Deus está morto, sentenciou Nietzsche. Joel Pinheiro da Fonseca não vai tão longe. Para o filósofo e economista, o Todo Poderoso apenas abdicou da cidadania brasileira, cansado da eterna espera dos compatriotas por Sua intervenção divina. Não é para menos. Em Deus não é mais brasileiro, Fonseca compila em livro seis anos de observação de um dos mais tumultuados períodos da política nacional, a partir de colunas publicadas na Folha de S. Paulo. É confusão demais até mesmo para o Onipotente.
Todavia, o garoto nascido em Cambridge, no Reino Unido, em pleno 1985 da eleição de Tancredo Neves – talvez o ano em que mais acreditamos num milagre institucional –, não é de todo incréu. Aos 37 anos, Fonseca acredita que o Brasil tem jeito, sobretudo se submetido a uma doutrina liberal que torne o Estado eficiente, com contas equilibradas, gestão pública moderna e justiça tributária.
Na entrevista a seguir, Fonseca analisa o cenário político e econômico atual desviando da crença ilusória em salvadores da pátria mas com a uma ponta de esperança de quem tem na família um imortal – afinal é filho do economista Eduardo Giannetti da Fonseca, e membro da Academia Brasileira de Letras.
— Deus não é mais brasileiro, mas nós somos. As soluções têm de vir de nós. Não dá mais para ficarmos sonhando com alguém que, num lance de gênio, vai resolver nossos problemas — argumenta.
Seu livro se chama Deus Não É Mais Brasileiro. Como perdemos esse cidadão ilustre?
Foram anos conturbados. Em 2017, quando o livro começa, (Jair) Bolsonaro era um azarão, virou presidente e hoje talvez se torne inelegível e até preso. Lula estava em vias de ser preso, como foi, e agora se reelegeu presidente. Sergio Moro era herói nacional, virou ministro, foi lançado num limbo e se tornou senador. As figuras mais importantes passaram por altos e baixos muitos intensos, enquanto o país se confronta com os mesmos desafios: ajuste nas contas, modernização da gestão pública, integração à economia global, saneamento básico, educação. Muitas vezes, a gente espera por soluções mágicas, que as circunstâncias conspirem a nosso favor, como se Deus fosse brasileiro. Não sei se isso já foi verdade algum dia. Hoje certamente não é.
Por que não saímos dessa situação?
Não precisa agenda liberal radical. A gente sabe como fazer. Tem países que fizeram isso bem, com mais ou menos presença do Estado. O importante é conseguir uma cooperação política mínima para tornar esse objetivo possível. Mas antes há o desafio da civilidade no debate público. Vivemos um tempo radicalmente democrático na comunicação, uma revolução tecnológica que permite um alcance muito maior às opiniões de cada um, através das redes sociais. Isso propicia um engajamento muito maior na esperança de se alterar os rumos da política, mas a discussão está tomada por ódio, ressentimento e mentira.
Grande parte do estrago informacional que o Brasil vive, as fake news, teorias da conspiração, nem passa tanto por redes sociais, mas sim por aplicativos de mensagens, que são muito menos transparentes. Ao apertar algumas plataformas, podemos acabar só empurrando muita coisa para o submundo.
Como impedir que essa ampliação da democracia via redes sociais acabe se tornando um veneno para a democracia?
Recém passamos por um risco desses, houve uma intentona contra a nossa democracia, muito instrumentalizada pelas redes. É um desafio enorme, mas nos últimos anos fui mudando de ponto de vista. Eu era mais pessimista e hoje creio que vivemos uma curva de aprendizado. É inútil tentar frear esse avanço. Pode-se apostar na repressão, o que é uma furada, ou apostar na aptidão das pessoas, na formação. Isso sem excluir, claro, algum tipo de regulamentação.
Você acredita que essas propostas em discussão no governo e no Congresso, com penalidades às big techs, podem ser eficazes?
Sou cauteloso. As plataformas não querem saber se você está discutindo democracia ou vendo foto de gatinhos. Ela quer que você esteja usando as redes e gerando lucro. Temo que a responsabilização das plataformas, mesmo por conteúdos sobre os quais não há decisão judicial, as faça pecar pelo excesso, limando qualquer post mais polêmico e, ao cabo, sufocando o debate público. Ao mesmo tempo, vejo que esse meio é muito fluído. Essa plataforma regulada de hoje pode nem existir amanhã, quando já surgiu uma rede nova para qual a regulamentação não vale. Grande parte do estrago informacional que o Brasil vive, as fake news, teorias da conspiração, nem passa tanto por redes sociais, mas sim por aplicativos de mensagens, que são muito menos transparentes. Ao apertar algumas plataformas, podemos acabar só empurrando muita coisa para o submundo.
E quem vigia os vigilantes?
Isso entra no meu livro, a atuação do (ministro do STF) Alexandre de Moraes. Entendo que, nos momentos de emergência, nos quais a democracia brasileira esteve sob ataque direto, a participação dele teve sua importância. Ao mesmo tempo, foi permeada por pontos questionáveis. Não é bom que isso se torne regra. É preciso bolar soluções. Para as redes sociais, tendo a ser favorável à autorregulação. Acho mais importante as pessoas amadurecerem no debate público do que limá-lo de antemão, com medo de que isso possa significar um certo ataque à democracia.
Você sempre faz questão de se declarar liberal. Por que o liberalismo ainda causa tanta controvérsia no Brasil, quase sempre associado a uma doutrina que governa para os ricos?
No Brasil, liberalismo foi reduzido a laissez-faire, um vale-tudo econômico, a ponto de muitas pessoas que se dizem liberais aceitarem fácil fácil prescindir da própria democracia, como se fosse algo menos relevante. A democracia liberal está por trás dos grandes avanços de desenvolvimento humano. Ser liberal não é ser contra o Estado, é ser a favor da liberdade individual. Às vezes, o Estado pode ser uma ameaça, mas por vezes é a falta de Estado que ameaça a liberdade individual, por exemplo, na exploração gritante de uma população. Acabamos de ver casos de trabalho escravo. Nem sempre a autorregulação é solução, afinal a pessoa não quer morrer de fome e aceita qualquer condição. Em outros casos o Estado é inimigo do progresso econômico. É ineficiente, cria regulamentações que dificultam gerar valor. Então, se para uma parcela dos liberais brasileiros é só uma questão de reduzir poder do Estado na economia, por outro lado o país tem uma esquerda muito atrasada, a ponto de chancelarem alternativas à democracia liberal que se revelaram autoritárias e de fracasso econômico retumbante.
Não há também um fracasso da direita liberal, que governou o país durante muito mais tempo do que a esquerda e não conseguiu popularizar a doutrina nem garantir uma estabilidade econômica duradoura?
Não acredito que a mensagem liberal tenha grande apelo para as massas. Você está sempre falando em limitação, equilíbrio. Mas os liberais, em diversos governos, sejam de direita ou de esquerda, tiveram participação fundamental no debate econômico. Fernando Henrique não é liberal. Lula tampouco, mas no primeiro mandato teve economistas que hoje o PT não quer ver nem de longe e foram responsáveis por alguns dos maiores legados que seu governo teve. Até a Dilma, quando estava tudo indo para o brejo, chamou o Joaquim Levy. Não sou fã do Paulo Guedes, mas o governo Bolsonaro teria sido muito pior sem seu legado na agenda econômica. Agora mesmo, neste governo Lula, em que a esquerda reencontra um certo radicalismo, vejo liberais como Geraldo Alkmin, Simone Tebet e Bernard Appy fazendo toda a diferença.
Um texto seu provocou enorme controvérsia por defender um liberalismo no qual a pessoa poderia vender o próprio rim. Isso está no livro? Era um exemplo drástico ou você advoga esse direito?
Não está no livro. Eu tive um passado mais libertário, acreditava na liberdade individual radical, na qual se o indivíduo achar que o valor da venda de um órgão vale a pena, ele é o senhor de sua decisão. Eu estava inspirado no Gary Becker, prêmio Nobel de Economia e que defendia o mercado de órgãos. Hoje não vejo mais dessa forma, acho que tem limites, até porque muitas vezes o indivíduo não é o que mais sabe, nem mesmo sobre o seu próprio bem no longo prazo. A pessoa pode ser levada a tomar decisões desastrosas em nome de necessidade extrema ou expectativa de ganho.
O Brasil foi descoberto e construído sobre paternalismo estatal. Como romper com esses 500 anos de patrimonialismo?
A realidade brasileira é todo mundo tentando garantir o seu junto ao Estado, inclusive quem está encastelado dentro do próprio Estado e o governo da vez, seja ele qual for. A proximidade com o poder não é para você satisfazer suas necessidades pessoais. "Ah, mas era só um relógio de R$ 50 mil (como os presenteados pelo governo da Arábia Saudita aos ex-ministros de Bolsonaro Onyx Lorenzoni e Osmar Terra)". Não, não é só um relógio. Mas cada vez mais vejo o indivíduo tendo mais ação na sociedade, mais ativo e com mais cobrança. Quem sabe ele também ganha mais poder e pode começar a mudar esse estado das coisas. A negociação política, algo benéfico e fundamental, é quase toda reduzida à busca de poder e recursos para garantir sobrevivência do projeto pessoal ou partidário. Isso atrasa o Brasil. O Brasil tem uma desigualdade brutal, muita gente depende do Estado. É importante garantir que a transferência de renda se dê para quem precisa, e não para as classes média e alta.
Há grande oposição da classe média e alta a programas de transferência de renda como o Bolsa Família, mas muita gente desse segmento fraudou o sistema para receber auxílio emergencial durante a pandemia. O que explica essa contradição?
Correram para garantir o seu. O auxílio emergencial foi necessário, mas depois foi tornado política permanente sem o devido cuidado, ao contrário do Bolsa Família, que tem um desenho muito bem focado e exige contrapartidas importantes, como manutenção dos filhos na escola. O Auxilio Brasil permitiu que cada indivíduo adulto nesse país se declarasse como família unipessoal, gerando alto nível de fraudes e um gasto muito mal focalizado. Isso num auxílio de R$ 600. E se formos falar de linhas subsidiadas para empresários? E regimes especiais de aposentadoria para militares? É preciso um processo de reeducação e de revisão de valores no Brasil, mas não acredito que a gente vá ver isso tão cedo.
O governo Bolsonaro não se revelou tão liberal quanto prometia. O governo Lula está se revelando tão antiliberal e intervencionista como a fama que o precedeu?
Não. Houve exagero no alarmismo de muita gente, especialmente ligada ao bolsonarismo. Quem achava que ele ia fazer uma revolução socialista estava no mundo da lua, mesmo porque o Lula já foi presidente, com o país muito menos dividido e com o Congresso na mão, e não fez. Mas ainda é muito cedo para cravar que será um governo responsável na economia. O ministro Fernando Haddad (Fazenda) tem adotado uma postura muito construtiva, produtiva, contudo há outras vozes que fácil fácil podem tomar a dianteira do governo. Será preciso fazer um ajuste fiscal, senão podemos voltar a termos uma crise.
O governo Bolsonaro teve diversas intervenções na Petrobras visando redução do preço dos combustíveis. Hoje o governo Lula vive às turras com o Banco Central por causa dos juros. Como frear esse intervencionismo?
Não sei se mais regulação revolveria. Tem coisas que dependem da postura de quem está no poder. Ambos os presidentes geraram ruído com suas falas, mas não deram o passo final que seria uma intervenção direta.
Mas Bolsonaro trocou a presidência da Petrobras quatro vezes. E Lula só não mexe no Banco Central porque a lei não deixa.
É. Vamos ver como o Lula vai fazer com a Petrobras também. Não sabemos ainda como vai ser a política de preços. Temos experiência recente do governo Dilma de cobrar preço muito abaixo do mercado que resultou num desastre econômico. As pessoas botam toda a culpa na corrupção, mas o impacto foi coisa de 10% e a política de preços quase quebrou a Petrobras. Vamos ver como vai ser no Banco Central, pois quem sempre mais sofre nas crises são os mais vulneráveis.
A atual crise no sistema bancário internacional tem dado amparo ao discurso de quem defende queda nas taxas de juros. Eles estão realmente muito altos no Brasil?
Não há menor dúvida de que os juros brasileiros são altos. Mas o objetivo é o controle da inflação, que permanece acima do teto da meta. Quem sabe com o novo marco fiscal e propostas de cortes de gastos, as expectativas começam a melhorar e haja espaço para se baixar as taxas de juros. Tem gente que acha que dá para reduzir na canetada. Foi o que fez a Turquia e lá a inflação está em 90% ao ano.
Espero que tenhamos uma carga tributária mais justa, cobrando mais de quem tem mais e menos de quem tem menos. Parte disso, espero, será cobrando imposto sobre lucro e dividendos. É uma aberração brasileira. O mundo inteiro cobra, menos nós.
O corte de impostos é premissa básica do liberalismo, mas muita gente do mercado apoiou a recente reoneração dos combustíveis. Foi uma medida correta?
Apenas cortar impostos não é uma medida liberal, ainda mais se for de um setor específico escolhido politicamente. Quando você corta impostos e os gastos continuam os mesmos, os recursos têm de vir de outro lugar. Alguém vai pagar essa conta. Fui contra a desoneração dos combustíveis feita pelo Bolsonaro e agora considero uma política liberal a reoneração. Cortar impostos é fundamental, mas quem quer levar isso a sério, e não com demagogia eleitoral politiqueira, precisa atuar em duas frentes. A primeira é fazer a reforma tributária, tornando os impostos mais simples e mais justos, ou seja, cobrando mais de quem é mais rico e menos de quem é mais pobre. A segunda é discutir os gastos do Estado, porque cortar impostos sem cortar gastos é irresponsabilidade com o futuro.
Nesse cenário, qual é a pior para um ministro da Fazenda: ser Haddad e ter que enfrentar o populismo do PT ou ser Paulo Guedes e ter de enfrentar o populismo de Bolsonaro?
O fogo amigo que Haddad está sofrendo agora é maior do que o que Guedes sofria. Em certos momentos, Guedes foi terrível, a ponto de querer uma reforma tributária com volta da CPMF. Naquele momento, foi Bolsonaro que não deixou. Mas via de regra, Guedes teve mais coesão. Embora ele tenha abandonado parte da própria agenda, havia um consenso maior dentro do governo para lhe abrir espaços. Entregou muito menos do que prometeu, mas fez muitas coisas que queria. O Haddad está na mira. Vem aí uma desaceleração econômica. Se Haddad não entregar resultados, corre mais riscos do que corria o Guedes.
Poucas vezes se viu tamanho consenso em torno da necessidade de uma reforma tributária. Desta vez ela sai?
Esse é o grande tema desse início do governo Lula. Há um consenso da esquerda à direita de que o caos tributário gera um custo enorme para o país. Uma reforma que simplifique e unifique diversos tributos traz ganhos para todo o sistema. Também traz perdas para algum setor, especialmente no curto prazo, mas isso se resolve com um período de transição. Acredito que algo vai ser feito, pois há apoio do presidente da Câmara, do governador de São Paulo, enfim, de personagens importantes e influentes. Se não sair, está selado o fracasso desse governo.
Os Estados Unidos estão discutindo um aumento de impostos concentrados no mais ricos, com taxas de até 39,6%. O Brasil não tributa lucros e dividendos e cobra imposto de renda de quem ganha R$ 1,9 mil por mês. Como fazer justiça tributária?
Espero que tenhamos uma carga tributária mais justa, cobrando mais de quem tem mais e menos de quem tem menos. Parte disso, espero, será cobrando imposto sobre lucro e dividendos. É uma aberração brasileira. O mundo inteiro cobra, menos nós. A nossa carga, de 34% do PIB, é alta e tem forte impacto no crescimento. A reforma precisa cobrar mais dos ricos, mas não pode aumentar a carga, então precisa cortar dos pobres. Mas não sei se aumentar a isenção do imposto de renda seja o caminho, porque reduz muito a base desse imposto. Cortar impostos sobre o consumo é uma alternativa. Quem é mais pobre paga principalmente sobre o consumo, pois tudo que se compra está cheio de imposto.