Provavelmente você ainda não tenha ouvido falar na tecnologia CRISPR-Cas9, ou simplesmente “crisper”. Mas é bom ir se acostumando com o termo, que promete quebrar paradigmas na engenharia genética mundial – abrindo espaço para a democratização da biotecnologia, hoje nas mãos de grandes indústrias pelo alto custo de desenvolvimento. E, antes que a confusão seja feita, não confunda com organismos geneticamente modificados (OGM). Sem a necessidade de introduzir um gene de outra espécie, como nos transgênicos, a técnica permite editar o DNA – ligando ou desligando os genes de interesse nas plantas, animais ou micro-organismos.
– É um avanço revolucionário para a ciência, trazendo as vantagens de precisão, rapidez e baixo custo – explica o pesquisador da Embrapa Alexandre Nepomuceno, um dos precursores em estudos com CRISPR no Brasil.
Em janeiro deste ano, o país deu um passo adiante ao normatizar o uso de técnicas de edição de genomas em plantas, animais e micro-organismos. Por meio de uma resolução normativa, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) estabeleceu os requisitos para apresentação de consulta ao órgão sobre métodos inovadores de melhoramento por precisão – o que inclui o CRISPR (entenda como funciona abaixo).
– Até então não tínhamos procedimentos para avaliar esse tipo de tecnologia – diz Edivaldo Domingues Velini, ex-presidente da CTNBio e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Botucatu).
À frente do órgão por quatro anos, de março de 2014 a março de 2018, Velini destaca que a discussão sobre a regulamentação levou mais de dois anos e seguiu parâmetros semelhantes aos adotados em países como Estados Unidos, Canadá e Argentina.
– Tivemos um zelo muito grande para garantir a biossegurança, não há nenhuma flexibilização, como se tem propagado equivocadamente por aí – diz o membro da CTNBio, ao referir-se a críticas em torno da normatização pela comissão.
A principal é o fato de a tecnologia não ser tratada como um organismo geneticamente modificado. Dessa forma, se comprovado na consulta de que não se trata de um produto transgênico, será liberado o registro junto ao Ministério da Agricultura – seguindo o trâmite de melhoramento genético. Até agora, segundo Velini, o órgão não recebeu nenhum pedido de consulta de planta ou animal, apenas de micro-organismos usados na indústria (leveduras).
Vantagens no menor custo e na facilidade de registro
A maior facilidade de registro da tecnologia, e também de desenvolvimento, abrirá oportunidade para universidades e empresas de pequeno e médio portes ganharem espaço em um mercado dominado por multinacionais.
– A edição genômica, por meio do CRISPR, é a oportunidade de diminuir o monopólio da biotecnologia no mundo, que acabou ficando nas mãos de grandes empresas e focada em culturas extensivas – avalia Luiz Carlos Federizzi, professor da área de melhoramento genético da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A concentração de mercado é explicada pelo alto custo da transgenia, em torno de US$ 140 milhões por produto – o equivalente a mais de R$ 500 milhões. Do valor, cerca de 60% é para regulamentação, que envolve milhares de testes e de cinco a 10 anos de trâmites processuais, explica Nepomuceno.
– Não por acaso, as principais economias mundiais estão com pesquisas avançadas em edição genômica.
O Brasil precisa acordar para não passar batido diante dessa revolução mundial – alerta o pesquisador da Embrapa, acrescentando que não adianta ter tecnologia e legislação se não houver recursos para fomentar pesquisas na área.
À medida que os estudos avançarem no país, com os primeiros registros comerciais de edição genômica, deverá ficar clara a questão da propriedade intelectual – ainda incerta.
– Há pouco mais de 10 anos não imaginávamos que poderíamos editar um DNA dessa forma. É um avanço extraordinário, que exigirá modernização da legislação também – frisa Adriana Brondani, diretora-executiva do Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB).
Edição de DNA
A tecnologia CRISPR-Cas9 é capaz de modificar o genoma de plantas, animais e micro-organismos, permitindo ligar e desligar genes – reforçando ou inibindo determinada característica de um organismo.
Diferentemente dos organismos geneticamente modificados (OGMs), que introduzem um novo gene, o CRISPR apenas altera as características próprias dos organismos.
Uma mudança que levaria centenas de anos, por meio de mutações naturais, pode ser feita com uma alteração induzida.
A origem da técnica
Ferramentas para editar e modificar o DNA são utilizadas desde a década de 1980, mas a tecnologia CRISPR é considerada revolucionária por permitir a manipulação de genes com maior precisão, rapidez e menor custo.
CRISPR é a abreviação em inglês de Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats (Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interpassadas).
Descoberta em 2012, pela Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA), a técnica utiliza enzimas para cortar o DNA em pontos determinados.
Uso na agricultura
Aplicada inicialmente em pesquisas da saúde para combate do câncer, a tecnologia começou a ser utilizada na agricultura em 2014.
A iniciativa pioneira foi da pesquisadora chinesa Caixia Gao, com plantas de trigo para resistência a uma das piores ameaças: a doença fúngica powdery mildew, que ataca também outras culturas, como arroz.
A edição de genomas permite desenvolver culturas agrícolas resistentes a pragas e corrigir genes defeituosos em animais. As plantas das culturas melhoradas por CRISPR são livres de DNA estranho, tornando-as comparáveis com as desenvolvidas por melhoramento genético.
Experiências no mundo
Os Estados Unidos aprovaram, em abril de 2016, a produção comercial de um cogumelo que não escurece, desenvolvido na universidade da Pensilvânia.
No mesmo ano, a DuPont Pioneer obteve aprovação comercial nos EUA de um milho que teve “desligado” o gene que produz amilose (porção solúvel do amido). Assim, a variedade ficou com 100% de amilopectina, valorizada pela indústria de alimentos.
Em outubro de 2017, instituto de pesquisa de Minessotta (EUA) aprovou variedades de soja tolerantes à seca e à salinidade do solo – ambas pela técnica.
Na Espanha, institutos de pesquisa estão desenvolvendo, por meio de edição de DNA, trigo sem glúten, e na Suécia um repolho sem o gene que codifica uma proteína envolvida na fotossíntese.
Pesquisas no Brasil
A Embrapa lidera as pesquisas de CRISPR no país. Um dos estudos é a edição de genoma para aumentar a tolerância da soja à seca. Outra pesquisa visa retirar da oleaginosa fatores antinutricionais, que dificultam o aproveitamento da proteína na ração animal.
Pesquisadores da Embrapa trabalham ainda com plantas de algodão, milho e cana-de-açúcar resistentes a pragas e doenças e tolerantes a estresses climáticos.
Produção de vacas leiteiras da raça holandesa sem chifres para avanços no bem-estar animal.
A UFRGS e a PUCRS pesquisam para aumentar a massa muscular de ovinos da raça merino australiano.
As duas universidades também estão editando o DNA para eliminar o receptor do vírus da diarreia bovina, para tornar o animal resistente à doença.
Avanço na pecuária é desafio maior para a ciência
Se nas plantas e na saúde humana a edição genômica tende a avançar rapidamente no mundo, na área animal o processo deverá ser mais lento. Não por questões de natureza científica, mas regulatória, explica a pesquisadora Luciana Relly Bertolini, professora do Programa de Biologia Celular e Molecular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Embora no Brasil os animais estejam incluídos na mesma norma regulatória de vegetais e micro-organismos, nos Estados Unidos há entendimentos do Food and Drug Administration (FDA) – agência americana do Departamento de Saúde e Serviços Humanos – de que animais modificados com técnicas de edição genômica devem ser tratados como transgênicos.
– Não existe uma lógica para isso, até porque nos animais se consegue controlar melhor as mutações – contrapõe Luciana, citando um movimento de pesquisadores americanos que está tentando reverter a posição do FDA.
A resistência aos estudos na ciência animal não chega a ser novidade para os estudiosos da área, que viram o mesmo ocorrer em relação aos transgênicos – que se consolidaram na agricultura e ainda não deslancharam na pecuária. A pesquisadora passou a trabalhar com CRISPR ainda em 2015, em projetos com a Faculdade de Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Um dos estudos com edição genômica, iniciado em 2016, busca aumentar a massa muscular de ovinos da raça merino australiano – normalmente direcionados à produção de lã.
– Dessa forma, os animais aumentariam a dupla aptidão, continuando com a lã, mas produzindo mais volume de carne – explica a pesquisadora, que pretende fazer as primeiras microinjeções em embriões no próximo ano, na região da Campanha.
No ano passado, as duas universidades começaram outra pesquisa conjunta usando CRISPR. O foco é na eliminação do receptor do vírus que causa a diarreia bovina.
– Com a edição do DNA, pretendemos tornar os animais resistentes a uma das principais doenças que acomete a pecuária de corte e de leite – explica Luciana, que desenvolve o estudo ao lado do mestrando colombiano Camilo Peña.