Foi em 2004, na fila de um banco, em Colorado, quando era dono de um posto de combustíveis e tinha de pagar os boletos no caixa, que Erasmo Battistella ouviu falar pela primeira vez de biodiesel. Um amigo contou que tinha lido na Zero Hora uma notícia sobre o que seria o combustível do futuro, feito de soja. Erasmo se interessou. Levou o jornal para casa, leu a notícia e concluiu que era uma área em que valia a pena investir, já que o governo preparava um programa de incentivo à produção de um combustível sustentável. Assim nasceu a empresa BSBios, hoje Be8, que, além de produzir biodiesel em Passo Fundo e no Paraguai, vai produzir querosene de aviação e está construindo uma fábrica de etanol, além de transformar óleo de cozinha em combustível na Suíça. Um dos empresários mais importantes do Estado, Erasmo conserva a simplicidade de quem nasceu e viveu na roça até os 13 anos. Casado, pai de quatro filhas, tem a sustentabilidade como propósito e defende que é preciso inventar o futuro agora.
O slogan da Be8 é “inventar o futuro agora”. O que nós, como sociedade, precisamos fazer para reinventar esse futuro e conter a degradação do planeta?
A primeira coisa que precisamos fazer é tomar consciência do que fazer. Momentos como este são importantes para passar percepções para as pessoas do que efetivamente está acontecendo. Vejo ainda muita desinformação com o que vem acontecendo em relação ao clima e, principalmente, em relação ao que cada um de nós pode fazer no dia a dia. Então, o slogan da Be8 quer justamente trazer a atenção das pessoas para como é possível fazer algo diferente no seu cotidiano e contribuir para salvar o planeta. Acreditamos nos cientistas, que estão demonstrando que há um aquecimento, e que o aumento das temperaturas tem causado cada vez mais problemas. Nos últimos anos, infelizmente, nós aqui no Rio Grande do Sul temos sofrido muito com isso. Então, acho que o principal ponto é conscientizar as pessoas de que nós precisamos mudar. A gente ainda ouve muitas pessoas dizendo: “Ah, mas isso é cíclico, teve a Era do Gelo, e ia acontecer de qualquer forma com mais carbono, com menos carbono”. Mas nós sabemos que, com mais carbono, a situação piora. Então, já que não podemos evitar que os ciclos ocorram, o que podemos fazer para evitar que a situação se deteriore mais?
E o que pode ser feito?
Essa afirmação de que são ciclos e de que tudo vai voltar para o seu nível local em algumas décadas ou algumas centenas de anos eu ouço praticamente todo dia. Porque não há uma unanimidade sobre o aquecimento global. Mas a minha resposta é a seguinte: se nós tivermos boas práticas ambientais, se cuidarmos dos rios, dos dejetos, do lixo, estaremos fazendo uma coisa positiva. Se, porventura, for algo cíclico, vamos ficar melhor ainda. O problema é se acreditarmos que nada está acontecendo e, quando percebermos que não é cíclico, que não tem volta, já será tarde demais. Proponho uma análise simples: quantos carros Porto Alegre tinha há 50 anos? E Passo Fundo? Quantas pessoas habitavam essas cidades? Agora compara com a projeção para 2050. Quanto nós consumíamos de energia há 50 anos? Quanto consumimos hoje? Quanto vamos consumir em 2050? Para mover toda essa nova grande demanda, todos os dias desenterramos o carbono que está enterrado, seja através da exploração de petróleo ou do uso do carvão. Então é óbvio que hoje nós, todos os dias, jogamos muitos gases de efeito estufa, principalmente o carbono, o metano, na atmosfera. Mesmo que tudo isso passe com o tempo, nós não podemos apostar, nós temos de fazer o nosso dever de casa.
Começamos falando de futuro, mas temos de falar também do passado. Em que momento o senhor teve a percepção de de que meio ambiente também significava business? Conte um pouco sua história, por favor.
Nasci lá na longínqua Itatiba do Sul, na divisa com Santa Catarina. Filho de italianos, fiquei meus 12, 13 primeiros anos estudando em escola pública e trabalhando na roça. Depois fui para Erechim, estudar na escola agrícola, fiz curso técnico, que para mim foi muito interessante, porque me formei em técnico agropecuário, e logo fui trabalhar – na época não tinha todas as facilidades de hoje para cursar universidade. Fiz Administração de Empresas depois dos 30 anos. Com 19 para 20 anos surgiu uma oportunidade de ter meu primeiro negócio. Eu sempre quis muito ser um empreendedor. Na escola agrícola, já estava fazendo projeto do que tinha viabilidade econômica. Fui para a área de postos de combustíveis, consegui crescer um pouco nessa área, e, lá em 2004, literalmente na fila do banco, alguém me falou: “Olha, está vindo um novo biocombustível”. Ali me deu um estalo de que estava diante de uma oportunidade.
Como foi essa conversa?
Na verdade, eu era um empresário pequeno e estava no meu momento office boy, de pagar as contas. Não tinha essas facilidades de ter o app no celular e tudo mais. Fui ao banco, e na fila estava um agricultor e professor de Colorado. Ele me disse: “Olha, Erasmo, li na Zero Hora de hoje que está vindo um novo biocombustível e vai ser feito da soja”. Levei o jornal para casa e, à noite, quando li a matéria, me veio uma visão muito clara: aqui tem uma oportunidade, eu estou no segmento combustível, meus clientes são os produtores de soja, têm muita oferta de matéria-prima, preciso pensar como fazer uma mini-usina. Foi o primeiro insight. Depois, felizmente, fui assessorado pelo Banco do Brasil, por uma empresa de consultoria, e acho que consegui perceber rápido que não se tratava de um negócio pequeno, porque quando a gente fala em commodities e energia, a escala é muito importante para ter competitividade. Aí comecei a perceber que, efetivamente, esse negócio poderia ter uma conexão importante, e um de seus pilares era o ambiental. Os outros dois, que continuam até hoje, são o econômico e o social. Esse tripé foi a base do programa de biocombustível do Brasil.
Nesse seu começo, era Marina Silva a ministra do Meio Ambiente e Roberto Rodrigues na Agricultura.
A liderança dele foi fundamental. A Dilma (Rousseff) era ministra de Minas e Energia e tinha essa preocupação com energia limpa. Tenho uma visão muito clara de que a liderança do ministro Rodrigues foi muito importante. Como ele já tinha vivido a experiência do etanol, esse conhecimento ajudou o governo a formatar um programa de biodiesel que deu certo.
Hoje, a maior parte da soja produzida no Brasil vai para alimentação e exportação. Só uma pequena parte se transforma em biodiesel. Qual é a perspectiva para os próximos 10 anos?
É bom poder esclarecer que, de um grão de soja, só 20% são utilizados para a produção de biocombustíveis. Os outros 80% podem ser usados como base de alimentação humana ou das cadeias produtivas de proteína animal, seja frango, suínos, gado, gado leiteiro, ovos, leite. E o grande volume da soja deverá, no futuro, continuar indo para a alimentação humana. A demanda é crescente. Parte dessa soja hoje vai para as energias, e ela tende a continuar indo. O consumo de óleos vegetais não cresce tanto quanto o consumo de proteína. E a soja, no Brasil, se desenvolveu não pela demanda do óleo, mas pela demanda da proteína.
A Folha de S. Paulo trouxe uma manchete preocupante, dizendo que o Brasil não tem um plano de transição energética e que sequer tem metas para isso. Na COP de Dubai, onde o senhor esteve, ficou claro: ao mesmo tempo em que estamos fazendo uma conferência mundial sobre o clima, pregando um mundo sustentável, o país é um dos principais produtores de petróleo. O presidente Lula vai lá, defende o fim do petróleo, mas fecha acordo com a exploração de petróleo. Essas contradições são parte da transição?
Quando a gente fala em transição energética, a minha percepção é de que estamos falando efetivamente em geopolítica. Ao falar de geopolítica, nós precisamos compreender o que é importante para cada país, principalmente os do G20, que possuem ou influenciam 85% do PIB do mundo. Se nós, hoje, conseguíssemos descarbonizar esses 85% do PIB do mundo, ganhamos a guerra da questão ambiental. Então, o primeiro ponto é o foco. É no G20, tavez G30, que se vai ganhar o jogo. O segundo ponto importante: não vou comentar a matéria da Folha porque tenho respeito pela instituição, mas vou dar a minha opinião. Acho que o Brasil poderia estar melhor, sim, no que diz respeito a ter um plano de transição energética. Mas o Brasil é um exemplo para muito país do mundo. Porque, mesmo com nossas formas de fazer os planos, estamos fazendo entregas. Entregas que eu digo, e não é a entrega desse governo, é a entrega que vem de décadas de trabalho no Brasil. Cada governo, cada momento da história, com seus avanços e seus retrocessos. Mas o fato é que, hoje, 85% , 86% da matriz de energia elétrica do Brasil é renovável. Somos o segundo maior produtor de biocombustíveis do mundo, só atrás dos EUA. Agora, temos um programa robusto de etanol e de biodiesel. E estamos na iminência da aprovação do Projeto Combustível do Futuro, que estabelece metas para etanol e biodiesel, traz para a nossa matriz energética o diesel verde e o bioquerosene para a aviação, traz também uma umbrela para a captura do CO2, ou seja, é um avanço muito importante. Não é o grande exemplo, mas não é terra arrasada. O Brasil é um exemplo com grandes oportunidades de melhoria. Grandes oportunidades porque o país está no lugar certo para ser um dos líderes na transição energética. Desde que tenha boas políticas públicas.
O Brasil está no lugar certo para ser um dos líderes na transição energética. Desde que tenha boas políticas públicas. Políticas públicas são algo maior, mas falo, sobretudo, dos marcos regulatórios.
Boas políticas públicas incluem uma política tributária, por exemplo?
Políticas públicas são algo maior, mas falo, sobretudo, dos marcos regulatórios. Nós estamos agora com um percentual de mistura de biodiesel que vai de 14% a 15%. O novo projeto que está para ser votado vai elevar a mistura para 25%. Óbvio que nos próximos 10 anos, subindo um pouco, isso é uma grande oportunidade. Porque é um mercado que vai crescer e que absorver parte da nossa matéria-prima. Agora, quando nós pensarmos em colocar o Brasil e o Mercosul para concorrer para exportação, temos de fazer acordos. Ah, mas o Mercosul não consegue fazer acordo com a União Europeia. Então tá. Se eles não querem, não tem como fazer. Vamos fazer acordo com os Emirados Árabes, com os asiáticos, com os países que estão na Europa, mas fora da União Europeia, como a Inglaterra. O maior adversário do Mercosul e de seus países somos nós mesmos.
Vendemos soja em grão para a China, um dos maiores consumidores mundiais mas também maiores poluidores. Qual é a perspectiva de negócios com a China em matéria de biocombustíveis e derivados de soja?
A China é muito importante, é e deve continuar sendo um grande parceiro comercial. Acho que o que o Brasil precisaria é começar a fazer uma escala. Estou exportando grão, vou continuar exportando grão, mas quero industrializar mais esse grão e agregar valor. O Brasil deveria estar mais preocupado em se industrializar. Se, para cada cinco partes de soja, eu gero quatro de farelo, que são, vamos dizer, quatro quilos, consigo gerar deles dois quilos de frango. E o frango, se a gente continuar industrializando, nos permitirá vender presunto e outros produtos de valor agregado. Da última safra de soja, que foram mais de 160 milhões de toneladas, o Brasil exportou mais de 100 milhões. Deve processar menos de 50 milhões e ter um estoque de passagem. Ou seja, de cada três partes de soja que produz, só processa uma parte.
A política industrial anunciada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin atende à expectativa de quem está lá na ponta produzindo?
Ela começa a atender. Pelo menos temos uma política industrial. Temos outra política também anunciada por Alckmin, que é a da mobilidade, que também leva em conta um outro ponto muito importante que é o quanto efetivamente um carro, um caminhão, diminui as emissões quando usa etanol, biodiesel ou, é elétrico. É outra política que se conecta à política industrial, que se conecta ao combustível do futuro. Essas três políticas juntas geram um ambiente mais favorável para os biocombustíveis no Brasil.
A indústria de motores se preparou para a transição?
A indústria tem motores, hoje, já pode utilizar 100% de biodiesel. A indústria automotiva do Brasil deu um show quando desenvolveu o flex para o etanol. Para nós, no Rio Grande do Sul, isso não é muito presente, porque ainda não produzimos etanol, então a gente vai para o posto de combustível e não vê a bomba do etanol. Mas hoje o etanol é mais competitivo do que a gasolina em 24 Estados.
A gente tem de fazer a transição energética como se fosse uma subida de escada, porque, se subirmos de elevador, o impacto inflacionário será grande, já que, hoje, é muito difícil concorrer com o petróleo.
Como tem sido a sua experiência no Conselho de Desenvolvimento? Tem espaço para ser ouvido? Os empresários estão sendo ouvidos?
Participei de algumas reuniões, participei de muitos fóruns online, mas muito focado nos setores em que eu atuo. Não é uma participação política partidária, é uma participação política empresarial, digamos assim, política setorial. Nesse sentido, acredito que fui ouvido e consegui contribuir. Me envolvi principalmente em duas pautas com relatórios já entregues: transição energética e áreas degradadas. O Brasil tem mais de 40 milhões de hectares de áreas degradadas que podem ser reutilizadas, parte para a recomposição florestal necessária, mas outra grande parte para a produção de matérias-primas, tanto para alimentos como energia.
O senhor está investindo em uma fábrica de etanol. Em quanto tempo teremos um etanol competitivo, como nos outros Estados?
Acho que vamos chegar lá, mas, antes, o Rio Grande do Sul vai trabalhar para suprir a parcela de etanol que vai adicionar da gasolina. A adição de 27% à gasolina, que é como nós consumimos no Brasil, deve subir para 30% nos próximos meses, e isso é muito positivo.
A eletrificação dos carros é uma alternativa ao biocombustível?
O Brasil hoje não domina a produção de baterias. A gente está começando a produzir lítio, que manda para a China, que industrializa, faz as baterias e manda para a gente os carros. Ah, vai montar o carro na Bahia? Vai, mas continua a ser uma montadora que não desenvolve tecnologia.
E o hidrogênio?
O Brasil pode, sim, se tornar um grande produtor de hidrogênio. Mas aí pegando as próprias informações da McKinsey, que fez o estudo para o Rio Grande do Sul, a gente vê que o hidrogênio está muito mais para 2035, 2040, do que para 2030. Ou seja, é uma tecnologia que deve amadurecer e ganhar escala daqui a 10, 15 anos. Por questão de custo. Os biocombustíveis, não. Toda a infraestrutura está pronta. É só organizar as políticas públicas, como estão sendo organizadas, e aumentar a produção. E com isso vai ter geração de emprego, agregação de valor, à economia brasileira. Os biocombustíveis são uma realidade.
Com a sua experiência de diálogo com a direita e a esquerda, acredita que conseguiremos vencer a polarização?
Só com diálogo. E um pouco de compreensão. É muito, vai ser difícil, mas o pouco de compreensão que existe mostra que é possível. As pessoas têm opiniões diferentes, divergem, mas a gente precisa ter respeito e olhar efetivamente o que é importante. Estou falando sob o ponto de vista do ambiente de negócio. Sobre política partidária, não me atrevo a falar porque não é a minha praia. Mas, no ambiente de negócio, a gente precisa ter o respeito, respeitar as instituições, contribuir e também cobrar as soluções dos problemas, porque faz parte do sistema produtivo fazer as cobranças adequadas e corretas.
Quando a gente vai ver um avião movido a querosene verde?
Já vemos. Já foram feitos testes com aviões com 100% de querosene verde, mas, como o volume de produção ainda é pequeno, há mistura de 2%, 3% nos EUA. O Brasil está prevendo começar com essa mistura de 2% a 3 % de bioquerosene de aviação em 2027, e depois crescer gradativamente. Costumo dizer que a gente tem de fazer a transição energética como se fosse uma subida de escada, porque, se subirmos de elevador, o impacto inflacionário será grande, já que, hoje, é muito difícil concorrer com o petróleo. Há um grande volume de petróleo, que está sendo explorado há mais de 150 anos. Na transição energética, precisamos ir crescendo com um passo de cada vez. No caso esecífico da SAF (sigla em inglês para o tipo de combustível menos poluente da aviação), o Brasil tem a oportunidade de ser um grande produtor e um grande exportador. Por quê? Porque temos como produzir a matéria-prima, a biomassa. E ainda: nós temos como produzir o hidrogênio verde. Para a produção do SAF, você precisa de biomassa mais hidrogênio. Pode produzir o SAF através do etanol, também. É uma nova tecnologia a partir da mistura com o hidrogênio. Além disso, é muito fácil de transportar o SAF. Usa-se o mesmo navio que transporta o diesel e a gasolina. Então, é muito mais fácil de transportar SAF do que hidrogênio verde, o que nos coloca com muita condição de ser um grande produtor e, também, um grande exportador de SAF.