O terceiro ano consecutivo em que a deriva do herbicida 2,4-D causa estragos milionários em vinhedos, somado à judicialização do caso, promoveu racha histórico entre os produtores gaúchos. É cada vez mais tensa a relação entre vitivinicultores, apoiados pelo setor da maçã, e sojicultores, maiores usuários do agrotóxico no campo. A tentativa em curso de suspender na Justiça a aplicação do 2,4-D no Estado, em ação civil pública movida pela Associação de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha e pela Associação Gaúcha dos Produtores de Maça (Agapomi), foi o ponto mais alto da escalada de nervos.
A entidade vinícola anunciou que deixarão de ser produzidas um milhão de garrafas na atual safra devido aos danos causados pelo herbicida. O prejuízo estimado na Metade Sul é de R$ 66 milhões.
No relatório de 2020 da Secretaria da Agricultura, de 162 coletas feitas em propriedades que denunciaram possíveis efeitos destrutivos, 101 laudos laboratoriais deram positivo para a presença do herbicida. Os casos de contaminação representam 62,34% dos materiais analisados. É uma redução ante o índice de 2019, que ficou em 88,23%, mas ainda insuficiente para cessar perdas milionárias.
– É momento de muita tensão entre produtores. Isso está ocorrendo entre vizinhos. Pessoas que se relacionam não só como vizinhos, mas como familiares. São produtores em conflito com produtores – avalia Domingos Velho Lopes, vice-presidente da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul).
Vinhedos estão com mais arames à mostra do que folhagens
Nos dias finais de dezembro, os vinhedos de Jeferson Chequim Guerra, 45 anos, em Jaguari, na região central do Rio Grande do Sul, costumavam ficar tomados pelo verde das folhagens, tão espessas e longilíneas que chegavam a esconder os cachos de uva das variedades bordô e goethe. Quem parasse embaixo do parreiral desfrutaria de uma sombra impenetrável para os raios de sol. Essa realidade começou a ficar para trás a partir de 2013. De lá para cá, a situação se agravou, e o vinhedo, hoje, em época de estar frondoso, encontra-se esquálido.
Há caules mortos, secos, sem folhas e, consequentemente, desprovidos de qualquer fruto. Em outras partes da plantação, houve resistência e o verde chegou a brotar, gerando alguns frutos, mas é possível verificar que as ramificações estão retorcidas, deformadas e, após o ponto dessas deficiências, deixaram de crescer.
O resultado é que o vinhedo está com um grande vazio, com as robustas folhagens que sombreavam o solo substituídas por arames de sustentação à mostra. É como uma casa destelhada após um furacão.
No início da década, Guerra chegou a ter colheita que se aproximou das cem toneladas de uvas, produção que encaminha para a Cooperativa Vinhos Jaguari. Nesta safra, assim como na anterior, ele deve obter 12 toneladas da fruta.
– Estamos operando no vermelho. A gente insiste de teimoso, na esperança de que algo mude, mas já era para ter abandonado – lamenta Guerra.
Análises
As perdas do produtor são resultado da deriva do herbicida hormonal 2,4-D, aplicado nos campos antes do plantio da soja para matar a erva-daninha conhecida como buva. Como é um agrotóxico volátil, de específicas condições de uso, pode sofrer um processo de deriva pelo ar, atingindo plantações vizinhas de outras culturas. Uma delas é o vinhedo.
Ao receber o contato do 2,4-D, as plantas de folhas largas são atacadas no sistema hormonal e deixam de se desenvolver. Em Jaguari, os efeitos nas videiras são percebidos visualmente há sete anos, mas somente nos últimos três foi possível comprovar isso com análises de laboratório encomendadas pela Secretaria Estadual da Agricultura, que publica levantamentos oficiais sobre os casos confirmados de degradação pelo 2,4-D.
Após coleta de amostra na propriedade de Guerra nesta safra, a secretaria confirmou, via análise laboratorial, que o vinhedo dele foi atingido pelo herbicida.
Ele diz que, caso não haja mudança no quadro, os vinhedos estarão totalmente inservíveis em poucos anos. Dos seis hectares de área plantada na propriedade, 4,5 são definidos como danificados, os quais não pagam mais o custo da produção. Ele também lamenta a situação porque, assim como seu pai, “nasceu debaixo de um parreiral”. Além do aspecto financeiro e do risco à diversificação de culturas, aponta a tradição: a Cooperativa Vinhos Jaguari soma 87 anos de história.
– São gerações que se perdem. É o pequeno produtor que garante a diversidade na mesa do café da manhã, do almoço e da janta. Não sei como será isso no futuro – alerta Guerra.
Neste ano, em uma das áreas em que erradicou o vinhedo e fez o replantio, na tentativa de retomar vegetais saudáveis, o produtor aproveitou para cultivar milho nas entrelinhas dos pés. Ele diz que foi uma forma encontrada para tentar “diminuir o prejuízo”, já que o grão, de folha estreita, não é atacado pelo herbicida.
Alternativa
Guerra recorda que, antes de o 2,4-D começar a ser problema, os resultados com os vinhedos eram “muitos bons”. Pagavam todos os custos e deixavam boa margem de lucro, rememora ele, saudoso. Caso tenha de trocar de cultura, diz não saber o que plantar, e duvida que alcance a lucratividade que já teve com o vinhedo. Para ganhar dinheiro com a soja, salientam agricultores prejudicados, é preciso ter plantio extensivo em vastas áreas de terra.
Cansado dos prejuízos, Guerra entende que a situação chegou a tal ponto que, agora, só a proibição de uso do 2,4-D no Estado poderá devolver um pouco de tranquilidade aos produtores que buscam diversificar. Ele salienta que outros agrotóxicos fazem o mesmo trabalho do 2,4-D no controle da buva, sem causar deriva, porém com preço mais elevado.
– Por questões de custos, preferem usar o 2,4-D e prejudicar os vizinhos – afirma Guerra.
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