicos quando quiser.
— A pessoa que tem esse transtorno costuma criar uma expectativa em relação à consulta, achando que vai receber um pedido de exames e receita médica. Então, se ela não recebe isso, fica insatisfeita e troca de profissional — aponta o coordenador médico.
Para Soares, a identificação desses pacientes depende muito da sensibilidade do clínico geral, que precisa perceber os sinais de angústia. Além disso, sinaliza que é necessário ter muito tato para conseguir abordar o assunto sem afastar o paciente, que já está com algum sofrimento:
— Alguns pacientes sabem que têm o problema, mas não estão abertos para receber contraponto, daí é mais difícil. Outros, estão abertos. Então, se você consegue identificá-los em uma consulta, é mais fácil ter uma conversa esclarecedora e encaminhar para um psicólogo ou psiquiatra.
Já o tratamento envolve principalmente psicoterapia cognitivo-comportamental, que serve para fazer com que os indivíduos entendam que a preocupação é excessiva, identifiquem os comportamentos e tentem corrigi-los ou eliminá-los. Apesar de ser um quadro crônico, a professora Analuiza Camozzato ressalta que, quanto mais cedo ocorre o diagnóstico, maior as chances de melhora.
Camila Allegretti esclarece que a psicoterapia ajuda o paciente a entender os motivos para esse medo excessivo e o que realmente lhe gera angústia, para então conseguir lançar mão de outras ferramentas internas, que muitas vezes precisam ser construídas, para lidar melhor com essas questões. Em determinados casos, também pode ser necessário utilizar medicações, como antidepressivos, até que a pessoa fique menos angustiada e consiga se beneficiar da terapia.
Além dos médicos clínicos, o encaminhamento do paciente a um especialista pode partir de familiares e amigos que conseguem perceber os sinais. Allegretti afirma que indivíduos que convivem com quem tem transtorno de ansiedade de doença devem primeiro acolher o sofrimento da pessoa, sem nunca minimizar ou dizer que “não é nada”.