Olhos atentos, corpos retesados em concentração, rostos que deixam transparecer o trabalho afiado da mente: todos os sinais de envolvimento por inteiro estão ali. Em frente a um tabuleiro, jovens de uma escola pública municipal em Viamão, na Região Metropolitana, deixam os problemas de lado enquanto aprendem, se esforçam e se superam ao mexerem, com ímpeto inegável, as peças de xadrez. E, frente a cada desafio, a cada casa que avançam, vão traçando também seu caminho rumo a um futuro melhor.
A escola Dom Diogo de Souza implementou o esporte como parte integrante da grade curricular em 2016. E, desde então, tem visto se acumularem efeitos positivos no aprendizado dos estudantes. As notas melhoraram, a evasão escolar diminuiu, a distorção idade-série – quando há defasagem em relação à idade considerada adequada para cada ano de estudo – foi a zero. Isso em uma comunidade carente, no bairro Valença, que sofria com o desinteresse dos alunos pela escola, levando a um afastamento também das famílias.
O xadrez se tornou atividade obrigatória por lá, semanalmente ensinado a todos os estudantes, da Educação Infantil ao 9º ano do Ensino Fundamental. Mas nem precisava: as crianças e adolescentes ficam tão entusiasmados com o jogo que querem mexer suas peças em qualquer lugar. Na biblioteca, em sala de aula, em casa, com pais e amigos, e até online, com totais desconhecidos. A animação é tanta que o colégio tem até um tabuleiro gigante móvel, montado pelos próprios jovens em lugares variados do pátio. E é difícil vê-lo parado.
– Esse projeto trouxe uma sensação de pertencimento aos nossos alunos. Antes, eles ficavam afastados da escola. Não tinham vontade de vir. Os pais também não participavam desse contexto. Mas, hoje, vemos o quanto mudou. Os pais agora jogam xadrez com os filhos. O tabuleiro trouxe para a roda da mesa a conversa, aquele diálogo que não existia mais. Ganhou não só a escola, mas toda a comunidade também, com essa recuperação da estrutura familiar – destaca a diretora, Márcia Adriana Roldão.
Esse “pertencimento” é considerado importante porque influencia em tudo: na vontade de estudar, de se relacionar bem com os colegas e os professores, de dar o máximo, de concluir as atividades, de não desistir.
– O ensino só dá certo se realmente faz a diferença na vida do aluno. Se ele melhora não só na questão do aprendizado, mas na questão social também, enquanto pessoa. Se há empatia, se há o reconhecimento, se há transformação de vida – completa Márcia, entusiasmada com as mudanças promovidas pelo xadrez na comunidade escolar nos últimos anos.
Esse esporte é trabalhado semanalmente na escola em um período de matemática. E oferecido, ainda, em oficina realizada no contraturno em todas as terças-feiras. É quando dezenas de estudantes, dos mais variados anos, permanecem por ali por uma manhã ou uma tarde inteiras, antes ou depois das aulas do dia – e o fazem por conta própria, pelo prazer de jogar.
– O xadrez como atividade escolar é importante porque desenvolve a parte cognitiva, a parte pessoal do aluno. A questão da construção de indivíduo. Porque o aluno também tem a questão de pertencimento. Torna-se parte da escola. Ele se sente uma parte única, especial, e isso faz com que todos venham junto. Todos em prol do mesmo objetivo – declara Bruno Rogério Regio, professor de matemática que viu, com o apoio da direção e da prefeitura, seu projeto de ensinar com a prática de xadrez crescer ao ponto em que chegou hoje.
As lições variam conforme o ano escolar. Na Educação Infantil, de maneira ainda lúdica, é trabalhado o formato das peças, seus nomes, como elas se movem. No início do Ensino Fundamental, os estudantes já aprendem mais sobre a movimentação e táticas de jogo, têm as primeiras noções de estratégias. Até que, nos anos finais, jogam para valer. Em meio a isso, vão aprendendo a pensar com números, fazer cálculos e desenvolver habilidades matemáticas.
– Esse esporte contribui no aprendizado de todos. Exige concentração, pensar antes de agir, boa memória, desenvolvimento rápido de estratégia, adaptação constante. Eles evoluem muito, em todos os aspectos, quando jogam xadrez – afirma Ana Margareti Oliveira, professora de alfabetização na escola.
Em uma aula para uma turma de 3º ano do Ensino Fundamental com a participação de Bruno, o especialista em xadrez da escola – que não anda muitos passos até ser abraçado por uma criança, e depois outra, e logo depois ser cumprimentado por um adolescente e discutir estratégias com outro –, a professora Ana Margareti aproveitava para relacionar os cálculos ao padrão de movimento das peças.
– O cavalo se move de três em três casas, né? Lembram da tabuada do três? Podemos multiplicar!
Mas não é só em lições de matemática que o tabuleiro mostra seu potencial. O professor de história toma os nomes das peças e transporta os estudantes para a Idade Média, lecionando sobre a divisão social, sobre os reis e rainhas, sobre os bispos, os peões. A professora de língua portuguesa aproveita o “x” e o “z” da palavra que tanto mobiliza os alunos para dar exemplos de outros termos com essas letras. E nem o til do peão fica de fora dessa.
– Eu jogo toda hora. Em casa, na escola, com meus pais, com os amigos. Aprendo muito. E consigo relacionar isso com várias disciplinas – define Marcos Vinicius Pinto, 13 anos, aluno do 8º ano da escola, entre uma jogada e outra em uma plataforma online na qual ele já acumula 121 partidas nos últimos quatro meses.
Os professores andam uniformizados com camisetas pretas em que constam, além de seus nomes, a representação de peças de xadrez e duas estrelas. Nos uniformes do clube de xadrez – de que participam 60 alunos, aqueles que mais se sentem preparados para competições –, a dupla estrelada se explica: às costas, está escrito “Bicampeã(o) Nacional de Xadrez Escolar”.
Estudantes da escola conquistaram, em 2017 e 2018, a Copa Brasil de Xadrez Escolar. E vão, neste ano, em busca do terceiro título consecutivo. Não é só: somam-se à lista troféus e medalhas em disputas regionais e nacionais. De 19 a 23 de setembro, eles estarão em Caxambu (MG) para mais uma competição – na verdade, a maior delas no país para estudantes –, o Campeonato Brasileiro de Xadrez Escolar. Caso vençam, se credenciam para torneios internacionais.
– Participo bastante de torneios, acho que ajuda a ter novas experiências. Tu aprende muito mais com jogadores que tu não vê, com quem tu não joga frequentemente. Porque aí tu tem que prestar ainda mais atenção, pensar melhor naquilo que vai fazer, em quais vão ser as próximas jogadas – justifica a aluna do 8º ano Gabriela Nogueira, 14 anos.
Os jovens demonstram sua habilidade jogando de igual para igual com pessoas com mais experiência de vida. Os “mais velhos”, no início, até chegavam a amedrontar os alunos. Mas foi só até eles perceberem que, no xadrez, todo mundo é igual: não há distinção de gênero, de idade, de raça. E a habilidade é definida principalmente pelo esforço em aprender sempre mais.
– Eles gostam muito de jogar comigo e gostam mais quando ganham de mim. Porque a gente tem jogadores bem fortes. Por exemplo, agora de manhã, joguei duas partidas com o mesmo aluno: uma de brancas, uma de pretas. E perdi as duas – diverte-se o militar reformado Silvio de Oliveira Rosa, professor voluntário de matemática na escola e um apaixonado pelo esporte.
Com uma competitividade saudável, com respeito aos colegas, com incentivo para buscarem sempre ir além, os estudantes da Dom Diogo de Souza vão crescendo como enxadristas e como pessoas.
– Além da parte de estratégia, além da parte tática do jogo em si, eles também mudam como indivíduos. Na questão de organização, na questão de cordialidade, na questão de respeito. Tem muito esse lance de respeito entre os enxadristas.
E isso faz com que todos cresçam ao mesmo tempo, um incentivando o progresso do outro – garante o professor Bruno, que começou com um projeto pequeno, em 2015, envolvendo 30 alunos, e hoje vê uma instituição com 700 estudantes toda mobilizada pelo esporte.
Em uma área antes marcada pela evasão escolar, pelo desinteresse, pela falta de expectativa, professores e estudantes estão conseguindo mostrar como é possível, mesmo em pouco tempo, mudar toda uma realidade.
– Como nós temos uma comunidade muito carente, uma comunidade com horizontes muito limitados, até devido à questão econômica, o xadrez está servindo muito para melhorar essa questão.Para mostrar que o peão pode chegar a ser o que ele bem entender. Então eles podem chegar longe. Estamos vendo isso. É só eles quererem.
O projeto
- O que é? Incluído no currículo escolar, o xadrez é trabalhado em diferentes temáticas de todas as áreas do conhecimento para alunos da Educação Infantil ao 9° ano do Ensino Fundamental.
- Quem faz? Escola Municipal de Ensino Fundamental Dom Diogo de Souza, de Viamão.
- Desde quando? O projeto começou em 2015, nas aulas de matemática do professor Bruno Rogério Regio, com aproximadamente 30 alunos. Em 2016, passou a ser trabalhado como projeto pedagógico para todas as turmas, servindo como ferramenta para melhorar os índices de aprendizagem na escola.
- Objetivos: desde sua concepção, o projeto tem como meta aumentar os índices de aprendizagem, especialmente na área de Matemática; aumentar a autoestima dos alunos, possibilitando a maior frequência escolar, diminuindo a evasão; envolver mais os pais e familiares na comunidade escolar, demonstrando os benefícios alcançados com o uso do xadrez na escola.
- Para saber mais: página de Facebook da escola
- Responsáveis: Márcia Adriana Roldão, diretora da escola, e Bruno Rogério Regio, professor de Matemática e mediador do projeto.
- Apoio: prefeitura de Viamão, por meio da Secretaria Municipal de Educação.
- Conquistas: bicampeã escolar pela Liga Brasileira de Xadrez (LBX), com títulos conquistados em Petrolina (PE) e Brasília nos últimos anos; campeã Escolar do Torneio Cristo Redentor (Canoas) em 2017; campeã Escolar da Fenadoce (Pelotas) em 2018 e 2019 – Categorias Pré-mirim ao juvenil; campeã do 10° Torneio Estudantil em Estrela em 2018 – Categorias infantil e juvenil; campeã no Torneio Escolar Fenac (Novo Hamburgo) em 2018 – Categorias sub-12 ao sub-16; campeã da Copa Alvoradense (Alvorada) em 2018 – Categorias sub-8 ao sub-16;
- E ainda: o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) da escola passou de 3,8 em 2016 para 5,0 em 2018. A taxa de evasão caiu de 50% em 2016 para os atuais 2%.