Em 2011, houve na Alemanha um surto de intoxicações provocadas pela toxina de Shiga, resultando em 32 mortes. Essa toxina é liberada pela bactéria Escherichia coli, que pode estar presente em carnes mal passadas. É um tipo de infecção grave, para a qual não há tratamento. O que os médicos podem fazer é combater os sintomas. O problema é endêmico na Argentina, uma potencial ameaça ao sul do Brasil. Existe um temor também de seu uso para o bioterrorismo.
No Instituto Butantã, em São Paulo, uma bióloga de 33 anos conseguiu criar a partir de técnicas de engenharia genética um anticorpo sintético capaz de neutralizar a toxina – o que abre a perspectiva da primeira terapia eficiente para combater surtos futuros. A responsável pela proeza é Daniela Luz Hessel da Cunha, que fez toda sua carreira de pesquisadora, do mestrado ao pós-doutorado, com apoio de bolsas de pesquisa da Capes, do CNPq e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) – bolsas que estão sendo submetidas a cortes pelo Ministério da Educação (MEC).
Uma parte fundamental do trabalho foi realizada na Universidade de Toronto (Canadá), para onde Daniela foi como parte do seu doutorado. Lá, ela produziu uma biblioteca de anticorpos sintéticos com identidade humana – ou seja, que são reconhecidos como se fossem do nosso organismo, podendo ser usados para combater infecções.
Quando o doutorado terminou, a bióloga candidatou-se a uma bolsa da Fapesp para continuar a trabalhar nessas moléculas, mas a financiadora atravessava um período de restrições e não a contemplou. Daniela estava para interromper o projeto quando conseguiu uma bolsa da Capes para prosseguir no trabalho, em um pós-doutorado do Butantã.
– A bolsa da Capes foi salvadora desse projeto. Sem ela, eu teria parado – conta a pesquisadora.
Usando técnicas sofisticadas de biologia molecular, ela testou como os anticorpos de sua biblioteca interagiam com a toxina de Shiga, encontrando uma molécula que a neutralizava. Como parte do estudo, modificou geneticamente bactérias para que elas produzissem o anticorpo de que necessitava. No pós-doutorado, Daniela ainda orientou dois mestrandos, que também tinham bolsas da Capes. Um deles trabalhou no desenvolvimento de técnicas de diagnóstico da infecção pela toxina de Shiga – o que pode evitar tratamentos equivocados com antibióticos, que podem agravar a situação do paciente. O outro bolsista dedicou-se a criar modelos alternativos de teste, para poupar os camundongos que normalmente são utilizados. Atualmente, Daniela trabalha para testar o uso terapêutico do anticorpo sintético.
– O objetivo é chegar a um medicamento – anuncia.
São da área da saúde muitos dos avanços obtidos com o apoio das bolsas de pesquisa oferecidas pelo governo. Cada laboratório da área tem histórias para contar. Na pós-graduação em endocrinologia da UFRGS, Rogério Friedman cita exemplos como a identificação de um valor de referência a partir do qual a presença de albumina na urina indica propensão para uma doença renal grave, a nefropatia diabética.
Sob a orientação de um professor, vários bolsistas de graduação e pós-graduação coletaram amostras entre a população e compararam-nas, o que permitiu chegar à quantidade de albumina a partir da qual é necessária uma intervenção. Com base nessa informação, o médico pode adotar tratamentos com poder de barrar a progressão da doença e até mesmo fazê-la regredir. O valor de referência estabelecido pelo grupo da UFRGS tornou-se o padrão universal adotado pelos laboratórios de análises clínicas de todo o país.
– Essa pesquisa teve grande influência na prática médica Brasil afora, ajudando a salvar vidas – afirma Friedman.
Outro trabalho realizado na pós-graduação em endocrinologia tem relação com o carcinoma medular de tireoide, um tipo muito agressivo de câncer causado por uma mutação genética. A pesquisa, também com participação de bolsistas, avaliou se testar familiares de um doente, para verificar se também tinham a mutação, era uma forma eficaz de prevenir novos casos. Concluíram que sim, e que, além de poupar vidas e sofrimento, sairia mais barato para o sistema público de saúde chamar e examinar a parentela do que tratar a doença mais tarde. Hoje, o teste é oferecido em centros de referência, o Hospital de Clínicas entre eles.
Em outra pesquisa, o grupo investigou se a ideia de que crianças obesas têm pior rendimento escolar correspondia à realidade e comprovou, de forma inédita, que isso não passava de um mito preconceituoso.
– Isso é conhecimento nosso, gaúcho, porto-alegrense. Não existiria se não houvesse alunos de pós-graduação trabalhando nessas linhas de pesquisa. Esses três exemplos, sem os bolsistas, provavelmente só seriam possíveis contratando profissionais pagos para fazer. A universidade tem gerado muita informação útil na área da saúde, que resulta em protocolos de tratamento adaptados a nossa realidade, em ideias sobre como utilizar medicamentos que já estão no mercado, validação de testes diagnósticos, novas técnicas cirúrgicas. Tem surgido muita coisa no Brasil, que o público leigo não fica sabendo – diz Friedman.
Para o professor, os capitais mais valiosos da atualidade são o conhecimento e a inovação. Nesse sentido, ele acredita que a pesquisa científica é um ativo estratégico para os países. Aqueles que investirem na área colherão progresso e benefício para suas populações.
– Quem consegue gerar mais conhecimento, inovar mais e gerar mais tecnologias e técnicas vai estar à frente neste nosso mundo. Quanto mais houver geração de conhecimento, mais rico será o país. Por isso, se não houver recursos para manter bolsas e financiamento à pesquisa, o Brasil perderá muito.
Ao encontro da história
Depois de se formar em ciências biológicas em Curitiba (PR), Marcel Baeta Lacerda Santos queria fazer uma pós-graduação em paleontologia, o que não era oferecido em Candelária (RS), a sua cidade. Ele só conseguiu realizar esse plano porque obteve uma bolsa da Capes para fazer mestrado na UFRGS. Com o dinheiro, conseguia se manter em Porto Alegre e se dedicar exclusivamente à pesquisa.
Durante os dois anos do mestrado, Marcel especializou-se em um grupo de criaturas que surgiu no período Triássico (de 251 milhões a 201 milhões de anos), aparentado com os crocodilianos – ancestrais remotos dos atuais crocodilos.
Concluído o mestrado, uma bolsa do CNPq permitiu que ele seguisse na UFRGS e em Porto Alegre para o doutorado em paleontologia. Bem nessa época, cinco anos atrás, o Museu Municipal de Candelária cedeu à universidade um fóssil que havia recebido em doação. Consistia em um crânio e uma mandíbula quase completos, além de vértebras do pescoço e placas ósseas do dorso. O fóssil pertencia justamente ao grupo a que Marcel se dedicara no mestrado. Ele era a pessoa certa para estudá-lo. Dedicou o doutorado a isso.
O resultado desse trabalho foi a descoberta de uma nova espécie de réptil pré-histórico, batizada de Pagosvenator candelariensis. Conforme a investigação do pesquisador, o animal viveu há cerca de 237 milhões de anos, tinha três metros de comprimento, era quase com certeza quadrúpede e, pelos dentes longos e encurvados, tinha uma dieta carnívora. Foi uma descoberta de impacto, porque até então nenhum fóssil do grupo havia sido encontrado na América do Sul. O trabalho teve direito a publicação em um dos periódicos científicos mais relevantes da área, o Zoological Journal of the Linnean Society.
– É mais uma peça no quebra-cabeça da história da vida no planeta – observa Marcel.
Hoje com 38 anos e professor substituto de paleontologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR), o paleontólogo mostra-se grato pela oportunidade que teve graças ao financiamento da Capes e do CNPq.
– Sem as bolsas, eu não teria tido a flexibilidade de mudar para outra cidade e me dedicar à pesquisa. Não teria feito nada do que fiz sem esse apoio financeiro. Isso me incentiva a ser o melhor profissional que eu puder, para poder retornar para a sociedade todo o investimento que recebi – diz o descobridor do Pagosvenator.
Depois do estudo, o fóssil voltou para o museu de Candelária, onde está em exposição – agora com todas as informações obtidas por Marcel.
Soluções para a agricultura
Um dos principais problemas enfrentados pelos produtores rurais do Vale do Caí é uma praga conhecida como mosca-branca, uma espécie de cigarrinha que suga seiva e injeta uma toxina prejudicial ao desenvolvimento das plantas. A perda na colheita de olerícolas (o que inclui tomate, pepino e pimentão) pode chegar a 70%. É um drama que afeta 420 propriedades e cerca de mil famílias da região.
Depois de constatar que o inseto era a maior dor de cabeça dos agricultores, o escritório regional da Emater bateu às portas do Molecular Insect Lab, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em busca de socorro.
O laboratório é coordenado pelo engenheiro agrônomo Jonas André Arnemann, um professor e pesquisador de 32 anos que teve uma bolsa de iniciação científica na graduação e depois foi bolsista da Capes no mestrado, no doutorado (feito em parte na Bélgica e na Austrália) e no pós-doutorado. A equipe do laboratório tem nove pessoas, das quais cinco são bolsistas, da graduação ou do mestrado.
Precisamos de pesquisa aplicada na área. Amarrar com as universidades é fundamental.
LAURO BERNARDI
Assistente técnico regional da Emater
A partir do apelo vindo do Vale do Caí, o grupo da UFSM se mobilizou. O primeiro trabalho, em 2017, consistiu em estudar todos os inseticidas químicos e produtos biológicos que os produtores usavam no manejo da mosca-branca. O relato recebido por Arnemann era de que muitos proprietários haviam se endividado ou falido comprando agrotóxicos, sem saber o que funcionava.
– Os agricultores são influenciados por vendedores, que visitam as propriedades e querem vender. Eles convencem o produtor a comprar X, Y ou Z, mas sem nenhum respaldo, nenhuma pesquisa por trás. Nem sempre o que é vendido funciona. Fomos para o Vale do Caí e testamos tudo o que eles usam lá. Uma vez por semana, coletávamos as folhas e avaliávamos a população de mosca-branca, para ver se estava aumentando ou diminuindo. No final, pudemos dizer a eles: isto funciona, isto funciona mais ou menos e isto não funciona – relata Arnemann.
Entre os produtos eficientes no combate à praga estavam inclusive receitas biológicas caseiras usadas na região, que não são tóxicas e custam bem menos do que os produtos da indústria. O resultado da pesquisa foi apresentado aos olericultores, por Arnemann e seus alunos, através de palestras e folhetos explicativos.
Assistente técnico regional da Emater, Lauro Bernardi afirma que o novo conhecimento produzido na universidade está sendo aplicado pelos produtores:
Todas as possibilidades estão sendo estudadas para garantir o pleno funcionamento dos serviços prestados. A Capes poderá alcançar R$ 4 bilhões de orçamento em 2020.
NOTA ENVIADA PELO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO À REPORTAGEM DE GAÚCHAZH
– Precisamos de muita pesquisa aplicada nessa área da olericultura. Como não temos mais um órgão estadual que poderia fazer isso, que seria a Fepagro, amarrar com as universidades é fundamental. Em seis meses, o grupo da UFSM nos deu um diagnóstico, apontou falhas de manejo e disse quais produtos são melhores. Esse trabalho está sendo apropriado pelo produtor, que nos relata que é efetivo. O impacto se traduz em redução de carga química, aplicação de doses corretas e melhoria da produtividade – comemora Bernardi.
O trabalho prossegue. A mosca-branca coloca seus ovos sob as folhas da planta, de onde nascem ninfas – a fase jovem da praga. Existem, no entanto, pequenas vespas que depositam seus ovos nessa ninfa, matando-a. É uma espécie de controle biológico natural, que evita a geração de novas moscas-brancas adultas.
Na atual etapa da pesquisa, Arnemann e sua equipe trabalham com a meta de criar essas vespas em laboratório, de forma a soltá-las nas estufas para impedir a proliferação da praga, o que reduziria o uso de químicos. Esse tipo de controle já é feito em outros países, mas os pesquisadores gaúchos precisam identificar quais são as espécies de vespa que ocorrem naturalmente aqui (o que já fizeram), descobrir a mais frequente e melhorá-la, para cumprir a missão desejada.
Arnemann afirma que tudo o que ele faz é resultado do que aprendeu, em grande parte fora do país, financiado por bolsas de pesquisa:
– Na graduação, eu conseguia me manter na UFSM por que tinha uma bolsa de iniciação científica. Depois, as bolsas me permitiram trazer lá de fora o conhecimento que estou aplicando aqui. A minha formação só existe por causa das bolsas. Também sempre trabalho com bolsistas. Sem eles não acontece nada. Eles planejam, buscam informações em bancos de dados, fundamentam os projetos, executam. Ficaria muito difícil dar continuidade ao projeto se não houver bolsistas.
Quando a computação se une à psicologia
Nos dias atuais, as câmeras de vigilância estão por todos os lados, flagrando centenas de milhões de pessoas. E se fosse possível extrair desses vídeos informações que o olho humano não capta, como a personalidade, as emoções e a origem cultural de quem é filmado?
Quem consegue gerar mais conhecimento, inovar mais e gerar mais tecnologias e técnicas vai estar à frente. Quanto mais houver geração de conhecimento, mais rico será o país.
ROGÉRIO FRIEDMAN
Pesquisador da UFRGS
Um software que realiza essa tarefa foi desenvolvido a partir de uma parceria entre os cursos de Ciências da Computação e de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). À frente do projeto, a professora Soraia Raupp Musse percorreu uma trajetória na área da informática que afirma só ter sido possível por causa de bolsas do CNPq (de mestrado e de produtividade) e da Capes (durante o doutorado, feito na Suíça, e no pós-doutorado, nos Estados Unidos).
– Enquanto estava com meus pais, aqui em Porto Alegre, fazendo mestrado, ainda teria condições. Mas ir para a Europa e os Estados Unidos sem bolsa teria sido impossível – observa Soraia.
Parceiro dela no projeto, o professor de Psicologia Angelo Brandelli também foi contemplado com bolsas da Capes no mestrado e no doutorado e hoje recebe uma bolsa de produtividade do CNPq. Eles trabalharam com o doutorando em Ciência da Computação Rodolfo Favaretto, responsável pelo desenvolvimento do software GeoMind.
No trabalho, teorias psicológicas foram traduzidas para a linguagem dos computadores. O trio também analisou comportamentos de grupo, de diferentes nacionalidades. Quando um vídeo é submetido ao GeoMind, o software consegue apontar se as pessoas que aparecem nele formam um grupo, se apresentam determinados traços de personalidade (abertura para a experiência, conscienciosidade, extroversão, neuroticismo e amabilidade) e se vivenciam emoções como medo, raiva, tristeza e felicidade. O programa também foi alimentado com dados do comportamento em grupo de pessoas de diferentes países, incluindo brasileiros.
– Nós estávamos interessados em comportamento de segurança, pessoas fazendo coisas estranhas. Imagina se a Secretaria de Segurança, que monitora várias câmeras, consegue descobrir algo relevante em imagens para alertar a Brigada Militar? O software lê imagens e consegue dar várias informações sobre o que está acontecendo, se uma pessoa tem personalidade tal, se está com uma determinada emoção. Ele gera conjuntos de informações sobre o comportamento das pessoas e dos grupos. Já poderia ser usado para dar um alarme se certas coisas aparecerem nas câmeras. O objetivo agora é aprimorá-lo, para que consiga antecipar situações, de forma a ser usado na área da segurança. É isso que estamos testando – explica Soraia.