Envolta em polêmica, a medida provisória (MP) que abre caminho à privatização da Eletrobras se tornou uma corrida contra o tempo para o governo. Prevista para ser votada nessa quinta-feira (10), no Senado, a matéria só deve ir ao plenário na semana que vem, aumentando os riscos de perder a validade.
A urgência existe porque o texto a ser apreciado pelo senadores será diferente do que passou pela Câmara em maio. Com isso, as eventuais mudanças aprovadas deverão ser submetidas ao crivo dos deputados novamente. Como a MP perde os efeitos legais em 22 de junho, é preciso chancela das duas casas e sanção presidencial em no máximo 12 dias, prazo considerado exíguo diante de um tema tão complexo.
O relatório final do Senado só será conhecido nesta quinta-feira, mas o relator, senador Marcos Rogério (DEM-RO), já antecipou que fará alterações na redação aprovada na Câmara. A principal controvérsia reside na obrigação imposta à Eletrobras de compra de energia de usinas termelétricas e de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). Segundo entidades do setor, a medida pode provocar aumento no preço da tarifa. Rogério não antecipou as mudanças, mas diz estar ouvindo representantes do mercado, o governo e os demais senadores.
— Vamos apresentar um relatório que vai procurar reunir as convergências, Onde houver divergência, onde for impossível de obter entendimento, vamos submeter a voto. Não descarto a possibilidade de acolher emenda. É prerrogativa dos senadores sugerir melhorias, faz parte do processo. Mas o nosso esforço é trabalhar com o texto que veio da Câmara, e que há um entendimento com o governo, sem grandes alterações — afirmou o senador na noite de terça.
Editada em fevereiro, a MP 1031/2021 prevê oferta de novas ações da estatal, numa operação comercial que deve render cerca de R$ 25 bilhões aos cofres federais. O ponto central do texto é a autorização para o governo diluir o atual controle acionário, pelo qual detém de 58,71% da empresa - 42,57% do capital nas mãos da União e outros 16,14% em posse do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômicos e Social (BNDES).
A intenção do Ministério da Economia é reduzir essa cota para 45%. Os demais grupos acionistas, contudo, não poderão deter mais do que 10% das ações. À União, ficarão reservados papeis preferenciais, a chamada golden share, que confere poder de veto em assuntos estratégicos, a exemplo do que ocorre em outras estatais privatizadas, como a Vale do Rio Doce e a Embraer.
A polêmica se instalou após o relator da MP na Câmara, deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), incluir no texto a obrigação de compra de 6 gigawatts (GW) de usinas térmicas a gás nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e de 2GW de PCHs. Além disso, os leilões deverão contratar 40% de PCHs até 2026, por 20 anos.
A matéria foi aprovada com 331 votos a favor e 166 contrários, mas o resultado contrariou diversos segmentos do setor, grande parte favorável à privatização da Eletrobras. A maior queixa reside nas obrigações contratuais de compra de energia. Essas medidas, calculam associações do setor elétrico, ampliam em R$ 40 bilhões o custo da energia. Um manifesto divulgado pelas entidades afirma que a consequência imediata seria um aumento médio de 10% na tarifa dos consumidores residenciais e de até 20% na conta de luz de empresas.
— É como se o Congresso decidisse que, no carrinho de compra de cada brasileiro, 40% da proteína fosse de carne. Da mesma forma, o Congresso não pode determinar que 40% da expansão do setor elétrico tenha que ser feita de pequenas centrais hidrelétricas. Nós, da indústria, vamos trabalhar junto ao governo e ao Congresso pela preservação do texto original, ou então, se não der, pela rejeição do projeto — afirma o presidente da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), cujos sócios respondem por quase 40% do consumo industrial de energia elétrica no país.
O governo nega que a MP gere aumento de custos. Segundo o secretário especial de Desestatização, Diogo MacCord, ao substituir termelétricas a óleo diesel por movidas a gás, o preço da energia deve cair.
— O número que tem sido divulgado (R$ 40 bilhões) é incorreto. Estamos substituindo um custo de R$ 1 mil o kw/h por um custo de no máximo R$ 350, que pode cair porque isso vai ser contratado em leilões competitivos. Então já existem cálculos que apontam redução de tarifa — rebateu MacCord.
Esses cálculos, porém, ainda não foram divulgados pelo governo. No Instituto Acende Brasil, centro de estudos voltado à discussão da melhoria do setor enérgico, a expectativa é que a redação da MP seja alterada no Senado, com a retirada das reservas de mercado para as usinas térmicas e hidrelétricas.
— Energia é a necessidade mais básica da sociedade, movimenta toda a economia. Portanto a eficiência do setor elétrico tem de ser perseguida ao limite, com energia segura ao preço mais barato possível. O que estamos vendo é o Congresso assumindo o papel de planejamento da expansão do setor energético, criando uma reserva de mercado inaceitável — afirma o presidente do ACENDE Brasil, Cláudio Salles.
Além do incômodo com o texto da Câmara, entre os senadores há receio de que o agravamento da crise hídrica no país, com igual reflexo na conta de luz, seja interpretado pelos eleitores como consequência da aprovação da MP. O governo trabalha para evitar que esse ambiente se espalhe pelo plenário do Senado, contaminando o debate e impedindo a votação antes do prazo legal.
— Eu sou a favor da MP, mas com o texto original do governo. Do jeito que está, eu voto contra. O texto que veio da Câmara tem muita coisa que não tem nada a ver com privatização — reclama o senador Lasier Martins (Podemos-RS).
Esta é a terceira vez que o Planalto tenta desestatizar a Eletrobras. Houve uma primeira tentativa ainda na gestão do presidente Michel Temer, em 2018, e novamente no ano seguinte, já no governo Bolsonaro. Criada em 1962, a maior empresa de energia da América Latina controla grande parte do sistema de geração e transmissão do país, sendo responsável por um terço da capacidade de abastecimento instalada em território nacional.
No portfólio da estatal, estão 48 usinas hidrelétricas, 12 termelétricas a gás natural, óleo e carvão, duas termonucleares, 62 usinas eólicas e uma usina solar, com 96% da energia gerada a partir de fontes limpas.
Essas unidades pertencem a subsidiárias gigantes, como a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, Furnas, Eletronuclear e Itaipu Binacional. Por serem consideradas estratégicas inclusive para a soberania energética nacional, as duas últimas foram excluídas do processo de privatização e deverão ser geridas por outra empresa pública ou sociedade de economia mista a ser criada pelo governo.
Em 2020, a Eletrobras registrou lucro líquido de R$ 6,4 bilhões e distribuiu R$ 2,54 bilhões em dividendos aos acionistas, referentes aos resultados de 2019. O atual plano de investimentos prevê aportes de R$ 19 bilhões até 2022.