Sócios de uma cooperativa por décadas símbolo da pujança do agronegócio brasileiro, eles depositaram suas colheitas e parte de seus sonhos no lugar onde cresceram e no qual foram ensinados a confiar. Lembram-se de cor o número das matrículas usadas corriqueiramente nos supermercados, nas lojas de insumos, nas contas correntes e nas vendas de grãos. O orgulho de fazer parte da trajetória de sucesso da Cotrijui deu lugar nos últimos anos ao desgosto — em um misto de angústia, revolta e tristeza no noroeste do Rio Grande do Sul. Em relatos carregados de emoção, produtores revelam casos de depressão e até mesmo de atitudes extremas.
— Cheguei a pensar em me matar — conta um agricultor de Ijuí com mais de R$ 200 mil para receber e que preferiu não se identificar.
Na última segunda-feira, a decisão da Justiça de levar a Cotrijui à liquidação judicial expôs a face agonizante de uma cooperativa que foi a maior da América Latina na década de 1970 e hoje acumula dívidas ao redor de R$ 1,8 bilhão.
Os débitos representam quase o dobro do patrimônio, conforme estimado pela ex-diretoria, afastada pelo juiz Nasser Hatem, da 1ª Vara Cível da Comarca de Ijuí, no mesmo ato que determinou a liquidação. A deliberação atendeu pedido da Chinatex, uma das maiores credoras, que vem tentando receber seus créditos. Três dias antes do despacho, operação do Ministério Público, em conjunto com a Polícia Civil, foi o prenúncio do futuro incerto de um ícone do cooperativismo gaúcho.
— Sentimos uma frustração muito grande em ver a Cotrijui nessa situação. As perdas são grandes para os produtores e também para os municípios onde a cooperativa por décadas teve uma vida saudável e crescente — lamenta o produtor e vice-prefeito de Ijuí, Valdir Zardin.
Junto às dívidas acumuladas, especialmente ao longo dos anos 2000, misturam-se histórias como a de Leocir Wadas, 61 anos. Filho de um dos fundadores da Cotrijui, Wadas viu a família depositar boa parte das economias nos cofres da cooperativa.
A Cotrijui era um banco para nós. A gente tinha uma conta corrente, a hora que precisasse de dinheiro ia lá receber.
LEOCIR WADAS
Produtor associado
— A Cotrijui era um banco para nós. A gente tinha uma conta corrente, a hora que precisasse de dinheiro ia lá receber — lembra o produtor, que cultiva 150 hectares de grãos em Ijuí, Coronel Barros e São Miguel das Missões, no noroeste do Estado.
A partir de 2012, o dinheiro economizado com suor em anos de safras fartas não pôde mais ser retirado por muitas famílias.
— Um dia mandavam falar com um, outro dia com outro, e assim ficamos esses anos todos, sem nenhuma solução — conta Wadas.
Mesmo sem receber o valor guardado, o produtor continuou entregando grãos à cooperativa. O gesto era uma demonstração de que, apesar das dificuldades, o associado precisava estar ali, presente. À medida que a crise se agravou, a fidelidade dos agricultores minguou.
— Começamos a procurar alternativas para entregar o grão. A relação de confiança entre o produtor e a cooperativa não existia mais — relata Romeu Michael, 66 anos.
Sócio da Cotrijui, o agricultor tem cerca de 2 mil sacas de soja a receber – o equivalente hoje a R$ 140 mil. O valor seria usado para pagar investimento em lavouras em Santa Filomena, no Piauí.
— No fim, tive que vender parte da minha terra para não ficar devendo a ninguém — conta Michael, que nesta safra arrendou os 35 hectares restantes em Ijuí.
No fim, tive que vender parte da minha terra para não ficar devendo a ninguém.
ROMEU MICHAEL
Produtor associado
O ex-presidente liquidante, Eugênio Frizzo, calcula que as dívidas com produtores ultrapassem R$ 260 milhões, envolvendo cerca de 5 mil sócios – ativos e inativos. A pouca esperança em reaver o dinheiro devido soma-se à preocupação dos produtores de serem responsabilizados pela dívida da Cotrijui no futuro.
— Somos donos da cooperativa, não queremos que um dia nossos netos sejam cobrados a pagar essa conta — diz Edson Burmann, produtor e um dos líderes do movimento independente denominado Recuperação Cotrijui.
O grupo de produtores, que denunciou ao MP a suspeita de venda de grãos sem autorização e outras fraudes na gestão, entrou com petição contra a nomeação do administrador judicial.
— Queremos construir uma solução que não seja o fechamento da cooperativa — reforça Burmann.
Na sexta-feira, o juiz Nasser Hatem negou o pedido, mantendo por ora o administrador judicial nomeado, ficando à espera dos resultados da equipe de trabalho.
Bem menor, mas ainda relevante
Embora bem distante dos tempos áureos, quando chegou a quase 20 mil sócios e mais de 2,7 mil funcionários, a Cotrijui ainda tem um peso significativo para a economia do Estado. Hoje, a cooperativa emprega cerca de mil funcionários e congrega ao redor de 4,5 mil sócios ativos, segundo dados da ex-gestão liquidante. A capacidade de seus armazéns, espalhados em 13 municípios gaúchos, é de 1 milhão de toneladas.
Além das unidades de recebimento de grãos no noroeste e no sul do Estado, a Cotrijui mantém fábrica de ração animal, agroindústria, frigorífico de suínos, supermercados e postos de combustíveis. Na semana em que a Justiça determinou a liquidação judicial da cooperativa, o sentimento de incerteza era percebido claramente na expressão dos funcionários que continuavam cumprindo suas funções.
Na manhã da última terça-feira, no dia seguinte à decisão da Justiça de destituir o presidente liquidante e afastar a diretoria, funcionários da sede em Ijuí eram indagados por associados ansiosos em saber alguma informação que revelasse o rumo da cooperativa. No supermercado central, produtores e visitantes lamentavam a situação.
A decepção da comunidade local é justificada pelo protagonismo exercido pela Cotrijui, que ainda na década de 1970 construiu o primeiro terminal graneleiro no porto de Rio Grande. Foi também a cooperativa que motivou a colonização agrária de gaúchos na região de Dourados (MS), no início da década de 1980.
— A Cotrijui ajudou a abrir novas fronteiras agrícolas no Brasil. Inclusive era chamada pelo governo federal sempre que havia algum problema relacionado ao agro, pois era sinônimo de solução relembra o produtor Valdir Zardin, diretor da cooperativa na década de 1980 e hoje vice-prefeito de Ijuí.
Empregos ameaçados em frigorífico de suínos
Um dos principais empregadores em São Luiz Gonzaga, no Noroeste, o frigorífico de suínos da Cotrijui mantém quase 400 trabalhadores e 170 produtores integrados. Com capacidade para abater 1,6 mil animais por dia, a planta industrial é habilitada para exportar à China.
No último mês, operou com redução na jornada de trabalho, informa Atanasio Santiago, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação do município.
A situação é muito preocupante, até porque a recolocação desses trabalhadores aqui na região, em caso de uma demissão em massa, será muito difícil.
ATANASIO SANTIAGO
Presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação de São Luiz Gonzga
Segundo o dirigente, desde dezembro, 45 funcionários foram desligados, sem receber o valor das multas rescisórias e com atrasos nos depósitos do FGTS e no 13º salário.
— Os trabalhadores terão de entrar na Justiça para receber esse dinheiro — prevê Santiago.
Entre os funcionários que permanecem trabalhando, o clima é de incerteza em relação ao futuro.
— A situação é muito preocupante, até porque a recolocação desses trabalhadores aqui na região, em caso de uma demissão em massa, será muito difícil — desabafa o dirigente.