A chegada do novo ano não será como de costume para Lorena da Cruz Gomes, 66 anos, com o tradicional churrasquinho para familiares e amigos na casa na Ilha das Flores, ao lado do filho. Neste ano, será vivido no Centro Humanitário de Acolhimento Vida, na Zona Norte de Porto Alegre, que ainda serve de abrigo para 362 pessoas impactadas pela enchente que assolou o Rio Grande do Sul em maio.
Assim como a aposentada, mais de 1,2 mil pessoas seguem vivendo em abrigos no RS quase oito meses após a catástrofe.
Para o Réveillon, na noite desta terça-feira (31), a Organização Internacional para Migrações (OIM) das Nações Unidas (ONU) organizou uma programação especial para os abrigados no Centro Humanitário de Acolhimento Vida, com o auxílio da comunidade. O clima, no local, se divide entre pessoas animadas com as festividades e pessoas desiludidas em meio ao cenário de passar as festas em um abrigo.
Para Lorena, que perdeu tudo na enchente, não há clima para comemorar. Além da casa, a aposentada, que não pode trabalhar por motivos de saúde, perdeu sua cadelinha na enchente, o que a levou ao adoecimento. O ano pode ser resumido em “péssimo”, em sua avaliação.
É um ano que a gente perdeu tudo. Eu já tinha perdido naquela enchente de dezembro. Deu na metade da minha casa. Eu perdi todos os móveis. Aí eles deram R$ 3 mil para nós. Aí eu fui lá, comprei tudo de novo. Roupeiro, balcão, armário. Aí veio a água (em maio), passou três metros acima da casa, levou tudo. Perdemos tudo. Eu gostaria de estar na minha casa. Entrar o Ano-Novo no abrigo é meio complicado para a cabeça da gente. Não é nada bom.
LORENA DA CRUZ GOMES, 66 ANOS
Atualmente no Centro Vida
A aposentada aguarda a casa que foi prometida pelo governo, e espera se restabelecer em Gravataí, na Região Metropolitana. Por ora, entretanto, não há nenhuma expectativa de recebê-la tão cedo, já que seu processo não avançou.
— Não gosto daqui. Mas eles prometeram dar uma casa para nós. Eu peguei três enchentes lá. Então eu tô pedindo casa para o Demhab (Departamento Municipal de Habitação) há três anos. Eles estiveram aqui, eu conversei com eles. Eles disseram que eu vou ganhar casa. Mas quando? Quinta-feira eu vou lá de novo. Eu quero a casa — relata, acrescentando que agradece por ter sido acolhida em um local com cama e alimentos depois de perder tudo.
Para 2025, Lorena espera que o cenário melhore e que as pessoas mantenham a esperança de sair do abrigo com uma casa nova e sonhos realizados – algo em relação ao qual tem dúvidas, mas torce para que aconteça.
Programação especial
A celebração iniciou com um jantar especial, às 18h. O cardápio inclui lombo suíno assado, frutas em calda, arroz, lentilha e, de sobremesa, pavê de chocolate. Depois, os moradores do local tiveram acesso a atividades como cantar no karaokê, jogos e bingo. As comemorações foram planejadas com os moradores.
A dinâmica é parecida com a do Natal, que também contou com comemorações no espaço. Alguns deixam o local para celebrar com familiares, mas outros permanecem.
— São momentos que a gente percebe o quanto são emotivos. Então, o quanto é importante que a gente não esqueça que podemos, ainda assim, celebrar, estar junto nesses momentos, e que haverão novos recomeços, o novo ano chega com várias novidades. Assim, a gente espera — ressalta Ellene Baettker, coordenadora de alojamentos temporários da OIM.
Agora, as famílias que ainda estão no local estão recebendo orientações a respeito dos próximos passos nos programas de habitação dos governos. Enquanto permanecem nesses espaços – que são temporários, reforça Ellene –, a organização busca trazer um ambiente digno, com boa alimentação, espaço de recriação, saúde mental e interação.
O uso do espaço está previsto até junho de 2025 – período durante o qual espera-se que as pessoas consigam ir para as suas novas residências, aponta a coordenadora. A assistência social e as secretarias de habitação têm acompanhado o passo a passo das famílias na reconstrução e na saída. Algumas já estão mais avançadas em programas habitacionais como o Compra Assistida, porém, quem não está, será acompanhado para verificar o que falta.
— A gente espera que 2025 seja esse próximo passo, essa estratégia, que as pessoas consigam sair deste alojamento, voltar para sua casa ou ter um novo espaço para morar, porque sabemos que foi muito difícil. Que eles olhem para um novo 2025, com espaço novo para morar, com uma vida mais tranquila e que a gente não passe mais por isso novamente — resume.
“Vendo as crianças felizes, a gente sente”
— Foi terrível. Não foi nada fácil. A gente perdeu tudo, ficamos sem nada, e viemos parar aqui — relembra a dona de casa Raquel Figueiró da Cruz, 49, que teve a casa levada pelas águas.
Apesar do ano desafiador e do cenário atual, que ainda não é o ideal, a ex-moradora da Ilha do Pavão vai comemorar a passagem do ano no abrigo.
— Vendo as crianças felizes, a gente sente. Temos amizades verdadeiras, então a gente vai tentar trazer o máximo de alegria, dividir um pouco do carinho, estar compartilhando a paz, alegria. Que todos lutem e não percam a esperança e continuem acreditando que a gente pode vencer e que a vitória ainda está por vir — ressalta.
Para o ano que chega, Raquel espera mudanças.
— Por enquanto, a gente se sente bem, estamos aqui acolhidos. E espero também que tenha a nossa própria mudança, com todos os trabalhos também que a gente está aprendendo aqui dentro, empreendedorismo, para quando a gente sair, poder trabalhar, montar o seu próprio negócio — compartilha.
A dona de casa pretende aprender mais sobre o ofício de decoração de festas e de padaria e confeitaria, para dar início ao seu próprio empreendimento. A mãe de quatro filhos também deseja continuar morando próximo ao abrigo, região onde o filho mais novo estuda.
Ainda não há, contudo, planos ou perspectivas para se mudar do abrigo – ela ainda espera o auxílio moradia ou a casa prometida.
— A gente espera que o governo possa nos ajudar, a construir um novo lar de novo, até priorizar também as crianças, escola, esse tipo de coisa. Que a gente possa ter um trabalho. E, para nós podermos montar o nosso próprio negócio, a gente tem que ter o nosso canto. Para que a gente possa criar mais renda, ter uma vida melhor para os nossos filhos e um bom futuro — destaca.