O governo gaúcho terá de superar uma série de desafios para cumprir a meta de formalizar a privatização da Corsan até o final do ano. Especialistas consultados por GZH sustentam que a mudança de modelo de desestatização da companhia, anunciada pelo Piratini na quarta-feira (13), pode facilitar a atração de investidores privados, mas segue sujeita a obstáculos como prazo apertado, possíveis interferências do clima de campanha eleitoral e adaptações burocráticas para se concretizar.
O advogado Luiz Gustavo Kaercher Loureiro, sócio do escritório Souto Correa e autor de um parecer sobre a privatização da Corsan, observa que a missão de desestatizar a companhia sob um novo formato envolve uma corrida contra o relógio com menos de seis meses de prazo.
– O que torna delicada essa operação é o tempo necessário para organizar os novos procedimentos. É preciso refazer o cálculo de valor da companhia, remodelar as regras de governança, submeter a empresa a um maior escrutínio de quem quiser comprar, entre outros passos – avalia Loureiro.
Para economista e ex-diretor do Banrisul Ricardo Hingel, entraves burocráticos herdados ainda da formatação anterior do projeto ampliam o grau de complexidade da nova tentativa.
– É preciso ver como ficará a situação de cerca de 200 municípios que não assinaram os aditivos com a Corsan. Além disso, a Agergs (Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados) solicitou mais de 20 ajustes nos contratos que foram assinados para adequá-los juridicamente, que só serão válidos quando a agência disser que estão ok. Há também questões trabalhistas e previdenciárias que não foram resolvidas antes de se iniciar o processo de privatização. Isso tem de ser resolvido sob qualquer modelo de venda, e dificulta até o trabalho de avaliação (do valor) da companhia – analisa Hingel.
Em razão do marco legal do saneamento, que impôs metas de 99% de universalização de abastecimento de água e 90% de esgoto até 2033 em todo o país, a empresa precisou assinar aditivos com os municípios para ajustar os contratos em vigor a esses novos parâmetros.
Como os aditivos foram assinados sob um plano diferente de desestatização da Corsan, agora alterado, o advogado Fábio Cardoso Machado, sócio da área de Negócios do escritório Andrade Maia e com atuação no setor de saneamento, avalia que pode haver até questionamentos sobre a regularidade desses documentos.
– A Corsan pode até não ser considerada tão atraente por conta dessa precariedade dos seus principais ativos, que são os contratos. Isso vai depender muito da sinalização que for dada pelos municípios (de seguir ou não com a empresa) – analisa Machado.
O secretário-chefe da Casa Civil, Artur Lemos, garante que os contratos são válidos:
– O titular do serviço e a companhia que presta têm o contrato firmado, ou seja, ele é válido. O que o agente regulador (Agergs) está tratando é de ajustes sob a ótica da regulação, não mais do que isso. Não se trata de dar validade ao contrato. O contrato é válido.
Outro potencial complicador é o calendário eleitoral. Como privatizações sempre são alvo de embates ideológicos, encaminhar a venda de uma empresa tão tradicional como a Corsan em meio à disputa por votos deve aumentar a pressão sobre esse processo.
– O tema da privatização já despertava paixões, imagina em ano eleitoral, em que o clima político interfere ainda mais – observa Hingel.
Há também um elemento macroeconômico a ser considerado, marcado por crises e incertezas em níveis nacional e global. Nesse sentido, porém, a mudança no modelo de desestatização pode reduzir o tamanho do desafio para encontrar investidores. Até a semana passada, o Piratini pretendia fazer uma venda pulverizada, mantendo-se como um acionista de peso ao segurar 30% das ações.
Após enfrentar questionamentos da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e do Tribunal de Contas do Estado (TCE), o governo estadual optou pela negociação integral da empresa. A possibilidade do comprador assumir a gestão total, sem ter de dividir espaço com governos – sempre sujeitos a mudanças de orientação política –, é vista como um ponto favorável na busca por interessados.
– O desenho de venda integral facilita, porque quem vier a comprar será um investidor estratégico, que poderá introduzir o seu modelo de gestão. Por isso, o Estado pode até incluir um prêmio de controle na avaliação da empresa, ou seja, cobrar até 25%, 30% a mais pelo controle da companhia. Para o investidor, é fundamental não ter ninguém que possa atrapalhar – opina Hingel.
Outra possível vantagem da oferta integral, segundo o economista, seria remover a CVM das análises e simplificar o processo. Como a comissão cuida dos interesses de acionistas minoritários, a venda a um único investidor eliminaria uma das etapas no caminho da desestatização.
O caminho da privatização
Veja algumas das principais etapas que levaram até a situação atual da companhia
2021
17 de março - O governo federal sanciona o novo marco do saneamento. Ele passa a estabelecer metas mais ambiciosas de atendimento à população, prevendo 90% de cobertura de esgoto e 99% de água até 2033.
18 de março - O Piratini anuncia a intenção de vender o controle acionário da Corsan. Essa é uma forma de atrair capital privado e conseguir atender as novas metas de cobertura de serviço. O modelo prevê que o Estado mantenha 30% das ações.
31 de agosto - A Assembleia aprova o projeto de lei que autoriza a privatização da Corsan, abrindo caminho para a oferta de ações no mercado.
16 de dezembro - Termina o prazo para que os prefeitos assinem aditivos aos contratos com a Corsan, com benefícios especiais, para adequar esses contratos às novas metas de cobertura dos serviços de água e esgoto. Pouco mais de 70 cidades das 317 atendidas aderem.
2022
31 de março - Vence o prazo final estabelecido em lei federal para que os contratos vigentes sejam aditados para inclusão das novas metas de universalização.
7 de julho - Tribunal de Contas do Estado determina a suspensão da venda das ações da Corsan pedindo correções na modelagem econômico-financeira do projeto.
13 de julho - Piratini desiste da venda de ações da Corsan e anuncia uma mudança no plano de privatização, que passa a prever a oferta integral da companhia a um investidor privado. O governo pretende concluir esse processo até o final do ano.
Empresa precisa ser privatizada, diz secretário
Independentemente dos modelos ou de eventuais contratempos, o secretário-chefe da Casa Civil, Artur Lemos, sustenta que a privatização da Corsan precisa ocorrer. Lemos afirma que a virada de chave na estratégia de venda tem relação com o ineditismo do formato pensado inicialmente, de abertura de capital em bolsa (IPO).
Nesse contexto, a proposta era de que a Corsan se transformasse em uma companhia de capital aberto (a chamada corporation) e não tivesse um dono detentor da maioria das ações. No processo, poderiam surgir interessados que não necessariamente estão ligados ao setor de saneamento.
– Era um processo complexo que seria pioneiro no país. Não há exemplo de privatização da administração direta fazendo isso. O que é pioneiro não tem comparativo e suscita dúvidas. Com isso, veio o relatório do TCE (Tribunal de Contas do Estado) com dúvidas em alguns pontos sobre o foco do IPO. Se recorrêssemos, dificilmente teríamos um retorno dentro de um prazo que nos permitisse aproveitar a janela do mês de julho – argumenta o secretário.
Lemos diz que foi preciso buscar como alternativa um plano de venda em leilão, em que um grupo privado assume o controle da empresa. O desafio é dispor de R$ 13 bilhões para investir até 2033. Para que seja possível alcançar essa cifra e comprovar capacidade econômica, o secretário argumenta que a Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados (Agergs) e TCE acatam a premissa de que a desestatização deve ocorrer:
– Pública, a empresa não consegue investir o valor necessário. Do ponto de vista da sociedade e dos usuários, ela precisa ser privatizada porque cada mês que passa é menos um mês que terá para agregar ações capazes de contemplar o desafio de levantar R$ 13 bilhões.
A alteração (de IPO para venda em leilão), diz Lemos, é para que se busque uma "via melhor pavimentada" para a desestatização. O secretário entende que a Corsan segue como um "bom ativo", e a mudança em curso se restringe às alterações de perfil dos eventuais compradores. Ele alerta para os riscos de protelar a privatização:
– Chamamos a atenção para o risco de não fazer porque, quando o setor começa a ficar mais regulado, cobra-se mais eficiência da empresa. Se ela não entrega essa eficiência, entra-se na mesma lógica da CEEE distribuidora. Ou seja, o setor fica extremamente regulado, e a empresa entra em espiral de crise. Ela tem que ter um choque de gestão privado para entregar algo que o setor público terá dificuldade de fazer. O risco é perder tempo e gerar uma nova CEEE lá na frente.