A estiagem que afetou a Serra nos últimos três anos e a previsão de que o próximo verão também possa ter restrição de chuvas coloca em alerta agricultores da região. A preocupação levou especialistas a recomendarem na edição mais recente, lançada em abril, do Boletim Agrometeorológico da Serra Gaúcha que os produtores de uva avaliem a necessidade de investimentos em irrigação.
Na região, a normal climática é de 1.736 milímetros de chuva por ano. Desde 2019, esse número não é alcançado. Em 2021, choveram 1.345 milímetros, o que corresponde a 77% do número calculado com base no histórico regional. O pesquisador da Embrapa Henrique Pessoa dos Santos, um dos que assina o Boletim Agrometeorológico da Serra Gaúcha, destaca que a escassez de água tem ocorrido principalmente nos meses de outubro a janeiro. Nesse período, entre 2021 e 2022, choveu 812 milímetros na região. Para se ter uma ideia, em 2019/2020, quando já houve estiagem, foram 871 milímetros. Em 2020/2021, foram 838 milímetros. Ou seja, a quantidade vem diminuindo período a período.
É um problema novo para agricultura da Serra, que costumava sofrer mais com o excesso de chuvas, causador de doenças nas plantas. Por um lado, portanto, o clima seco favorece a produção, com a redução de risco dessas doenças. Mais horas de sol durante a colheita durante a safra da uva, por exemplo, é importante porque ajuda na graduação da fruta, o que melhora o valor de mercado.
— Esse efeito de estiagem é extremamente benéfico para a qualidade enológica. O problema é que, quando a gente olha o solo que temos na Serra Gaúcha, ou seja, essa combinação da condição de estiagem com a variabilidade de profundidade de solo, temos problemas expressivos em algumas áreas, que têm afloramento de rochas, solo muito raso. Então, em locais que têm mais profundidade de solo, o ano foi excelente, teve qualidade enológica, diria que teve potencial para excelentes vinhos. Só que em alguns locais, não é a maioria, dá para se estimar em torno de 15 a 20% da superfície de vinhedos aqui da região, temos problemas de solo muito raso — detalha Santos, doutor em Fisiologia da Produção.
Ele salienta que, embora a videira seja resistente, a estiagem faz com que, para sobreviver, a planta reaja com o amarelamento e queda das folhas, o comprometimento da maturação dos ramos e, consequentemente, a parada da maturação da uva. O pesquisador sugere que os agricultores identifiquem e marquem as áreas em que a estiagem afeta mais significativamente a produção para avaliar se vale a pena ou não o investimento em irrigação diante do tamanho do local prejudicado.
Estou trazendo a ideia de considerar a irrigação, não estou dizendo que tem de fazer, mas que o produtor comece a olhar e, talvez, articular com vizinhos um consórcio
HENRIQUE PESSOA DOS SANTOS
Pesquisador da Embrapa
Pensar o investimento
Mesmo com a definição do investimento, a característica de pequenas propriedades da Serra Gaúcha pode torná-lo inviável. Isso porque há propriedades com espaço insuficiente para reservatórios de água, até porque a legislação não permite a construção de reservatórios em Áreas de Preservação Permanente (APP).
— Às vezes, são pequenas propriedades e, às vezes, uma parte da área que poderia ser destinada para um reservatório de água, não dá para ele (agricultor) construir. Ele não tem espaço dentro da propriedade para fazer isso. Eu estou trazendo a ideia de considerar a irrigação, não estou dizendo que tem de fazer, mas que o produtor comece a olhar e, talvez, articular com vizinhos um consórcio. Por exemplo, talvez tenha alguma propriedade vizinha em que possa ser feito um reservatório e essa água ser compartilhada — assinala Pessoa.
Aumento de interesse dos produtores
De 1º de julho de 2021 a 30 de abril de 2022, a Emater Regional de Caxias do Sul, que abrange 49 municípios, teve 887 registros de assistência técnica prestada a produtores no uso da irrigação. A engenheira florestal Adelaide Juvena Kegler Ramos, assessora técnica na área de manejo de recursos naturais na regional, aponta que o número demonstra o aumento do interesse dos produtores rurais pela tecnologia.
— A irrigação é importante não só em tempos de estiagem, mas também dentro do contexto de se conseguir a máxima produtividade das culturas, onde se insere também a produção das videiras. Quando a gente fala isso, a gente fala em uma irrigação complementar para ter o máximo de produtividade. Agora, pensando em termos de estiagem, que é caracterizada pela falta de disponibilidade hídrica em determinados períodos, a irrigação torna-se ainda mais importante como uma forma de garantir essa produtividade e garantir também a própria colheita da lavoura.
A irrigação é importante não só em tempos de estiagem, mas também dentro do contexto de se conseguir a máxima produtividade das culturas
ADELAIDE JUVENA KEGLER RAMOS
Assessora técnica da Emater
Adelaide destaca ainda que esta é uma época ideal para o produtor rural pensar em como garantir a segurança hídrica durante o período de estiagem:
— Chove mais entre maio e outubro. Exatamente, são os meses que temos menor demanda por água. Naqueles meses que vão de novembro a abril, é quando a gente mais precisa de água. Então, se a gente não pensar em reservar antes, não vamos ter água quando realmente precisar. Para armazenar, temos diferentes formas que vão desde a proteção das nascentes, das matas ciliares, para cumprir a sua função de serem fontes de água. E também temos as outras formas de captação e armazenamento, que podem ser microaçudes, cisternas revestidas ou não, temos também os próprios rios. Uma coisa que é muito importante é que, além dessas estruturas de armazenamento, que é de onde captamos água para usar na irrigação, precisamos trabalhar também a questão do manejo e conservação do solo.
Manejo do solo e preservação da água são importantes
Mesmo com reservatórios e sistemas de irrigação, agricultores da Serra sofreram com a falta de água durante a estiagem deste ano. Devido à falta de chuvas, o reabastecimento ficou comprometido. Diante desse cenário, outras técnicas ganham relevância. É o caso do manejo do solo:
— Temos que criar uma consciência de economia de água. Então, todas as estratégias de manejo de solo são pensadas nesse aspecto, porque não adianta conseguir acumular água, não adianta ter dinheiro para investir em um equipamento de irrigação se estou desperdiçando água por um manejo inadequado que venho fazendo do meu cultivo. Então, todo o trabalho é nesse sentido de que um dos aspectos fundamentais para a gente ter uma boa eficiência de resposta de irrigação é termos algumas práticas de manejo que visam a primeiro diminuir a perda da água pela evaporação, pelo calor, pela incidência solar, e segundo, eu conseguir ter uma melhor infiltração da água no solo — quanto mais infiltrada ela é, menos superficial é, e quanto menos superficial, menor perda eu tenho — comenta Leandro Venturin, tecnólogo em Viticultura e Enologia.
Temos que criar uma consciência de economia de água. Então, todas as estratégias de manejo de solo são pensadas nesse aspecto
LEANDRO VENTURIN
Tecnólogo em Viticultura e Enologia
— Entre as alternativas, ele sugere o uso de adubação verde com a plantação de espécies de plantas em meio aos pomares ou parreiras. Entre as opções, estão aveia, centeio e ervilhaca. Venturin explica que a ideia é ter palha no verão, o que ajuda a reter água e formar uma camada de proteção no solo. Essa camada evita incidência do sol e o ressecamento da terra. Outro aspecto, explica o tecnólogo, é que essa matéria orgânica ajuda a reter a água em excesso do inverno para o verão.
Além disso, os especialistas pontuam a necessidade de fazer a recuperação dos chamados "produtores de água", como fontes de superfície, de áreas de reposição dos lençóis freáticos e de banhados. É um trabalho de longo prazo, que ajuda a garantir a disponibilidade de água para o futuro. Isso porque, por exemplo, um poço artesiano muito usado pode secar caso tenha o lençol freático prejudicado por causa da seca.
Irrigação garantiu boa safra para família Biondo
Com áreas de parreirais de uvas de mesa irrigadas desde 2003, a família Biondo decidiu há cinco anos expandir o sistema para os 3,5 hectares de videiras que produzem a variedade bordô. O investimento na propriedade localizada em São Gotardo de Vila Seca, no interior de Caxias do Sul, foi o que garantiu que a safra 2021/2022 fosse excelente para os produtores rurais, que colheram 91 mil quilos de uva comum e 16 mil quilos da Niágara, de mesa.
— Começamos em 2003 por causa da uva de mesa, que tem cobertura, e, daí, precisava. Na bordô, colocamos por causa de uma seca que houve e tivemos perdas — explica Mario Biondo, 58 anos.
Com isso, a propriedade ficou pronta para enfrentar a pior estiagem recente do Estado, ocorrida entre o fim do ano passado e o início deste. Filho de Mario, Tiago Biondo, 34, explica que uma parte da área plantada tem pouca profundidade de solo, uma característica apontada por especialistas como uma indicação para a instalação de sistemas de irrigação.
— É pura pedra. Terra é só uma parte. Quando fazia seca, as folhas já ficavam dobradas — relata.
O sistema instalado pela família Biondo é o de gotejamento, um método que ajuda a economizar água. Ainda assim, no início do ano, a falta prolongada de chuva fez com que o açude, reservatório usado para a irrigação, ficasse com níveis baixos.
— A safra foi boa demais, mas, no fim, tivemos que economizar água — conta Mario.
A explicação é que o sol é importante para a uva na época da colheita, porque ajuda a garantir a doçura. Porém, sem água, a fruta fica murcha e a planta sofre estresse. Como a família tinha água para irrigar, esse problema acabou descartado. Disso, decorreram os bons resultados.
Pai e filho destacam ainda que, como método, não deixam passar mais de 15 dias sem chuva para iniciar a irrigação. O objetivo é não deixar o solo secar excessivamente, o que já causa prejuízo às plantas.
Fertirrigação foi opção da família Bonatto Cantele
Na propriedade da família Bonatto Cantele, no interior de Caxias do Sul, o sistema de gotejamento instalado em 4,3 hectares plantados de ameixeiras e pessegueiros inclui a possibilidade de levar água e adubo às frutíferas. O método é chamado de fertirrigação e foi alvo de estudos de Artur Bonatto Cantele, 18 anos, em um projeto na Escola Família Agrícola da Serra Gaúcha (Efaserra). O jovem faz o Ensino Médio e Técnico conjuntamente. Com esse conhecimento, ajuda a tocar a propriedade da família localizada em São José da 6ª Légua.
Artur conta que a irrigação demonstra a eficácia, principalmente durante períodos de falta de água. As ameixeiras, por exemplo, podem chegar a produzir até 20% a mais com o sistema. A fertirrigação, destaca ele, também garante a eficiência na oferta do adubo às plantas. Isso porque, por exemplo, a "entrega" é próxima às raízes, o que ajuda no aproveitamento, e o tratamento não fica sobre o solo, evitando a volatilização dos produtos.
— A irrigação ajuda em dois fatores: aumento da produtividade e da qualidade. Se a planta não para de produzir, ela dá fruto mais graúdo, o que tem mais valor de mercado —argumenta.
Com a estiagem mais recente, o investimento acabou se mostrando altamente rentável economicamente, inclusive. Segundo Artur, ao evitar perdas à propriedade, garantiu-se o pagamento do investimento já no primeiro ano.
O sistema utilizado é de gotejamento. Consome-se, nesta propriedade, 30 mil litros de água por hora. De outubro a novembro dos últimos dois anos, a família usou o método diariamente por quatro horas.
— É um sistema interessante. Tem um bom custo-benefício. É econômico em relação aos demais na questão da água. Não molha a planta, evitando fungos e bactérias, não lava os tratamentos, é fácil de operar — resume o agricultor.
Ele conta que a família até pensa em expandir o uso da irrigação, mas que esbarra na falta de reservatórios. De qualquer maneira, o que está feito até agora tem garantido que a produção de ameixas se mantenha entre 120 e 150 toneladas por safra e a de pêssego, entre 50 a 60 toneladas.
Propriedade da família Marchioro usa manejo do solo
Em cinco hectares de área utilizável na Linha Palmeiro, em Pinto Bandeira, Helio Marchioro, 65 anos, planta parreiras no sistema orgânico. Para garantir a retenção de água no solo, a decisão foi utilizar cobertura verde, que consiste na plantação de outras culturas em meio às videiras. As variedades escolhidas são as chamadas plantas pivotantes, que têm raízes mais profundas e, com isso, conseguem absorver água das camadas mais profundas do solo. Segundo Marchioro, essa medida ajuda a deixar a terra um pouco mais porosa.
— Nós não temos absorção da água. Quando não tem verde no solo, a água cruza o solo. É comum que em uma estrada, por exemplo: choveu amanhã, se for terra, amanhã tem pó. Ali, não para a água, ela desliza. Na lavoura, é a mesma coisa. Se não tem cobertura verde, não tem nada que retenha água no solo. Essa água vai cruzar pelo solo. Então, tendo uso de máquinas agrícolas e as raízes não sendo profundas, a tendência é de que esse solo necessite de água em pouco tempo. Então, o nosso consumo de água é muito grande — detalha.
Outro aspecto de cuidado com o solo na propriedade é o não uso de agroquímicos. A produção orgânica exige a medida, mas, além disso, Marchioro pontua que se trata de um cuidado com o solo, que tem o processo regenerativo prejudicado na utilização desse tipo de tratamento. O agricultor planeja ainda fazer uma cisterna para captação de água. Hoje, ele tem poço artesiano e tanque.
— É reter a água em solo com a cobertura verde, mas também reter a água que chove para você poder usar essa água e não depender do rio, de outras nascentes. Tu diminui, inclusive, o teu custo — assinala.
Marchioro manifesta ainda preocupação com o uso da água disponível. Menciona, por exemplo, o assoreamento de rios e o comprometimento do curso da água em alguns deles. Destaca a necessidade de recuperar nascentes e de reduzir a contaminação dos rios.
A irrigação no Brasil
- 8,2 milhões é o número de hectares equipados para a irrigação no Brasil. É o equivalente a 8,2 milhões de campos de futebol.
- 5,3 milhões de hectares usam água de mananciais, o equivalente a 64,5% da área.
- 2,9 milhões de hectares são fertirrigados com água de reúso, o equivalente a 35,5% da área.
- 216 mil hectares é quanto cresceu a irrigação no Brasil entre 2012 e 2019.
- 4,2 milhões de hectares é a quantidade que o Brasil deve ter de expansão da área irrigada até 2040.
- 96,2% da área irrigada está atrelada ao setor privado. Os outros 3,8% são para projetos públicos.
- R$ 55 bilhões é a marca superada pelo valor da produção irrigada em 2019 no país.
Fonte: Atlas Irrigação 2021, produzido pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico
Formas e custos para irrigar
Agrupados de acordo com a forma de aplicação de água, os métodos de irrigação têm quatro tipos principais, com custos que podem variar:
- Irrigação por superfície: a água é colocada na superfície do solo e o nível é controlado para aproveitamento das plantas. Exemplo: o sistema de inundação.
- Subterrânea (ou subsuperficial): a água é aplicada abaixo da superfície do solo, formando ou controlando o lençol freático, na região em que pode ser aproveitada pelas raízes das plantas. Exemplo: sistema de gotejamento.
- Aspersão: a água é aplicada sob pressão acima do solo, por meio de aspersores ou orifícios, na forma de uma chuva artificial. Exemplo: sistema de pivô central.
- Localizada (ou microirrigação): consiste na aplicação em uma área bastante limitada, utilizando pequenos volumes de água, sob pressão, com alta frequência. Exemplo: sistema de gotejamento.
- Investimento: O custo para instalar um equipamento de irrigação é variável, conforme a forma definida. As condições de acesso à água, como distância entre o reservatório e a plantação, também são aspectos que podem implicar em maior ou menor necessidade de investimento.
Fonte: Atlas Irrigação 2021, produzido pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico , Henrique Pessoa dos Santos e Adelaide Juvena Kegler Ramos