As atividades práticas nas escolas costumam ser repassadas de maneira semelhante ao longo dos anos: o professor explica o tema, depois apresenta um problema e convida a turma a tentar resolvê-lo. Os alunos são instruídos a descobrir como, a partir daquilo que já aprenderam, podem solucionar determinada questão. Depois há um novo tema, mais um problema, outra orientação de resolvê-lo, e assim sucessivamente, até que deixem a escola e apliquem essa forma de ver o mundo no seu dia a dia, reagindo aos desafios impostos.
Mas uma escola em Campo Bom, no Vale do Sinos, atenta ao que muitos educadores vêm dizendo em relação à necessidade de valorizar o protagonismo dos alunos, quer fazer diferente. Desde o início do ano, a ideia é modificar todo esse processo. Crianças e adolescentes recebem a missão de colocar-se no lugar dos outros, identificar, eles mesmos, algum problema e, a partir disso, em diálogo constante com a comunidade, algo que vai além dos muros escolares, encontrar soluções inovadoras – que podem sequer ter relação direta com aquilo que elas viram em sala de aula.
A esse projeto, foi dado o sugestivo nome de Desaprendendo para Aprender. A ideia é justamente rever os conceitos que há tempos têm sido aplicados na escola e “ressignificá-los”. Por que aplicar um problema cuja resposta está prevista em um livro que milhares de outros alunos já leram? Por que não colocar os próprios estudantes para apontar um obstáculo real e elaborar maneiras criativas de superá-lo?
– A proposta difere, por exemplo, de uma experiência de iniciação científica, em que os alunos precisam primeiro formular uma hipótese para depois tentar confirmá-la. Nesse nosso projeto, o caminho passa por, primeiro, entender o problema, para então pensar em soluções e formular teses. Quando o projeto é apresentado, não o consideramos pronto, como seria uma pesquisa científica: queremos sempre continuar fazendo adaptações – define o psicólogo Cesar Miraglia, que vem trabalhando o tema no Colégio Santa Teresinha.
Para a escola particular, que começou a trabalhar a proposta no ano passado, promovendo a capacitação dos professores, o objetivo é seguir, sim, as diretrizes curriculares tradicionais. Mas fazê-lo sem deixar de valorizar a capacidade de inovação, tão presente nas mentes criativas de crianças e adolescentes.
Os primeiros “alvos” do Desaprendendo para Aprender são os alunos de 6° a 9° ano do Ensino Fundamental, jovens entre 11 e 15 anos que gostam de dar asas à imaginação. Com a orientação dos professores, eles agora podem deixar seu pensamento fluir. Não, porém, de maneira descontrolada: tudo é feito a partir de uma metodologia que estimula a abordagem crítica e prática dos problemas e das soluções que eles mesmos sugerem.
– A escola, como um todo, já vem trabalhando dentro dessa ideia de que o aluno possa ser protagonista, do maternal ao Ensino Médio. A base de todo o Desaprender para Aprender se dá dentro de uma atividade prática, ou uma cultura maker, conforme a gente chama. São atividades de construção – garante Carla Juliana Monaco, diretora acadêmica da escola.
Desaprender, nesse contexto, significa repensar o que é feito, como é feito e por que é feito. Depois disso, passa-se a procurar novas maneiras de produzir esses conhecimentos. E, assim, se pode aprender novamente – de um jeito que pode ser totalmente inovador.
– Vivemos em um mundo muito rápido. O que hoje é uma verdade, está acontecendo, amanhã pode mudar. Nossos alunos estão vindo assim: com essa velocidade, com essa curiosidade. E constantemente nós estamos desaprendendo e aprendendo. E precisamos estar abertos a isso, se não, vai ser muito difícil. O mundo está em constante transformação, e nós também precisamos estar – complementa a diretora.
Uma dessas novas maneiras de ensinar passa pela aprendizagem baseada em desafios que vem sendo aplicada no colégio. E a proposta já tem surtido efeitos práticos. Um exemplo: na feira de ciências, uma turma apresentou um trabalho sobre como é a vida das pessoas com deficiência visual. A partir de algumas fontes, mostrou os principais problemas – sem, porém, realmente conversar com pessoas que vivenciem essa realidade. Depois, com a implementação do projeto, a pesquisa tomou um novo rumo.
– Agora eles estão aprofundando isso. Estão preparando, como uma intervenção com o professor de teatro, algo que remeta à experiência de alguém com deficiência visual dentro da escola. Eles vão pôr vendas e sentir como é. Colocando-se, empaticamente, no lugar do outro. E, assim, produzindo conscientização – diz Tatiany Espindola, coordenadora pedagógica do Colégio Santa Teresinha, explicando que essa vivência produz resultados mais ricos.
Quatro colegas do 7° ano da escola ficaram impactados ao ver o número alto de ocorrências atendidas pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em Campo Bom. Sem já começar tirando conclusões – desaprendendo, afinal, antes de aprender –, eles se questionaram: o que leva a isso? Descobriram que boa parte desses atendimentos se dava no trânsito. E, percorrendo um caminho para entender o problema, começaram a olhar ao seu redor.
Fora dos muros da escola, perceberam que havia semáforos queimados. Placas de sinalização escondidas. Faixas de pedestre próximas demais de ciclovias. E outras questões, como motoristas dirigindo alcoolizados, usando o celular enquanto dirigem, portando carteira de habilitação vencida, entre diversos problemas semelhantes.
– Começamos a prestar atenção e vimos placas pichadas, quebra-molas sem sinalização, várias coisas assim. Passamos a tirar fotos para registrar os problemas. Conversamos com nossos pais e várias pessoas que convivem com o trânsito diretamente. Agora queremos buscar mais dados e quem sabe apresentar uma proposta para a prefeitura melhorar o trânsito por aqui – afirma Caio Henrique Schelle, 12 anos.
– A gente também se colocou no lugar das pessoas. Entendemos que, às vezes, elas estão atrasadas, com pressa, estressadas. Estamos levando tudo isso em consideração. Soluções são difíceis de se encontrar quando você não entende o problema a fundo – relata seu colega de grupo, João Pedro Raupp, 13 anos.
Foi também olhando para a própria realidade e se colocando no lugar dos outros que um grupo de seis alunos do 8° ano identificou um problema comum nas escolas: o desinteresse pelas aulas. Eles desenvolveram um questionário, aplicado a estudantes do Ensino Fundamental e Médio no Colégio Santa Teresinha e em uma escola pública do município.
– Tivemos a ideia ao perceber que esse é um assunto muito presente na sala de aula. E o simples fato de alguns alunos não se importarem acaba prejudicando não só a eles, mas a todo o grupo em volta. Queremos solucionar isso, e a ideia de aplicar o questionário serve para que possamos conversar com os professores, com a direção e propor maneiras de mudar as coisas. Muitos estudantes relatam que algumas aulas são maçantes, e atividades práticas, por exemplo, poderiam alterar essa sensação – explica Eduarda Alves Mallmann, 13 anos.
Para identificar um problema, entendê-lo, analisá-lo e propor soluções, os alunos trabalham com um “mapa da empatia”. Ali fica representada uma pessoa, e ao seu redor há quatro eixos: o que ela sente e pensa, o que vê, o que diz e faz, o que escuta. Em uma reunião de grupo dedicada à compreensão das situações que rodeiam essa pessoa imaginária, os alunos colocam em prática a empatia. Dão ideias. Colaboram com o que dizem os colegas. E vão colando pequenos papéis coloridos ao redor de todo o mapa. Ao final, percebem que obtiveram um conhecimento muito mais amplo sobre a situação que escolheram estudar.
– Eu acho bem legal fazer esse tipo de atividade. Porque tu não fica só dentro da sala. Tu vai para a rua, procura pessoas que entendem do assunto, pesquisa na internet, em livros. E isso é legal. Quanto mais conhecimento, melhor – diz João Pedro Büttenbender, 14 anos, aluno do 9º ano.
Com quatro colegas, o jovem interessou-se por pesquisar o tratamento de esgoto no município. A ideia surgiu porque eles começaram a perceber que quem passava pelos arredores do Parcão de Campo Bom costumava reclamar do cheiro ruim. Conversando com esses moradores, perceberam ainda que o problema poderia ser mais do que um incômodo para o olfato: talvez fosse uma questão de saúde pública. Eles agora estão se informando sobre o andamento de obras de saneamento e pretendem cobrar mais ações da prefeitura.
Os temas desses trabalhos que reforçam o protagonismo juvenil são os mais variados: de saúde a mobilidade urbana, de tecnologia a educação, sempre com o interesse público como norteador. Trabalhando a empatia para identificar problemas a resolver e incentivando a participação direta dos jovens nessas questões, com soluções criativas, a ideia de “desaprender para aprender” tem feito centenas de alunos repensarem o seu próprio papel no aprendizado, dentro e fora da escola. É como define Tatiany, coordenadora pedagógica da escola:
– Os alunos estão saindo das portas da escola. Querem visitar outras escolas, conversar com a comunidade, ver a realidade dos outros. Ao desaprenderem, descobrem que estão constantemente tendo que reaprender. E vão se tornando, assim, durante a formação, pessoas cada vez mais protagonistas. Da própria história e, no futuro, do mundo.
O projeto
- O que é? O projeto Desaprendendo para Aprender busca desenvolver a educação a partir de práticas criativas de aprendizagem, envolvendo alunos, professores, pais e a comunidade do município.
- Quem faz? Colégio Santa Teresinha, de Campo Bom, no Vale do Sinos.
- Desde quando? A formação dos professores inclinada para orientar o protagonismo dos estudantes teve início em 2018. A aplicação prática da metodologia em sala de aula começou em março.
- Responsáveis: Carla Juliana Monaco, diretora acadêmica da escola; Tatiany Espindola, coordenadora pedagógica; Cesar Miraglia, da Academia Mentes Audazes.
- Apoio: União Beneficente e Cultural de Campo Bom (Ubec).
- Objetivo: desenvolver protagonistas de um mundo em constante transformação a partir de metodologias como o aprendizado baseado em desafios.
- Conquistas: o programa foi selecionado para a II Conferência Brasileira de Aprendizagem Criativa em São Bernardo do Campo (SP), que ocorrerá de 18 a 21 de setembro.
- Para saber mais: santa.g12.br/site e academiamentesaudazes.com.br/cursos/space-jump-i-escolas