Se, por muito tempo, o estigma de curso elitista perseguiu a graduação em Arquitetura e Urbanismo, as instituições de Ensino Superior do RS têm se esforçado para mudar essa realidade. Muitos cursos contam com projetos sociais que trazem melhorias para espaços públicos, como escolas e parques, e moradias de pessoas em situação de vulnerabilidade, com atuação em regularizações fundiárias.
No RS, mais de 30 instituições oferecem graduações em Arquitetura e Urbanismo. Entre as particulares, a Universidade de Caxias do Sul (UCS) é uma das com trajetória mais antiga no que se refere ao papel social da Arquitetura e Urbanismo: em 19 anos de existência do Escritório-Modelo (TaliesEM), foram mais de 60 intervenções de diferentes tipos. Mas engana-se quem pensa que as ações acontecem nos moldes tradicionais de uma sala de aula, com professor dando a tarefa e os alunos cumprindo – na verdade, no TaliesEM, quem define quais atividades serão feitas são os próprios estudantes.
— É um movimento estudantil que surgiu durante uma semana acadêmica. Normalmente, as demandas chegam por comunidades ou pelo poder público. Aí, os alunos têm uma reunião e votam se aquele projeto está dentro da missão e da filosofia do TaliesEM. Se a proposta é aceita, eles montam um grupo de trabalho e um professor responsável acompanha — explica a professora Terezinha Buchebuan, que hoje coordena o Escritório-Modelo, mas iniciou sua trajetória no projeto como estudante.
Alana Surian Vieira é aluna de Arquitetura e Urbanismo e diretora do TaliesEM. Diz que o grupo de trabalho tem a missão de organizar um cronograma para desenvolver a demanda. Aí, são definidas as atividades e os momentos de reuniões gerais sobre o projeto, até que tudo esteja concluído. Além dos estudantes, a depender do projeto, poder público e líderes comunitários também participam desses encontros e da construção da proposta.
— Os projetos costumam ser bem aceitos pelas comunidades, porque eles sempre querem o melhor para eles, então, costumam ser bem ativos e abertos a nos receber — comenta Alana.
A maior intervenção com a qual o TaliesEM se envolveu foi no Parque da Lagoa do Rizzo, em Caxias do Sul, que atualmente é um ponto turístico da cidade. O trabalho de revitalização ocorreu junto à prefeitura e entregue em 2008. Na época, foram dois anos e meio de dedicação dos alunos da UCS, entre levantamento junto aos moradores da região e estudos acadêmicos que subsidiaram a realização, por parte do município, de anteprojeto e projeto executivo da reforma. Foram investidos cerca de R$ 490 mil com a implantação de pistas para caminhada, ciclovia, bancos, lixeiras, bebedouros, parque infantil e jardins.
Outro projeto encabeçado pelo TaliesEM foi a melhoria, em 2018, da Praça da Esperança, um espaço residual entre a rua e o Cemitério Público Municipal, em Caxias, próximo ao Complexo Euzébio Beltrão de Queiroz, conhecido como Vila do Cemitério. Ocorreram oficinas e levantamentos para entender o que a comunidade gostaria de ver naquele local e falar sobre o uso de espaços comuns em geral. Depois, foi feito um mutirão para fazer a revitalização do ambiente, com a pintura de um muro, a instalação de um mural, de canteiros de flores e a pintura de mobiliário.
O que é jornalismo de soluções?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Para Alana, a experiência no escritório-modelo é transformadora.
— A gente aprende na prática a construir para as pessoas: é o ato de transformar. Isso é sensacional, poder ver além da construção. Quando eu entrei, participei da criação de uma horta comunitária. Ali, percebi que podíamos ir além e que todo mundo tinha o direito de ter mais — recorda a estudante.
Terezinha se emociona ao falar do TaliesEM. Em sua visão, a participação em projetos como este transforma não só o futuro profissional, mas também a pessoa:
— Eles lidam com pessoas reais, que têm anseios, desejos, sonhos e demandas que podem não ser as que a gente espera enquanto academia. O TaliesEM é uma oportunidade de os alunos entenderem outras culturas e realidades e aprenderem a respeitá-las.
Integração da comunidade pelo paisagismo
A Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) conta com uma parceria junto à prefeitura de São Leopoldo que possibilita a realização de projetos ligados a demandas de habitação de interesse social desde 2018. Desde então, houve trabalhos com comunidades como as ocupações Padre Orestes, a Cerâmica Anita, a Tancredo Neves e a Arroio Gauchinho. Atualmente, há atividades em andamento com a ocupação Renascer.
Em Porto Alegre, os alunos também atuaram na Vila Kédi. Há, ainda, parcerias para desenvolver projetos em espaços abertos no bairro Farrapos e o desenvolvimento de soluções arquitetônicas, paisagísticas e urbanísticas, por meio dos escritórios-modelos Animus, na Capital, e Unirversos, em São Leopoldo.
Uma das ações do Unirversos ocorreu em 2019, no Instituto Estadual do Parque do Trabalhador, em São Leopoldo, durante uma série de trabalhos ligados à ocupação Cerâmica Anita e o bairro Vicentina. Lá, um telheiro se transformou em espaço de convivência, pneus viraram bancos e canteiros de flores e garrafas pet se tornaram vasinhos em uma horta vertical.
— Depois que foi feita a implementação de infraestrutura na Cerâmica Anita, identificamos que as crianças da ocupação não tinham muita integração com a comunidade do bairro Vicentina e fomos visitar a escola. Lá, encontramos um espaço que era um telheiro e que os alunos gostavam muito, mas não usavam, porque não tinha ambientação. Eles adoraram — relata a professora Débora Becker, supervisora dos escritórios-modelos.
Três anos e uma pandemia depois, o paisagismo que mobilizou a comunidade escolar está mais precário — o banco de madeira está quebrado, os caminhos feitos com brita foram cobertos pela grama e os temperos e ervas plantados na horta vertical morreram durante o período em que a escola ficou fechada. Os espaços e o mobiliário, porém, seguem sendo aproveitados pelos alunos da instituição, que tem turmas dos Anos Finais do Ensino Fundamental e de todo o Ensino Médio.
— Às vezes tem muito sol nos outros lugares, então é bom ficar aqui, que tem sombra — diz Kauani Fiuza de Oliveira, 13 anos, em um dia de calor no qual se protegia embaixo do antigo telheiro.
Kauani não estudava na escola quando foi feito o mutirão, mas sua colega, Amanda Selistre dos Santos, 17 anos, sim. A adolescente conta como foi a transformação:
— Antes não era muito bonito. Depois que pintaram, mudou bastante. Colocaram pneus pintados pra gente sentar, que é o que mais gostamos, porque dá para locomover, colocar em outros lugares — analisa Amanda.
Com o surto de dengue, parte dos bancos-pneus foi retirada — só sobraram três, que a direção procura manter embaixo do espaço coberto, a fim de não acumular água.
Simone Werlang Cerqueira, vice-diretora do Instituto Estadual do Parque do Trabalhador, diz que as intervenções a serem feitas foram decididas em conjunto entre comunidade escolar e alunos da Unisinos. No seu entendimento, esse tipo de parceria ajuda muito.
— Não teríamos feito esses bancos sem essa parceria, e os alunos usam muito. Também não teríamos pensado na horta suspensa. Eles chamaram a comunidade para fazer a pintura, auxiliar nos plantios, então isso trouxe os pais e os alunos para dentro da escola. A comunidade viu a escola com outros olhos. Foi muito legal na época — avalia Simone, que acha, ainda, que ações como esta são importantes para que os estudantes da instituição deixem de enxergar o paisagismo como algo “de rico”.
Ocupação cultural do Cais do Porto
O curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) possui uma extensa trajetória de trabalhos ligados ao interesse público e social, normalmente feitos por meio de projetos de extensão. Um deles, em andamento, é uma consultoria que propõe uma uma alternativa ao projeto do consórcio contratado pelo governo do RS, com a ocupação do espaço para atividades culturais dos armazéns do Cais do Porto, em Porto Alegre. O projeto é coordenado pelo professor Éber Marzulo.
— Não é um projeto arquitetônico, e sim diretrizes para a ocupação. Basicamente, levantamos com coletivos quais são as demandas, quantas pessoas trabalham naquilo, quantas atividades acontecem regularmente, quantas são eventuais e, aí, fizemos uma proposta de ocupação. Propusemos, inclusive, um modelo de financiamento para isso — destaca Marzulo.
A ideia, lá, é misturar o artesanato, um centro afro-indígena, espaços para literatura, artes plásticas, visuais, cênicas e música, com salas para ensaios. Além disso, o programa prevê banheiros, chapelaria, bilheteria e cafeteria. O estudo arquitetônico tem participação de estudantes desde a graduação até mestrado e doutorado.
Além desta iniciativa, a UFRGS encabeça muitas outras, em parcerias com coletivos e instituições beneficentes. Há, ainda, o projeto Cara na Rua, que leva pessoas em situação de rua a fotografar os espaços urbanos por onde circulam e, assim, ressignificar sua relação com esses ambientes.
Projetos habitacionais
Na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a relação com a cidade é forte e, por isso, a instituição já participou de grandes projetos habitacionais, como a elaboração do Plano Popular da Estrada do Engenho. Ameaçadas de reintegração de posse por estarem em local irregular e com riscos ambientais, já que moravam junto ao Canal São Gonçalo, 67 famílias pediram ajuda para a instituição de ensino. Um grupo do curso de Arquitetura e Urbanismo buscou, então, contato com o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) e se comprometeu a encontrar uma alternativa urbanística para aquelas pessoas.
— A alternativa que a prefeitura tinha dado, até então, era remover as famílias para o bairro Getúlio Vargas, que fica na Zona Norte, distante da água. Ia acabar com a fonte de renda, a coesão social e poderia gerar conflitos com a própria comunidade da Getúlio Vargas. Por isso, fizemos uma proposta de ocupação de um espaço muito próximo ao que eles já moravam — explica o professor André Carrasco, que coordenou a elaboração do plano.
Por meio de convênio, o MPRS destinou R$ 1,1 milhão em multas ambientais para viabilizar a implementação do novo loteamento da Estrada do Engenho, que está em andamento desde o início de 2020. As famílias serão realocadas para um terreno próximo, pertencente ao Veleiros Saldanha da Gama.
Um novo desafio começa neste sábado (30) para os estudantes da UFPel – será apresentado o contra-projeto do Plano Popular do Corredor das Tropas, que segue a mesma linha de posicionamento do trabalho na Estrada do Engenho. O trabalho é focado na região do Passo dos Negros, que ganhou esse nome por ser uma região por onde pessoas escravizadas passavam, rumo às charqueadas. Empreendimentos imobiliários têm sido feitos da região e este plano visa manter a comunidade tradicional no local.
— É um projeto que pensa desde a casa até o bairro, para a fixação da comunidade nessa área. A ideia é sempre essa: levar o conhecimento técnico, que a gente produz e transmite na universidade, para contribuir, sempre numa perspectiva de ampliação de direitos e reconhecimento de culturas e modos de vida — defende Carrasco.
Melhorias estéticas e funcionais
Em Porto Alegre, a UniRitter faz parcerias com escolas e comunidades para entender as demandas, elaborar planos diagnósticos e pensar em possíveis ações. Durante a pandemia, as atividades estavam focadas mais em discussões sobre o direito à cidade e o papel social do arquiteto e urbanista, mas, em 2022, as parcerias também deverão envolver ações práticas. Atualmente, está em andamento um trabalho junto à Escola Estadual Santos Dumont, localizada na Vila Assunção.
— É uma escola com um espaço muito bom, mas que tem problemas de falta de cuidado e manutenção, devido à falta de recursos para se manter. A ideia é que a gente colabore com a melhoria estética e funcional de algum ambiente, talvez pensando em uma reformulação de layout, pintar algum muro. A comunidade vai definir e a gente vai ajudar com o nosso conhecimento — explica a professora Lívia Falcão, que coordena o projeto Arqurb Comunidades.
Terminada a ação no Santos Dumont, prevista para junho, deve haver também um projeto na Vila Cruzeiro. A ideia é atuar dessa mesma forma, pensando em melhorias estéticas e funcionais, possivelmente no espaço onde funciona uma associação de mulheres do bairro ou em outro, focado na promoção de cultura para adolescentes. Além de elaborar propostas, os alunos participarão da captação de recursos e fornecedores para a readequação.
Redução de riscos de desastres climáticos
Na Feevale, o Laboratório de Vulnerabilidades, Riscos e Sociedades (Lavurs) atua em escolas e comunidades de Campo Bom, Novo Hamburgo e São Leopoldo. Segundo a coordenadora do projeto, Danielle Martins, o foco é trabalhar em espaços que sofrem com deslizamentos e inundações, integrando gestores públicos, Defesa Civil, comunidades e área acadêmica na busca pela redução dos riscos de desastres climáticos.
— Como a questão climática tem tomado cada vez mais espaço, a principal forma que percebemos de contribuir como universidade é fazer essa integração de atores. Quando pensamos em desastres, não há um só culpado: existe toda uma complexidade envolvendo a preservação de áreas protegidas, déficit habitacional, que faz com que as pessoas tenham que residir nessas áreas e a necessidades de pesquisas — cita Danielle.
O laboratório conta com alunos e professores de diferentes áreas, como ambiental, arquitetônica, de engenharias, do direito e das artes. São realizadas oficinas nas comunidades, mapeamentos populacionais, estudo do uso do solo e de regularização fundiária.
Outros projetos
Além dessas universidades, outras instituições, como a Ulbra, a PUCRS e a Ucpel também possuem projetos envolvendo aspectos sociais e urbanos. Na Ulbra, há três semestres está sendo feito um trabalho no Morro Santa Tereza – foi feito um estudo, a elaboração de uma proposta e, agora, deve ser feita a execução de projetos com o apoio do poder público.
Na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), estudantes estão desenvolvendo brinquedos e mobiliário pedagógico para crianças em situação de vulnerabilidade socioeconômica. A produção de brinquedos utiliza materiais recicláveis, como garrafas PET, embalagens tipo TetraPak, balões, cordas, e explora a releitura de brinquedos antigos, feitos na disciplina Ateliê de Design do Curso de Arquitetura e Urbanismo, em ação com a Fundação Pão dos Pobres. Outra ação também teve como foco o paisagismo da Praça David Ben Gurion, no bairro Jardim Itú-Sabará, em Porto Alegre. Lá, foram elaboradas propostas de requalificação do espaço.
A Universidade Católica de Pelotas (Ucpel) participa de um projeto para tornar o município de Morro Redondo o primeiro Polo da Cátedra da Unesco na região Sul do estado. Desenvolvido a partir de parceria com a UFPel, a prefeitura do município e o Instituto Politécnico de Tomar - Portugal, a iniciativa pretende reconhecer e preservar o patrimônio cultural da cidade. A instituição de ensino também participa do processo de regularização fundiária de bairros de Capão do Leão, por meio da medição de terrenos e a descrição geométrica de cada área demarcada.