Desde que foi apresentado à Assembleia pelo governo Eduardo Leite, em meados de maio, o projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020 — que estabelece as metas e prioridades financeiras para o ano — está no centro de uma disputa entre os poderes do Estado. Além de escancarar o rombo nas contas, o texto congela — sem exceções — as despesas com pessoal, o que desencadeou reações no Legislativo e no Judiciário, que questionam a legalidade da proposta.
A opção pelo realismo fiscal é parte da estratégia de Leite para convencer a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) de que está fazendo o que é preciso para assinar o acordo com a União.
O regime de recuperação garante carência na dívida e novos empréstimos. A adesão é alvo de críticas da oposição por exigir privatizações e ajuste rigoroso, mas Leite sustenta que não há alternativa.
Para aderir ao programa, é preciso provar a situação de penúria. Embora a crise seja conhecida, itens da contabilidade do Estado são maquiados há anos. Entre eles, as leis orçamentárias anuais, que preveem o ingresso de receitas extraordinárias fictícias para mascarar sucessivos déficits (despesas acima da arrecadação).
Uma das explicações para o uso desse artifício é o temor de infringir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Em seu artigo 4º, a norma criada em 2000 diz que a LDO "disporá sobre equilíbrio entre receitas e despesas".
O entendimento predominante entre juristas e economistas é de que os governos não podem, por isso, propor leis orçamentárias deficitárias. A interpretação não é unânime.
Para Leite e sua equipe, o dispositivo não exige, explicitamente, que receitas e despesas tenham valores iguais. E o governador sustenta que não há mais espaço para o que chama de "contabilidade criativa". Foi assim que o projeto da LDO chegou à Assembleia prevendo rombo de R$ 4,3 bilhões em 2020, sem subterfúgios e aumento de despesas. A iniciativa recebeu elogios do titular da STN, Mansueto Almeida, embora não seja inédita no Estado.
Em 2007, a então governadora Yeda Crusius (PSDB) tentou emplacar proposta similar. Recuou quando o Tribunal de Justiça (TJ), que teria repasses reduzidos, ameaçou recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF). À época, o secretário da Fazenda era Aod Cunha. Amigo de Leite, ele aconselhou o governador a fazer nova tentativa.
— O contexto atual é outro, e o ambiente é muito mais favorável — argumentou Aod.
Nos bastidores, os embates começaram antes de o projeto vir à tona. Em dois encontros técnicos envolvendo servidores dos poderes, o clima pesou. As reuniões para discutir a LDO ocorreram nos dias 25 de abril e 3 de maio, em uma sala envidraçada no 19º andar do Centro Administrativo. Não tardou a ser cogitada hipótese de judicialização. Nesse caso, um dos poderes recorreria ao STF para forçar Leite a alterar o texto. Uma liminar obrigaria o Piratini a voltar atrás.
O TJ manifesta sua contrariedade com a elaboração de projeto da LDO e sua entrega à Assembleia, sem que tivesse prévio conhecimento de seu teor para análise e colaboração, com ausência de qualquer reajustamento necessário, situação distinta do que ocorreu nos anos anteriores.
CARLOS EDUARDO DURO
presidente do TJ, em nota de 15 de maio
O principal ponto de divergência foi a falta de projeção do crescimento vegetativo da folha. Estimada em 3% ao ano, a expansão é inevitável: decorre de promoções automáticas e de adicionais por tempo de serviço previstos em lei. Ao congelar os gastos com pessoal sem a ressalva, o governo espera que os demais poderes dividam o custo da crise com o Executivo e banquem as despesas extras com o que têm no orçamento.
Quando o projeto chegou à Assembleia, após café da manhã oferecido a autoridades no Piratini, em 15 de maio, o presidente do TJ, Carlos Eduardo Duro, externou a contrariedade em público. Em nota, criticou a entrega do texto "sem que tivesse prévio conhecimento de seu teor para análise e colaboração, com ausência de qualquer reajustamento necessário, situação distinta do que ocorreu nos anos anteriores". O congelamento, na avaliação dele, "compromete o atendimento das necessidades mínimas do Judiciário".
Dias depois, ao falar da situação financeira a servidores da Polícia Civil, Leite afirmou que os poderes não tinham motivos para reclamar:
— Cada poder vai ter de fazer sua parte. Judiciário, Ministério Público e Legislativo argumentam que precisam do crescimento vegetativo no orçamento. Digo, sim, mas assisti recentemente a poderes pagando URVs, licenças e dando reajustes sem ter tido reajuste nos orçamentos. Ou seja, há folga para que consigam atender a sua própria necessidade sem repassarmos valores maiores.
Por que fizemos esta matéria?
O Estado passa por grave crise nas finanças públicas, com rombo de R$4,3 bilhões previsto para 2020, o que vem motivando debates técnicos e políticos. O projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) é o primeiro passo para a definição do orçamento estadual do próximo ano. É o que define, em resumo, como será aplicado o dinheiro dos impostos que pagamos, quais serão as prioridades do Estado e como o recurso será dividido entre poderes e órgãos. Embora o tema seja complexo e, muitas vezes, restrito a círculos especializados, decidimos publicar essa reportagem porque entendemos que é relevante para o nosso público. Historicamente, a crise financeira do Estado vem recaindo sobre o Executivo. Dessa vez, o governador alega que é preciso dividir o ônus com os demais poderes, que questionam a legalidade da medida.
Como apuramos esta matéria?
A apuração se deu a partir de diferentes fontes, começando pela análise de documentos produzidos pelos poderes do Estado, como o projeto de lei apresentado pelo Executivo, o parecer jurídico da Assembleia e a nota oficial divulgada pelo presidente do Tribunal de Justiça. Envolveu, também, entrevistas com fontes oficiais, entre elas o governador, o líder do governo na Assembleia e o presidente do Legislativo, e a busca por informações de bastidores, em especial sobre reuniões técnicas ocorridas nos meses de abril e maio. Foram ouvidas fontes em off, cujos nomes foram preservados a pedido das mesmas, que alegaram receio de sofrer retaliações. Por fim, incluiu pesquisas no portal da Transparência do RS, à procura de dados sobre as despesas públicas.
Prazo para aprovar o texto
O projeto da LDO foi entregue à Assembleia no dia 15 de maio. O texto precisa ser aprovado até 15 de julho. Na sequência, o Piratini tem até 15 de setembro para enviar o projeto do orçamento do ano que vem, e a Assembleia tem de votá-lo até 30 de novembro.
Parecer se torna mais um capítulo da batalha
No último dia 11, a divulgação de parecer jurídico elaborado pela Procuradoria da Assembleia amplificou o debate em torno da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Apresentado a líderes partidários, o documento apontou a necessidade de "correção da ausência constatada" na proposta, referindo-se ao crescimento vegetativo da folha, ignorado no texto.
Sem a retificação, conclui o parecer, o estatuto dos funcionários públicos corre o risco de ser descumprido, "permitindo que os servidores atingidos, querendo, ingressem com demandas judiciais (...), gerando maiores ônus ao poder público". Na ocasião, o presidente da Casa, Luis Augusto Lara (PTB), sugeriu que, se o texto não for modificado, o caso deve acabar na Justiça.
— Há um erro material, e o governo parece que prefere seguir esse caminho. A Assembleia está analisando. Não há consenso. Se o governo quiser manter esse erro, os poderes que se sentirem prejudicados podem ir à Justiça. Alguns têm interpretação de que isso que o governo propõe é primo-irmão da pedalada fiscal — declarou Lara.
Assisti recentemente a poderes pagando URVs, licenças e dando reajustes sem ter tido reajuste nos orçamentos. Ou seja, há folga para que consigam atender a sua própria necessidade sem repassarmos valores maiores.
EDUARDO LEITE
governador, em 7 de junho
O governador Eduardo Leite dá sinais de que levará a briga até o fim. Líder do governo na Assembleia, Frederico Antunes (PP) afirma que o Piratini tem convicção de que "o texto está correto e é constitucional". Conforme ele, nada impede que os poderes deem reajuste, desde que realoquem as verbas de que dispõem. Em 2018, segundo dados do portal da Transparência do Estado, sobraram recursos.
A expectativa de Antunes é de que o projeto seja votado e aprovado no plenário em 9 de julho, sem alterações. A LDO precisa ser avalizada até 15 de julho. Já o orçamento precisa ser votado até 30 de novembro.
— Cada um dos poderes pode fazer o remanejamento dentro do seu orçamento para cobrir qualquer tipo de reajuste. O governo não impede isso. Só está dizendo: como temos déficit, não podemos cogitar mais nem 1% de aumento. É simples — diz o deputado.
Além dos questionamentos jurídicos, pesam contra Leite o fato de ter autorizado, em abril, o pagamento de honorários a procuradores do Estado — categoria que já recebe o teto salarial.
Em meio à pressão por contenção de gastos, a medida causou desconforto entre aliados. O governo argumenta que a União e a maioria dos Estados já pagam esses valores aos advogados públicos, em cumprimento ao novo Código de Processo Civil.
Perguntas e respostas
O que o Palácio Piratini prevê para as finanças do Estado em 2020?
- Receitas de R$ 62,1 bi
- Despesas de R$ 66,4 bi
- Insuficiência de R$ 4,3 bi
Ao contrário de anos anteriores, não estão previstas receitas extraordinárias fictícias para cobrir o rombo.
Por que a decisão é polêmica?
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) diz que:
- A LDO deve tratar do "equilíbrio entre receitas e despesas".
- A responsabilidade na gestão "pressupõe ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas, mediante cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas".
Os enunciados denotam o princípio de que o orçamento deve ser equilibrado. Para integrantes do governo Leite, isso não justifica o uso de receitas artificialmente fabricadas, que, embora neutralizem o rombo, contribuem para agravar a crise.
Houve iniciativa semelhante em outro Estado?
O governador Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, também apresentou projeto estimando rombo (de R$ 11,3 bilhões) nos cofres do Estado em 2020, sem prever nenhum tipo de malabarismo fiscal.
A diferença é que o texto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) mineira prevê crescimento vegetativo da folha, ao contrário do que ocorre no Rio Grande do Sul.
O secretário de Planejamento e Gestão de Minas Gerais, Otto Levy Reis, diz acreditar que a LDO será aprovada pelos deputados sem sustos.
— O projeto é realista. Tem o crescimento vegetativo, mas não prevê reajuste nem reposição salarial para os servidores e também não infla as receitas. Temos o apoio dos poderes, porque todos estão vendo que a situação está muito difícil — afirma o secretário.
Embora o governo ainda não tenha maioria na Assembleia, Reis garante que "há solidariedade".