A deriva do herbicida hormonal 2,4-D voltou a atacar e causar prejuízos em plantações de culturas sensíveis na metade sul do Estado. Pelo quarto ano consecutivo, a Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seapdr) está recebendo denúncias, sobretudo dos produtores de uvas viníferas, os maiores prejudicados, de vinhedos que apresentam retorcimento de galhos e aborto de frutos. Repetindo os anos anteriores, equipes técnicas da Seapdr foram até as propriedades e fizeram coletas de amostras, as quais foram enviadas para análise de laboratório. Os laudos devem ser emitidos na primeira quinzena de janeiro de 2022, após ter sido encontrada uma fonte de receita para custear os exames.
A Seapdr divulgou balanço parcial indicando que, entre agosto e novembro de 2021, no Rio Grande do Sul, foram recebidas 74 denúncias de deriva do 2,4-D, uma queda em comparação com o mesmo período do ano anterior, quando foram feitas 129 reclamações.
O governo estadual avalia que o dado é positivo, indicador de redução dos casos após a adoção das instruções normativas que trouxeram regras para a comercialização, receituário e aplicação do 2,4-D, com previsão de cursos de qualificação e processos administrativos contra infratores. Os flagrantes de irregularidades também podem ser alvo de ação civil pública do Ministério Público, que recebe os autos de infração da Seapdr.
Os produtores atingidos, de cidades como Bagé, Dom Pedrito, Santana do Livramento e Jaguari, entre outras, demonstram um misto de revolta com exaustão. Amargam perdas em mais um ano, consideram as ações do Estado insuficientes e já perderam as esperanças no diálogo com a Seapdr. Somente na safra passada, a Associação de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha deixou de envasar um milhão de garrafas devido aos danos causados pelo herbicida hormonal. Um prejuízo de R$ 66 milhões.
Os agrotóxicos produzidos a partir da molécula do 2,4-D são aplicados nos campos antes do plantio da soja para eliminar a erva-daninha conhecida como buva. Os sojicultores argumentam que ele é um produto eficaz e de custo mais acessível. O problema é que, se aplicado incorretamente, com equipamentos ou condições climáticas inadequadas, o químico é carregado pelo vento e acaba atingindo culturas sensíveis, como uvas, oliveiras, maçãs, entre outras. O 2,4-D inibe o desenvolvimento das plantas, reduz a produtividade e causa perdas milionárias.
Presidente da Associação de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha, o produtor Valter Pötter estima que, na atual safra, cuja colheita deve ocorrer em fevereiro de 2022, as perdas de produção nos vinhedos ficarão entre 25% e 30%.
— A situação está igual ou pior do que o ano passado. Não tem indenização, não tem responsável, não muda a situação das perdas. O Estado não tem controle. A única alternativa é a Justiça — diz Pötter, referindo-se à ação judicial movida pelo setor, apoiado por produtores de maçã, na tentativa de suspender judicialmente a comercialização de 2,4-D no Estado.
A ação civil pública tramita na 10ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, mas ainda não há decisão, e o herbicida segue liberado para aplicação.
Diretor do Departamento de Defesa Vegetal da Seapdr, Ricardo Felicetti reconhece a gravidade do problema, mas avalia que foram conquistados avanços. A política do governo estadual seguirá na linha de reforçar fiscalização e orientação aos produtores de soja sobre o correto uso do 2,4-D, sem vislumbrar a hipótese de vetar o herbicida. As instruções normativas, que criaram uma série de obrigações para a pulverização do agroquímico, terão seus efeitos expandidos a partir de 1º de junho de 2022. Elas passarão a vigorar em todo o território do Rio Grande do Sul, e não apenas nos 24 municípios em que vigem hoje. As normas trazem determinações como o uso de bicos de gotas grossas para a pulverização, o que ajuda a evitar a deriva, e somente aplicar o químico em dia de ventos de até 10 km/h.
— A situação é complexa, estamos falando de produtores severamente lesados. Em que pese a dificuldade relatada, foram identificados avanços com a redução do número de denúncias. Também verificamos que produtores já autuados por uso irregular do 2,4-D não voltaram a cometer infrações. A linha que trabalhamos é a de aprimorar a fiscalização nas regiões mais afetadas. Em Jaguari, estamos com equipe permanente de fiscais — afirma Felicetti.
Próximo de Santiago, o município de Jaguari é um dos mais atingidos pela deriva do 2,4-D. A cidade possui uma lei municipal que proíbe a aplicação do herbicida em um raio em torno das propriedades de uvas viníferas. Os atingidos dizem que os vizinhos respeitam a norma e, por isso, entendem que o 2,4-D é carregado pelo vento desde cidades vizinhas até os seus parreirais, percorrendo longas distâncias.
Na atual safra, já foram feitas coletas em vinhedos de 24 associados da Cooperativa Agrária São José, produtora dos vinhos Jaguari. Técnico agrícola que presta serviços para a cooperativa, Alexandre Maia diz que os associados irão perder pelo menos 50% do potencial produtivo das parreiras por conta do 2,4-D. A colheita, diz, será de no máximo 500 toneladas de uva. Nos bons tempos, entre 2012 e 2013, antes de iniciarem os problemas com a deriva, a cooperativa chegou a bater na marca de 900 toneladas. Ele ainda afirma que a seca que atinge o Rio Grande do Sul é pouco prejudicial à fruticultura.
— Esse ano vai ser dos piores, até porque o preço dos insumos, como o adubo, disparou. Daqui a pouco a produção da uva vinífera não irá mais pagar os custos — afirma Maia, repetindo um argumento constante dos produtores para apontar o risco à diversificação da produção no campo.
Vice-presidente da Cooperativa Agrária São José, João Alberto Minuzzi sofre com a deriva nos seus parreirais e rebate o argumento do governo estadual de que a queda no número de denúncias é um ponto positivo.
— Muitos estão desestimulados. Tivemos de fazer uma força-tarefa para que concordassem em denunciar. O pessoal não queria mais saber porque todo ano se faz denúncia e não se revolve nada — lamenta Minuzzi.
Em Dom Pedrito, na Campanha gaúcha, a deriva do herbicida atingiu o vinhedo do curso de Enologia da Unipampa. São quatro hectares de área produtiva com plantação de 50 variedades de uvas viníferas, de mesa e para sucos. A iniciativa é objeto de pesquisa e aprendizado aos cerca de 160 alunos da universidade que cursam graduação ou especialização em Enologia.
— Eu diria que estamos no pior ano de todos. Sofremos três contaminações. Uma no final de outubro, uma no meio de novembro e outra em dezembro. A videira responde muito rapidamente às contaminações — diz Marcos Gabbardo, professor do curso de Enologia da Unipampa em Dom Pedrito.
Enquanto relata o enfraquecimento e a perda de produtividade das videiras com a ação do 2,4-D, Gabbardo recorda do seu pequeno vinhedo de uvas de mesa na área urbana de Dom Pedrito, o qual ele mantém em casa por lazer. A plantação pessoal foi atingida pelo terceiro ano consecutivo pela deriva.
— Já é uma questão de saúde pública. As pessoas estão levando um banho de 2,4-D nas cidades — avalia Gabbardo.
Ele relata que o potencial de desenvolvimento vinícola na região está sendo segurado. Investimentos estão represados enquanto uma solução não se apresenta. As características da Campanha, com pouca chuva, muito sol e frio no inverno, fazem da localidade um oásis para as videiras.
— Sem dúvida, a uva da Campanha para o vinho tinto é das melhores do Brasil. O potencial é indiscutível. Muita gente queria expandir o negócio vitivinícola, mas não há segurança — comenta o professor.
Em Piratini, também na Metade Sul, o produtor Cézar Lindenmeyer, da vinícola Don Basílio, está no quarto ano de perdas.
— Aparentemente, as autoridades estão mais preocupadas em dizer que a estatística melhorou, sem se preocupar com o fato de que as vítimas podem estar enjoadas de fazer denúncias sem que nada aconteça. Ou porque desistiram da atividade — pontua Lindenmeyer.
O promotor Alexandre Saltz, que atua no tema a partir de inquérito na Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre, entende que a situação é de avanço e de redução dos casos. Junto de órgãos públicos e setores produtivos e empresariais, Saltz participou de reuniões de uma força-tarefa da Seapdr em que foram criadas as instruções normativas para a aplicação do 2,4-D.
— A redução no número de ocorrências envolvendo deriva comprova que as medidas tomadas pelo Estado, juntamente com o Ministério Público e outros órgãos, estão no caminho certo. Evidentemente ainda há episódios que acontecem e entendemos que eles se devem muito mais aos produtores rurais que insistem em descumprir a lei. Para esses, imaginamos que o caminho correto é a responsabilização, inclusive a criminal. Recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado entendeu que essas condutas não seriam crime. O Ministério Público está recorrendo dessa decisão ao Superior Tribunal de Justiça porque entende que a conduta é, sim, criminosa. A criminalização dessa conduta é um fator de inibição para os maus produtores rurais. Embora sejam minoria, eles causam pesados danos à economia, ao meio ambiente e à saúde — analisa Saltz.
Vice-presidente da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Domingos Velho Lopes considera que a situação caminha rumo à ambiente favorável, em referência à queda de denúncias de deriva entre agosto e novembro de 2021. A entidade reforça seu posicionamento contrário à retirada do 2,4-D do mercado.
— Os números são positivos. Isso é reflexo dos seis mil produtores ruais e aplicadores (de agrotóxicos) que receberam treinamento em 2021. É um problema entre produtores, todos associados aos sindicatos rurais e, consequentemente, à Farsul. Sempre é muito delicado e não resta dúvida de que o constrangimento existe. Entretanto, a Farsul não tem dúvida de que o treinamento é o melhor caminho — afirma Lopes.