Em um contêiner de ferro, Leandro dos Santos Prudêncio, de 35 anos, organiza sacos de cimento, galões de tinta, pregos e espátulas — materiais utilizados na construção do mais novo hospital de Porto Alegre, destinado a pacientes com covid-19. Para Prudêncio, a obra entregou o que, há dois anos, o catarinense não via em sua carteira de trabalho: um registro formal de emprego.
O profissional da construção civil — que por uma década trabalhou na área de informática, na qual tem formação técnica — faz parte de um grupo restrito que voltou ao mercado através de oportunidades surgidas em meio à crise do coronavírus.
— Quando avisaram que eu ia ser contratado fiquei muito feliz. Imagina, tive uma oportunidade em meio à crise dessa essa doença. Mudou a minha expectativa de vida — relembra.
Sua história, no entanto, vai na contramão dos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), divulgados na última quarta-feira (27) pelo Ministério da Economia. Quarto pior resultado do país, atrás de Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, o RS perdeu 74.686 vagas de emprego com carteira assinada em abril, saldo entre demissões e contratações no mês.
Por um mês, o morador de Jaguaruna trocou Santa Catarina pela capital gaúcha, distante 300 quilômetros. Contratado pela Brasil ao Cubo, foi designado para a força-tarefa que ergueu, em 30 dias, o hospital destinado a pacientes com sintomas da covid-19. Com investimento de R$ 10,4 milhões, a estrutura foi viabilizada por uma parceria entre Gerdau, Ipiranga, Zaffari e Hospital Moinhos de Vento. O caráter do prédio construído a partir de suas mãos redobra o sentimento de felicidade:
— O meu trabalho vai ajudar a salvar vidas — avalia.
No Estado vizinho, a esposa de Prudêncio perdeu o emprego. Com ajuda de parentes — e agora, com o primeiro salário do marido —, ela mantém a casa e os filhos. Já a saudade entre a família é amenizada pela tecnologia.
— Eu faço ligação de vídeo todos os dias pra eles. A gente sente falta, mas a esperança de melhorar de vida, com um emprego, ajuda a superar essa saudade. Estar trabalhando me completa — conta.
Como o contrato firmado não tem data de encerramento, a Brasil ao Cubo seguirá com Pruduêncio em seu quadro funcional. Entre Porto Alegre e São Paulo — seu próximo destino —, uma parada obrigatória é programada: ver a família, mesmo sem poder abraçá-los como deseja.
De vendedor a pizzaiolo
Mudança de ares também foi o que ocorreu com Newton de Oliveira Pereira, 34 anos. Experiente vendedor, o morador do bairro Jardim Itu-Sabará estava prestes a ser contratado por uma loja em um shopping da Zona Norte. Um dia após ser aprovado na entrevista de emprego, porém, os centros comerciais tiveram o fechamento decretado na Capital. E, com isso, o acordo entre Pereira e a empresa foi desfeito.
Somente com a renda da esposa — administradora, que segue em home office — e as contas acumuladas, ele aceitou o convite do amigo de infância e colega de escola, Rafael Lima dos Reis, 34 anos: auxiliar na fabricação de pizzas congeladas, demanda que aumentou com o distanciamento social e atualmente, é o principal negócio da pizzaria.
— A gente vivia basicamente de eventos, assando a pizza no local da festa. Da noite pro dia fiquei sem nenhum cliente. Mas não adianta chorar. Investi em divulgação (das pizzas congeladas) e para dar conta dos pedidos eu chamei o Newton, que é de confiança — explica o empresário.
O suntuoso shopping center foi trocado por um pequeno espaço de não mais que 15 metros quadrados, na periferia. Cercado de temperos, o ex-vendedor sova a massa sobre uma mesa de inox e não economiza no queijo. Antes de ser embalada e levada ao freezer, a base é assada, o que facilita o processo para o cliente final, que tem apenas de aquecer a refeição.
A nova atividade sequer era cogitada por Newton:
— Imaginei que iria continuar no comércio. Sempre gostei de cozinhar, eu e minha esposa nos dividimos no fogão, mas não pensei que seria meu emprego.
Mas, hoje, mesmo com a reabertura gradual do comércio, o mais novo pizzaiolo não pretende voltar ao ramo.
— Eu moro aqui perto, trabalho com o meu melhor amigo e esto feliz — resume, enquanto retira do fogo a massa cozida.
Os shoppings da Capital tiveram liberação para voltar a operar em 20 de maio, desde que obedeçam normas de segurança, como uso de máscara, distanciamento entre clientes e capacidade reduzida.
Demissões no shopping center
Carlos Augusto dos Santos levou duas horas de ônibus até o Sine da Avenida Sepúlveda, no Centro Histórico de Porto Alegre. Na mochila, os documentos para dar entrada no auxílio do INSS — a terceira tentativa no mês. Há mais de uma década, o morador da área rural de Viamão não precisava dos serviços de apoio às pessoas desempregadas: foram 13 anos ininterruptos atuando no estacionamento do Shopping Total, no bairro Floresta.
Com 230 mil demissões, o comércio foi o segundo setor que mais fechou postos de trabalho no Brasil em abril. No RS, a redução foi a terceira maior, atrás da indústria e do setor de serviços. Ao todo, 19,7 mil trabalhadores perderam o emprego no comércio gaúcho, de acordo com o Caged.
— Vou ter que procurar alguma coisa em Viamão mesmo. Uma pena, eu gostava de trabalhar lá (no Shopping Total).
Sem carro, Carlos Augusto gastava, diariamente, R$ 24 em quatro viagens de ônibus.
A casa de alvenaria é "popular", como ele define, em uma região onde até as torres de telefonia celular são escassas. Solteiro, sem filhos, a maior preocupação na busca por um novo emprego é a idade: aos 48 anos, teme enfrentar dificuldades com a concorrência dos mais jovens. A fé, todavia, não desanima o homem que tem, no toque de espera do seu telefone celular, a música Felicidade, de Seu Jorge.
— Tenho fé que vou conseguir — promete a si mesmo.
Procurado na segunda-feira (1º), o Shopping Total não se manifestou até o fechamento desta edição.
Mais de 23 mil demissões no setor aéreo
Enquanto o mundo fechava as fronteiras, as companhias aéreas viram o número de passageiros cair vertiginosamente. A procura por voos domésticos reduziu 93% em abril se comparado ao mesmo período de 2019 — o pior resultado mensal da série histórica da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), iniciada em 2000. Os números são da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) e incluem dados das principais operadoras nacionais. Perdendo apenas para a indústria, o setor de serviços encerrou mais de 23 mil empregos em abril no RS.
Com demanda em baixa, parte das terceirizadas que prestam serviço no aeroporto Salgado Filho reduziu o quadro — situação que atingiu diretamente Fábio Goulart Santos, 38 anos. Contratado em 2017, o morador do bairro Sarandi, em Porto Alegre, foi um dos demitidos, em cortes que chegam a 60% nas seis empresas que operam no terminal gaúcho, de acordo com a Associação Brasileira das Empresas de Serviços Auxiliares do Transporte Aéreo (Abesata).
— Meu gerente foi sincero, disse que o movimento caiu muito e que espera, quando voltarem os voos, me contratar novamente. Eu quero muito — explica.
Fábio começou como auxiliar, no transporte de bagagens do check-in até o porão dos aviões, além de operar as escadas de acesso de passageiros às aeronaves. Quando dispensado, havia alcançado o status de líder, responsável pela lista de itens que precisam ser carregados em cada viagem. Eletrodomésticos, eletrônicos e móveis são transportados via aérea, segundo ele. Somado aos cinco anos em que trabalhou em outra empresa do aeroporto, o hoje desempregado profissional acredita que sua especialização será levada em conta após a retomada do setor.
— As empresas não precisam gastar com treinamento, só uma reciclagem, e isso vai me ajudar — afirma, confiante.
No apartamento térreo, vivem ele, a esposa e a filha de nove anos. A mulher é operadora de caixa em um mercado do bairro. Aliado a previsão de pagamento de cinco parcelas do seguro desemprego, Fábio se demonstra otimista em dar conta das despesas de casa.
— Me faz falta os vales alimentação e refeição. Um era R$ 400 e outro R$ 640. Mas a gente está bem — diz, com a cachorrinha pinscher Ariel no colo, ao lado de uma manta do Inter.
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No valor de R$ 1.700, o seguro desemprego é 20% menor do que ele recebia mensalmente no trabalho de transporte das bagagens — fora os incrementos já citados, que ampliavam os vencimentos em mais de R$ 1 mil.
Diretor-presidente da Abesata, Ricardo Aparecido Miguel alerta que a categoria presta um serviço especializado, essencialmente de mão de obra, com a mais baixa base salarial do transporte aéreo.
— São pessoas que não tem um pé-de-meia para se segurar. De outro lado, as empresas estão fazendo esforço para manter o trabalhador especializado — analisa o ex-piloto.
Antes das restrições a pousos e decolagens partiam, em média, 2.700 voos todos os dias no país, segundo a Abear. O presidente da associação, Eduardo Sanovicz, é otimista e acredita que o setor aéreo possa dobrar o número de voos nos próximos 30 dias.
— Em abril passamos a operar a malha essencial, com 180 voos diários, o que corresponde a 8,5% da malha regular. Ao fim do mês de junho, queremos chegar a 350 por dia, alcançando 15% — calcula.
Para o resto do ano, Sanovicz crê em “um crescimento lento, mas consistente”, dependendo diretamente de uma estabilidade nas moedas internacionais.
— Não é possível prever em que tamanho chegaremos ao fim do ano. Como o setor de viagens de negócios vai se comportar? O turismo de lazer? E o câmbio, que impacta 51% dos nossos custos, como estará, ainda não sabemos. Somente com essas variáveis encaixadas é que poderemos definir — detalha.
Enquanto busca uma nova oportunidade, o homem que deixou pra trás a bagagem dos viajantes busca qualificação, e pretendo fazer um curso de vigilante.
— Preciso pensar o que fazer agora — reflete, ao mensurar outros voos na carreira.