Briga generalizada pelas ruas de Belo Horizonte deixou um morto. Batalha campal no México resultou em, ao menos, 22 feridos. Ataque a ônibus provocou traumatismo craniano em jogador. Torcida invadiu gramado após rebaixamento e brigou com atletas. Goleiro passou por cirurgia no olho depois de ser atingido por bomba. Todas essas barbáries estão vinculadas ao futebol. Todas aconteceram há poucos dias, reprisando um carma que acompanha o esporte mais popular do Brasil.
A violência faz parte da paisagem do futebol há décadas. Difícil encontrar algum frequentador de estádios que nunca tenha testemunhado uma briga (dentro ou fora de campo) ou insultos (a violência também é verbal). O que ainda não tinha acontecido no Rio Grande do Sul era o principal jogo do Estado ter sido adiado por atos de violência. O ineditismo após 112 anos de Gre-Nais se deu em 26 de fevereiro, após um ataque ao ônibus que levava a delegação do Grêmio ao Beira-Rio e deixou o volante Villasanti ferido na cabeça.
Em meio ao mar de atos violentos proporcionado pelos torcedores, a CBF criou na segunda-feira (7) uma comissão de combate à violência nos estádios. O comitê promete adotar medidas práticas para reduzir a onda de problemas relacionados ao tema. No mesmo dia, presidentes das federações e clubes assinaram o Manifesto a Favor da Vida e do Futebol Brasileiro se comprometendo com a causa.
Mas o que mais pode ser executado com efeito prático a curto prazo? GZH ouviu autoridades de diferentes esferas ligadas ao futebol para tentar soluções a fim de minimizar o número e a gravidade dos casos. As medidas foram divididas em cinco grandes temáticas. Confira a seguir.
1) Educação e diálogo
A questão não se resume apenas ao futebol e ao Brasil. O que se vê nos estádios, segundo o antropólogo Roberto DaMatta, é um desdobramento da violência que permeia todos os estratos sociais. No esporte, ela se apresenta como uma dificuldade cultural para lidar com a competição, de não aceitar a derrota e de ver o adversário como inimigo.
— Temos uma deficiência da educação primária, no uso do conjunto de comportamentos compartilhados de maneira efetiva por todos — inicia DaMatta, pioneiro em estudos relacionados ao futebol. — Precisamos falar desses assuntos, provocar a discussão, sobretudo, nos espaços educativos — complementa.
Pensamento análogo tem Ranolfo Vieira Júnior, vice-governador e secretário de segurança do RS. Em 2 de março, na reunião que definiu o horário do Gre-Nal 435 e foi decidido pela presença das duas torcidas no clássico, ele sugeriu a criação de uma campanha publicitária para tentar inibir atos de vandalismo no futebol.
Precisamos falar desses assuntos, provocar a discussão, sobretudo, nos espaços educativos
ROBERTO DAMATTA
Antropólogo
— É um aspecto que pode ser importante no resultado — ressalta.
Expor os problemas e debater sobre eles está no centro da questão. As torcidas organizadas, vistas muitas vezes como vilãs, apontam a carência de um maior diálogo com diversos atores administrativos desde que o Ministério do Esporte foi rebaixado para o status de secretaria pelo Governo Federal. Diversos seminários, de acordo com a Associação Nacional de Torcidas Organizadas (Anatorg), eram realizados entre as torcidas para diminuir os casos de violência. Reuniões antes dos jogos também se tornaram menos frequentes, segundo Luiz Cláudio do Carmo, presidente da entidade.
— Depois da pandemia, as torcidas voltaram desnorteadas. Houve uma desorganização da estrutura de segurança. Há uma dificuldade no transporte, no escoamento das torcidas. Quando esse escoamento demora, facilita o encontro entre rivais — pondera Carmo.
O que é jornalismo de soluções?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
2) Relação entre clubes e torcidas
Seja antes ou depois da pandemia, as organizadas fazem parte do enrosco que se tornou a violência nos estádios. As autoridades apontam o relacionamento íntimo entre clubes e torcidas como um fator de risco. Desde que os sócios passaram a ter direito a voto, na opinião do Ministério Público, os laços entre as duas partes se fortaleceram. Inclusive com dependência financeira.
— Os clubes têm de ter mais distanciamento das torcidas organizadas, dão ônibus, instrumentos, ingressos. Precisam, de alguma forma, desestimular lideranças da torcida — argumenta Marcelo Dornelles, procurador-geral de Justiça do RS.
Os clubes têm de ter mais distanciamento das torcidas organizadas, dão ônibus, instrumentos, ingressos. Precisam, de alguma forma, desestimular lideranças da torcida
MARCELO DORNELLES
Procurador Geral de Justiça do RS
Como o voto não é obrigatório nas eleições presidenciais e para os conselhos deliberativos, e as torcidas mobilizam uma boa quantidade de pessoas, os grupos políticos se aproximam delas. Mais do que ativos políticos, elas passaram a ter cadeiras nos conselhos.
— Quando ocorre uma situação de desvio de conduta, como é o caso da criminalidade no âmbito das organizadas e, que é grande, se percebe vínculos muito profundos dentro desse sistema, de condescendência e até de facilidade em atuar nesse sentido. Tudo isso precisa ser controlado — argumenta Romildo Bolzan Júnior, presidente do Grêmio.
3) Punições
A sensação de impunidade é uma constante no Brasil. Nos casos relacionados ao futebol não é diferente. Parte do sentimento está relacionado a penas consideradas brandas. A sensação de impunidade, ou de uma punição limitada, diminui o tamanho da barreira que iniba a pessoa de tomar uma atitude errada. O Estatuto do Torcedor imputa penas de até seis anos de detenção, mas há um dispositivo na lei que faz com que a penalidade, na prática, seja uma miragem.
As punições são convertidas em pena impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, o que faz com que os torcedores tenham de comparecer a uma delegacia no horário da partida. Somente em caso de não comparecimento, a reclusão será aplicada.
— As penas do Estatuto são muito baixas. É preciso dar uma ampliada na pena. A mais grave inibe um pouco os atos de violência — explica Dornelles.
Outro aspecto considerado falho é a ausência de reincidência. Após cumprir a punição, o torcedor que cometer novo ato não terá sua punição agravada por ser reincidente.
No caso dos clubes, as sanções são relacionadas a perda de mando de campo, a realização de partidas sem torcida e/ou multa.
4) Maior proteção
Quando os torcedores não brigam entre si, o alvo são os jogadores rivais ou do próprio time. Foi o caso no clássico Gre-Nal e de outros quatro casos naquela semana. Os atletas são alvo da rivalidade ou da frustração, como aconteceu na Vila Capanema, quando torcedores invadiram o gramado insatisfeitos com o rebaixamento do Paraná Clube no Campeonato Paranaense.
Proteger a integridade dos jogadores surge como a maior preocupação da Federação Nacional de Atletas (Fenapf). Após os casos de duas semanas atrás, a entidade enviou ofício para a Secretária do Esporte, CBF e STJD com sugestões de uma série de medidas a serem tomadas para aumentar o grau de segurança dos atletas.
Entre as propostas estão um maior efetivo na escolta dos veículos que levam as delegações aos estádios, a utilização de vidros blindados nos ônibus, maior responsabilização dos clubes e até realizar partidas de risco sem a presença de torcida.
— Isso só vai parar quando alguém morrer, aí vira estática. É preciso ter aparato de segurança igual tem a Seleção Brasileira ou um presidente. Responsabilizar o clube, punir o clube para atingir os torcedores, que se dizem apaixonados, mas são uns vândalos — desabafa Alfredo Sampaio, presidente da Fenapf.
5) Tecnologia e integração
Depois de 12 dias, a Polícia Civil prendeu o torcedor que seria o responsável por ter atirado a pedra que atingiu Villasanti. A identificação foi possível devido ao uso da tecnologia e da sinergia entre todas as partes envolvidas nas investigações. Os dois aspectos são considerados vitais para que se evolua para o próximo estágio da prevenção da violência.
— É preciso encontrar pontos comuns e construir a compreensão de que existe uma área de absoluta intersecção de interesses entre todos os que dizem amar o futebol. É sobre essa base que devemos construir — avalia Alessandro Barcellos, presidente do Inter.
É preciso integrar todos os atores. Que os órgãos de segurança sejam consultados a respeito disso.
RANOLFO VIEIRA JÚNIOR
Vice-governador
O anonimato surge como um dos principais fatores para que a violência se perpetue. O que faz com que a maioria dos casos tenham migrado das arquibancadas para os arredores dos estádios. Além de uma implementação de estratégias integradas entre as partes envolvidas na organização de uma partida são sugeridas o incremento de um cadastro das torcidas organizadas, ampliação da biometria para acessar os estádios e até reconhecimento facial. Acredita-se que um controle mais efetivo fará com que o torcedor se porte de maneira diferente, reduzindo sua propensão a ser violento.
— É preciso integrar todos os atores. Que os órgãos de segurança sejam consultados a respeito disso. Um exemplo: o horário do Gre-Nal, nós deslocamos para as 21h, pois é mais fácil (fazer a segurança). Não é horário de saída do trabalho, que atrapalha a mobilidade da cidade — conta Ranolfo.
O que já foi feito
Apesar da multiplicação dos casos no começo de 2022, acredita-se que o combate contra a violência evolui nos últimos anos. O estágio desta batalha no Rio Grande do Sul está cerca de 70% do ponto considerado ideal, na visão de Dornelles.
Há alguns anos, toda a estrutura de segurança recaía sobre a Brigada Militar. Atualmente, o policiamento cuida somente da área externa dos estádios. Dentro, a segurança é provida pelo clube mandante. Outras esferas da segurança pública também estão envolvidas nas partidas, com a instalação de delegacias, da promotoria de justiça e juizado especial dentro da Arena e do Beira-Rio.
Para o clássico de quarta-feira (9), a Brigada testou uma nova tecnologia. Foram utilizadas 18 câmeras corporais em policiais. As imagens eram enviadas em tempo real para uma central de monitoramento.
Onde a violência diminuiu
Antes mesmo de Charles Miller desembarcar no Brasil com duas bolas e um livro de regras para implementar o futebol no país, a violência entre torcedores já era um problema na Inglaterra. Os primeiros casos na terra da Rainha foram documentados nos anos 1880. A questão ganhou proporções maiores na década de 1960, quando os confrontos entre as torcidas passaram a ser “organizados”.
O ápice foi em 1985, em Bruxelas, quando minutos antes do início da final da Liga dos Campeões entre Liverpool e Juventus, torcedores do clube inglês entraram em confronto com os italianos. O resultado foi a morte de 39 pessoas, a maioria apoiadores da Juventus.
A situação se agravou em 15 de abril de 1989. Naquele dia, 97 pessoas perderam a vida no Desastre de Hillsborough devido às más condições do estádio e falta de habilidade da polícia para lidar com a superlotação nas arquibancadas.
As ações ganharam corpo primeiro com a Lei dos Espectadores de Futebol de 1989. O documento deu maior poder à polícia e ao sistema judiciário para coibir atos de violência no futebol. Entre as medidas estavam regras sobre o consumo de álcool e tolerância zero em relação a atos de racismo. Em 2000 e 2006 novas versões da legislação foram sancionadas. As punições são aplicadas não somente para brigas nos arredores do estádio, mas também em bares, transporte público e no centro das cidades.
Um ano depois da Lei dos Espectadores de Futebol foi implementado o Relatório Taylor. Nele continham novas regulamentações para aumentar a segurança nos estádios. A principal medida foi a normatização das arenas esportivas com todos os torcedores sentados.
Embora os índices sejam bastante baixos, ainda há preocupação com o tema na Inglaterra. Na temporada 2019/20, 1.621 torcedores foram banidos dos estádios. Outras 1.089 pessoas foram presas por atos de violência relacionados ao futebol. Fora do território inglês, os torcedores da terra da Rainha estão entre os mais temidos pelas forças de segurança.