Foi pensando nas dificuldades de quem vive sob as marquises da zona norte de Porto Alegre, em meio à pandemia do novo coronavírus, que a auxiliar administrativa Ana Garcia, 34 anos, decidiu agir. Sócia de uma oficina de motos localizada na Avenida do Forte, a moradora do bairro Costa e Silva mobilizou a clientela da mecânica e outros pequenos estabelecimentos das proximidades com o objetivo de ajudar a combater a fome de quem tem na rua o seu lar.
Desde o início de abril, todos os sábados, o grupo distribui 170 marmitas aos moradores de rua da região. O cardápio é montado a partir de doações arrecadadas entre os frequentadores da oficina. Já o preparo dos alimentos tem a supervisão e o tempero do cozinheiro voluntário Bryan Goulart, 32 anos, e é feito na cozinha de um restaurante vizinho — que, fechado em razão da pandemia, cedeu o espaço para o projeto.
Com as porções servidas, a missão de entregar as refeições fica a cargo dos motociclistas — clientes da mecânica —, que pilotam os veículos rumo ao delivery solidário.
— A situação dos moradores de rua piorou muito com a pandemia, principalmente porque diminuiu a circulação nas ruas e, com isso, a ajuda. A questão da fome aumentou. Eles têm fome mesmo, fome de verdade. No Centro, existem muitos grupos que fazem essas distribuições, mas aqui na Zona Norte não tem — afirma Ana, explicando que, como a maioria dos envolvidos na ação trabalha como motoboy e já conhece bem as ruas da região, o grupo direciona as entregas aos pontos específicos que abrigam pessoas em situação de rua.
"Lugar de honra"
Nos cerca de dois meses de atuação, a iniciativa, que começou de forma despretensiosa, tem servido também para estreitar vínculos entre os participantes e a vizinhança das ruas — indo além da simples distribuição do alimento e formando amizades. A intenção do grupo é, mesmo após a pandemia, permanecer com as ações do projeto, agora batizado de Podium Solidário — em alusão ao pódio das competições de motovelocidade.
— O pódio é um lugar de honra, e a gente quer mostrar que todo mundo tem o seu lugar de honra, mesmo na rua. E, para nós, o troféu está sendo o sorriso deles. Cada "que delícia, está bem quentinho" que escutamos, é mais do que gratificante — relata a idealizadora, Ana.
Para quem recebeu o almoço do último sábado, servido de arroz, feijão e macarrão à bolonhesa, o tempero agradou — deixando o cozinheiro orgulhoso:
— Me sinto lisonjeado em saber que o pessoal gosta da comida que eu faço. É feita com bastante amor e carinho e, às vezes, acaba sendo a única refeição que eles fazem no dia.
Mas, para que as delícias que saem das panelas de Bryan continuem fazendo sucesso e ajudando a matar a fome de quem, neste momento, a tem mais do que nunca, as doações ao projeto são indispensáveis. Para garantir a continuidade da iniciativa, a maior necessidade é de alimentos — que podem ser perecíveis, incluindo proteínas.
"Aprendizado que não tem preço"
Para quem está envolvido com a ação, como o entregador Gabriel Moraes, 29 anos, conhecido como Pica-Pau, o projeto tem sido, também, uma escola — onde o aprendizado é sobre a vida. Embora acostumado a rodar a cidade de moto, foi por meio das entregas solidárias que ele prestou atenção, pela primeira vez, na realidade de quem vive pelas ruas de Porto Alegre.
— Quando tu vai entregar a marmita, muitas vezes eles dizem: "Obrigada! Eu já peguei, pode passar para o próximo". Isso me comove, porque, por mais que daqui a três horas sintam fome de novo, não aceitam o alimento para não tirar de outra pessoa. Isso está sendo um aprendizado que não tem preço — relata o motoboy, cujo sentimento é compartilhado por Ana:
— Vamos para levar comida, mas escutamos de tudo, até poesia. As pessoas têm uma carência enorme de conversar, e é sensacional saber que tu pode ajudar. Hoje, fico me perguntando como é que passei reto por essa realidade todo esse tempo, mesmo sabendo que ela sempre existiu.
Isolamento afetou renda da categoria
— Não tenho vergonha de dizer que, no início, meu desespero maior não era nem por causa da doença, mas pela questão financeira — confessa Ana, sobre a crise econômica decorrente da pandemia da covid-19.
Desde o início das medidas de isolamento social, a proprietária da oficina mecânica viu os atendimentos despencarem. Os impactos econômicos foram sentidos, também, pela clientela do local, composta em maioria por entregadores.
— A crise impactou a todos no nosso ramo. Sei da correria e das dificuldades que os motoboys estão passando. Mas, se eu disser que faltou um arroz ou um feijão, na hora aparece alguém trazendo — conta a idealizadora do projeto.
Com a diminuição da renda de grande parte da população, economizar passou a ser um mantra. Com isso, as compras diminuíram, e as entregas, que garantem o sustento da categoria, tornaram-se raras. Mas, apesar das dificuldades, a solidariedade não entrou em quarentena para os integrantes do grupo.
— No tempo em que estou levando as marmitas, até poderia estar entregando em algum aplicativo, mas o sentimento de poder ajudar não tem preço. Nisso, o projeto está sendo um combustível para seguir, mesmo com dificuldade, porque estamos vendo que, só de chegar em casa e ter comida, já somos ricos — afirma Gabriel, o Pica-Pau.
Como ajudar
/// Doações de alimentos podem ser deixadas na oficina, localizada na Avenida do Forte, 1.437, em Porto Alegre. Outras formas de entrega podem ser combinadas pelo WhatsApp (51) 99501-0908, com Ana.
/// Também são aceitas doações de garrafinhas plásticas do tipo "pitchula", utilizadas para servir suco, e de agasalhos e cobertores.
Produção: Camila Bengo