Entre 7 e 12 de abril, o navio oceanográfico Antares, da Marinha do Brasil, palmilhou a costa do Rio Grande do Sul medindo, em detalhes, a profundidade da plataforma continental (batimetria), enquanto marinheiros em terra instalaram, entre os rios Mampituba e Tramandaí, equipamentos para mensurar marés durante um ciclo lunar. A operação, executada enquanto a embarcação estava a caminho de Buenos Aires, foi uma encomenda do senador gaúcho Luis Carlos Heinze (PP-RS).
Trata-se de tentativa do parlamentar de embasar um estudo técnico para confirmar um dado fundamental para sustentar uma ideia abraçada por ele ainda em 2018: construir um porto marítimo privado entre Torres e Arroio do Sal para facilitar o escoamento da produção da metade norte do Rio Grande do Sul.
O estudo da Marinha é uma das primeiras ações concretas para viabilizar a construção de um Terminal de Uso Privado (TUP) no Estado. Hoje, o Rio Grande do Sul, que tem uma costa de cerca de 620 quilômetros de extensão, conta com um porto, em Rio Grande.
Custo de frete seria uma das motivações
Defensores da ideia afirmam que o terminal no Litoral Norte baratearia custos com frete. Hoje, empresários da serra gaúcha estimam que o deslocamento de uma carga de aço de Caxias do Sul custa, em média, de R$ 4 mil a R$ 5 mil até Rio Grande. Em direção a portos de Santa Catarina, o frete sairia por R$ 3 mil a R$ 4 mil. Até Torres, segundo levantamento, custaria cerca de R$ 1,5 mil.
A ideia de um porto no Litoral Norte remonta ao tempo do Império Brasileiro. À época, dom Pedro II encomendou a engenheiros ingleses um estudo sobre a viabilidade. Impressionados com a profundidade do mar gaúcho, pesquisadores teriam orientado a construção de um terminal na altura de onde hoje fica Torres. Entretanto, o porto acabou sendo construído em Rio Grande.
Cartas náuticas eletrônicas como Navionics, utilizadas por navegadores atuais, apontam que, na altura do Litoral Norte, a profundidade da plataforma continental atinge até 22 metros a 1,8 quilômetro da praia. O que possibilitaria a entrada de navios gigantescos sem a necessidade de construção de estrutura mais adiante da areia. Em Rio Grande, essa profundidade só seria alcançada, segundo pesquisadores, a cerca de 6 quilômetros da praia.
Com calado atual de 12,8 metros, o porto do sul do Estado sofre com assoreamento. O processo de dragagem em andamento no complexo, que deve ser concluído em três meses, permitirá se chegar a profundidade de 15 a 16 metros, aumentando a competitividade.
— Nada contra Rio Grande, mas o transporte no Rio Grande do Sul é dos mais caros do Brasil. Um empreendedor tem 18% de custo logístico. Imagina trazer aço de Minas Gerais para Caxias. Posso trazer para Torres e largar ali, a 200 quilômetros da cidade — explica Heinze.
Um dos idealizadores do projeto é o engenheiro Fernando Carrion, ex-prefeito de Passo Fundo e ex-deputado federal. Ele apresentou a ideia a Heinze em 2017, na época em que o hoje senador postulava concorrer ao cargo de governador. Carrion defende que a profundidade da plataforma continental em Torres é favorecida pela geografia da região, em efeito contrário aos Aparados da Serra, que projetariam no mar uma fundura maior. Ele compara o litoral local a áreas de portos internacionais como Valparaíso, no Chile, e Callao, no Peru. E mexe com os brios dos gaúchos, ao afirmar que, enquanto o RS tem apenas um porto, Santa Catarina dispõe de cinco terminais.
— Nós, com 620 quilômetros de costa, 50% a mais do que Santa Catarina, vamos ficar com um porto? — provoca.
Dados do estudo da Marinha feito no Estado devem ser publicados em meados de maio.
Prefeituras planejam áreas
Segundo o comandante do navio oceanográfico Antares, capitão-de-fragata Cezar Reinert Bulhões de Morais, a área onde foi feito o levantamento tem como centro proximidades da praia do Paraíso, limite entre Torres e Arroio do Sal. É nessa região que políticos e empresários miram a possibilidade de um porto. Prefeituras das duas cidades já planejam possíveis áreas para o terminal, diante de uma comunidade dividida entre vantagens e reflexos de uma construção desse porte.
A ideia mexe com interesses econômicos. Permitiria aportar no Litoral Norte embarcações com calados que atualmente não atracam em Rio Grande — além de navios de carga, embarcações de cruzeiro, que hoje passam diretamente a Uruguai e Argentina. Já empresários de Caxias do Sul sonham com um corredor de produção, que começaria na ponte de São Borja-Santo Tomé (Argentina), passaria por Santa Maria e cruzaria o Estado rumo ao litoral.
O projeto é um dos tópicos do Movimento Mobilização por Caxias (Mob Caxias), que definiu estratégias para o desenvolvimento da cidade até 2040. Um estudo encomendado para a Universidade de Caxias do Sul (UCS) buscou argumentos para justificar o porto em Torres.
— Somos o segundo polo metalmecânico do país. Nesse levantamento, conseguiu-se identificar também que somos hoje maiores exportadores de hortigranjeiro — explica Rogério Rodrigues, integrante do movimento.
Heinze e os apoiadores defendem que a obra seja sem recursos públicos, a exemplo do Terminal de Uso Privado (TUP) de Itapoá (SC). Construído em sete anos, o terminal custou cerca de R$ 750 milhões, além de trazer contrapartidas ao município. Nomes de investidores são mantidos em sigilo, mas uma empresa do ramo de gás estaria projetando custos e uma companhia espanhola construtora de portos estaria levantando orçamentos.
Alerta sobre o impacto ambiental
Para realizar o projeto no Litoral Norte, além de uma grande área em terra para os terminais, seria necessária a construção de um píer mar adentro para receber os navios. Entretanto, ao contrário do Terminal de Uso Privado (TUP) de Itapoá (SC), modelo dos idealizadores do projeto em Torres e que está abrigado na Baía da Babitonga, o novo porto no Estado seria construído em mar aberto.
É aí que começam os desafios. O mar gaúcho é impetuoso, conhecido como cemitério de navios por pescadores e pesquisadores. O geógrafo Elírio Toldo Júnior, do Centro de Estudos de Geologia Costeira e Oceânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), confirma a característica profunda da plataforma continental no Litoral Norte. E usa como parâmetro duas monoboias de Tramandaí, utilizadas para movimentar petróleo e derivados. Localizadas a até seis quilômetros da costa, suas tubulações estão fixadas a 20 metros de profundidade.
Nós, com 620 quilômetros de costa, 50% a mais do que Santa Catarina, vamos ficar com um porto?
FERNANDO CARRION
Ex-prefeito de Passo Fundo
O pesquisador alerta que uma estrutura portuária na região de Torres ou Arroio do Sal exigiria fixar um canal de navegação com uma estrutura de molhes, sob certo custo. E ainda aborda o impacto ambiental. A praia movimenta sedimentos aos dois lados. Uma barreira impermeável no mar iria reter sedimentos, desequilibrando o movimento na areia. O resultado: o aumento da praia no lado Sul da estrutura e erosão ao Norte.
Já Frank Woodhead, empresário e integrante do conselho fiscal do Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas e Logística no Estado (Setsergs), afirma que nem só de profundo calado vive um porto. Ele aponta que um novo terminal em Torres concorreria com portos de Imbituba e Itajaí. A segunda cidade, de acordo com Woodhead, está consolidada como referência em cargas refrigeradas no país.
Uso de hidrovias seria alternativa
Ao mesmo tempo em que coloca sua equipe técnica à disposição dos defensores do projeto de construção de um terminal portuário em mar aberto no Litoral Norte, o superintendente do Porto de Rio Grande, Paulo Fernando Curi Estima, deixa claro sua posição sobre os esforços, que, em sua opinião, deveriam ser deslocados para resolução de problemas que emperram o desenvolvimento do complexo no Sul do Estado. Ele cita como exemplo a necessidade de duplicação da BR-116, melhorias na concessão de ferrovias e aproveitamento da hidrovia, com dragagem e sinalização.
Em resposta a setores empresariais da Serra, que reclamam do alto preço do frete para deslocamento de carga até Rio Grande, Estima propõe o uso do terminal Santa Clara (Contesc), no Polo Petroquímico, a 115 quilômetros de Caxias do Sul. Por ali, por hidrovia, há acesso ao Rio Caí, ao Delta do Jacuí, ao Guaíba, à Lagoa dos Patos, a Rio Grande e ao oceano.
— É mais fácil ajustar as velas do que inventar o barco — diz.
O superintendente defende que não existe porto “exclusivamente privado”, como o proposto no Litoral Norte, um Terminal de Uso Privado (TUP). Segundo ele, todos exigem acessos, rodovias, ferrovias, integração modal, segurança por parte da Marinha, que implicam em gasto estatal.
— Dizem que não tem dinheiro público, mas olha o volume de esforços: um gabinete de um senador, agente público, e a primeira ação é um pedido à Marinha para colocar um navio para fazer batimetria. Quanto custa isso? — questiona, referindo-se aos esforços do senador Luis Carlos Heinze, que tem defendido a proposta.
O coordenador da Associação Brasileira de Terminais Portuários, Wilen Manteli, concorda que investir em dragagem e sinalização da hidrovia contribuiria mais ao desenvolvimento — não aposta em altos custos.
Dizem que não tem dinheiro público, mas olha o volume de esforços: um gabinete de um senador, agente público, e a primeira ação é um pedido à Marinha para colocar um navio para fazer batimetria. Quanto custa isso?
FERNANDO CURI ESTIMA
Superintendente do Porto de Rio Grande
— Rio Grande tem a melhor região, perto da África, da Ásia e com acesso por terra e água. Gaúchos precisam explorar as hidrovias. É o grande fator para o Estado dar a arrancada para o seu desenvolvimento econômico e social. Isso deveria estar no debate — propõe.
Sobre um terminal no Litoral Norte, Manteli pergunta:
— Como serão os acessos terrestres? Quais serão os investidores? Não temos dados para dar uma posição sobre a viabilidade desse empreendimento.
Questionada, a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs) afirmou não ter posição. Nos próximos dias, a pedido de Estima, a Universidade Federal do Rio Grande (Furg), especializada em sistemas de monitoramento da costa nacional, deve emitir nota técnica sobre a complexidade de construção de terminais em mar aberto. Rio Grande, por exemplo, é terminal abrigado.
— Em Torres, não tem como fazer uma barra. Onde vão conseguir rocha para construir molhes? — questiona Estima.
O empresário Frank Woodhead adverte que não haveria carga para um novo porto:
— Não tem carga para manter um porto funcionando. Estamos falando em volumes expressivos, cinco, seis, sete, 10 milhões de toneladas. Aí pode ser que seja viável. Todo o porto de Rio Grande exporta 30 milhões. Tu acabas inviabilizando dois portos. Tira de um para colocar em outro.