O governo do Rio Grande do Sul retomou o pedido de registro de oferta pública de distribuição de ações da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan). O processo, que havia sido suspenso em janeiro deste ano, em razão das circunstâncias do mercado, foi reativado na sexta-feira (27) junto à Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
O trâmite é necessário para obter a autorização para realizar o leilão de abertura de capital (IPO) que sela o processo de privatização da estatal gaúcha.
Em fato relevante, divulgado ao mercado no final de semana, a companhia reforça um expediente de março, em que indica “pretensão de concluir o processo em julho de 2022”. No mesmo texto, diz, entretanto, que a “realização da oferta também está sujeita à análise do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE), no âmbito do Processo de Contas Especiais nº 019728-0200/21-7”.
Por força de legislação, tanto o governo do Estado, neste caso o acionista controlador, quanto a Corsan, informam que não podem se manifestar, durante a análise do processo na CVM. Isso acontece em razão do chamado período de silêncio, em que só são admitidos os comunicados oficiais ao mercado.
Ainda assim, de acordo com alguns analistas de mercado é possível aventar hipóteses que levaram à retomada das movimentações. Uma delas ocorreu 10 dias antes, em 17 de maio, quando a Corsan divulgou o balanço relativo ao primeiro trimestre de 2022.
Na comparação com igual período do ano anterior, a receita líquida evoluiu 11,3%, para R$ 867 milhões. O mesmo aconteceu com as receitas de água, que cresceram 10,6% e as de esgoto, que aumentaram 16,7%. O lucro líquido apurado foi de R$ 186 milhões, alta de 20,3% sobre os R$ 154,6 milhões dos primeiros três meses do ano anterior.
— Certamente, apresentar um bom resultado ajuda, até porque ninguém gosta de fazer uma operação de abertura de capital sobre números que não são positivos — resume Valter Bianchi Filho, sócio-diretor da Fundamenta Investimentos.
Preocupações do mercado
De acordo com Bianchi, outro aspecto em destaque seria uma eventual preocupação com a manutenção das contas do governo. Segundo ele, uma vez que o tema está pacificado na Assembleia Legislativa, não haveria mais razão para adiamentos. A exceção, nesse caso, especula, seria algum temor relacionado com a agenda política, tendo em vista que a pauta das privatizações é um terreno sensível nos embates eleitorais.
— No momento, não parece ser um tema problemático para a população. Há uma tendência de privatização no setor de saneamento, que foi operado pelos governos por muitos anos e os resultados não são satisfatórios. É um caminho sem volta — argumenta.
Para Bianchi, do ponto de vista conjuntural, também não existe “deterioração” dos cenários na bolsa de valores. Na sexta-feira (27), a B3 acumulava alta de 3,77% no mês, e de 6,79% no ano, operando acima dos 110 mil pontos, o que significa que devolve parte das perdas apuradas em 2021.
Dez meses sem IPOs
Por outro lado, quando o foco é a abertura de capitais, percebe-se que depois de 28 IPOs em 2020, no auge da pandemia, e outros 31 no ano passado, a B3 está há 10 meses sem registar lançamentos iniciais de ações. Os dois últimos ocorreram em agosto de 2021 (Raizen e Odontoclínicas).
Em 2022, das 28 ofertas em análise na CVM, apenas três permaneceram, entre elas a da Corsan, postergada em janeiro. Apenas duas foram protocoladas neste ano (Senior Sistemas e Qestra Tecnologia). É o que faz com que o advogado, economista e professor da Unisinos Manoel Gustavo Neubarth Trindade perceba como “um péssimo momento” para retomar o processo de abertura. Segundo ele, com os juros nacionais e dos Estados Unidos em elevação, há uma corrida de investidores para a renda fixa, o que torna a bolsa menos atrativa.
Mais do que aspectos de mercado, Trindade, que é procurador do Sindicato dos Engenheiros do Estado (Senge-RS) em um pedido de impugnação do IPO da Corsan, protocolado na CVM antes do adiamento do pedido de registro de oferta pública da estatal, alerta para os riscos denominados por ele como “não materializados e quantificados no processo”. O advogado explica que, atualmente, o contexto que envolve a tentativa de desestatização da Corsan é objeto de análise em diversos órgãos.
Nesse caso, a oferta, submetida à análise da CVM, que avalia também o cumprimento dos requisitos normativos para que Corsan torne-se emissora de valores mobiliários da categoria “A” (capaz de negociar em bolsa quaisquer ativos, inclusive suas ações), está sujeita à impugnação ao registro da oferta, apresentada pelo Senge-RS à CVM.
Judicialização
Em paralelo, o TCE, após manifestação do Ministério Público de Contas gaúcho, avalia aspectos relativos à “vantajosidade da operação perante o erário público”, em processo que continua em tramitação e é citado no próprio fato relevante ao mercado como um dos fatores condicionantes para o prosseguimento da operação pretendida para julho.
— Na seara judicial, existem diversas ações contestando a lisura do processo de desestatização. Seja em relação à constitucionalidade da lei estadual que autorizou a venda de ações, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), seja em relação a atos precedentes à desestatização, como renovações de contratos com a Corsan realizadas sem a chancela dos legislativos municipais (questão suscitada em ações judiciais esparsas envolvendo diversos municípios gaúchos) — lembra o advogado.
Há poucas semanas, acrescenta Trindade, esse mesmo modelo de renovações por aditivos contratuais empregado para viabilizar a desestatização foi levado ao conhecimento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), por meio de denúncia/representação, também apresentada pelo Senge-RS, que se fundamenta na verificação de eventuais violações à livre concorrência e à livre iniciativa nas práticas adotadas pela Corsan.
A privatização da Corsan ponto a ponto
- A privatização da Corsan é tratada pelo governo gaúcho como essencial para atender às exigências do marco legal do saneamento básico.
- Sancionada em 2020, a lei determina que, até 2033, seja garantido 99% do tratamento de água e 90% do tratamento de esgoto no país.
- De acordo com dados da Corsan, o fornecimento de água potável chega a 97% nas áreas urbanas e as redes de esgoto abrangem 17% das áreas conectadas a uma rede.
- O Governo estima investimento de R$ 10 bilhões para cumprir as metas do marco legal e, por essa razão, alega incapacidade da empresa em cumprir as metas da lei.
- A privatização foi aprovada na Assembleia Legislava em agosto, com 33 votos favoráveis e 19 contrários.
- Em dezembro, os deputados gaúchos aprovaram, por 35 votos a 16, os projetos de regionalização que criaram as Unidades Regionais de Saneamento Básico.
- O objetivo era proporcionar a viabilidade técnica e econômico-financeira aos blocos e garantir a universalização dos serviços de água potável e esgoto conforme o marco legal.
- Como apesar do processo de privatização e do IPO da Corsan, os municípios precisarão adequar seus contratos com as concessionárias de água e esgoto para atingir as metas do marco do saneamento, a Corsan buscou aditar os contratos vigentes, tendo obtido, conforme a Companhia, 108 aditamentos.
- Alguns desses aditivos contratuais são discutidos em ações judiciais; sendo que, ainda, nenhum fora homologado pela Agência Estadual dos Serviços Públicos Delegados (Agergs).
- O pedido de registro de oferta pública foi protocolado na CVM em dezembro, com a ideia de que a oferta inicial de ações (IPO) fosse realizado em fevereiro.
- Esse processo foi adiado em janeiro com o posterior pedido de interrupção pela própria Corsan.
- Na sexta-feira (27), a companhia retomou o pedido de registro de oferta pública de distribuição de ações, com pretensão de concluir o processo até o mês de julho.
- Agora, aguarda o aval da CVM e, segundo o fato relevante, a análise do TCE, no âmbito do Processo de Contas Especiais para dar prosseguimento à privatização.