Os comissários de voo avisam, e os psicólogos concordam: “É preciso colocar a máscara de oxigênio em si mesmo primeiro, e só depois ajudar os outros”. Mas fato é que existe uma série de pessoas com dificuldade imensa em se priorizar, colocando as necessidades dos outros muito à frente das suas.
É nesse perfil que, muitas vezes, encaixa-se quem sofre da síndrome da mulher salvadora, conforme explica a psicóloga e especialista em neurociências Isabella Mondin Giusti, que comanda o podcast Psicologia e Saúde Mental:
— É a necessidade constante e excessiva de ajudar e estar sempre disponível. A pessoa coloca toda sua energia nos outros, está sempre disposta a dar conselhos e fazer coisas pela outra pessoa. É importante a gente ser gentil, prestativo, mas às vezes isso passa do limite — observa.
O termo está em alta na internet, em parte, impulsionado pelo BBB 23, já que alguns usuários das redes sociais o vinham associando ao comportamento da médica Amanda em relação ao lutador de MMA Cara de Sapato, desclassificado do reality na semana passada. Enquanto alguns defendem que se tratava de uma “amizade genuína, de milhões”, outros entenderam que ela doou-se demais ao brother, colocando tempo, atenção e energia nos problemas dele e deixando suas próprias necessidades em segundo plano.
“Ele entrou com uma babá no programa, que legal” e “Ele está com a Amanda só para ela o socorrer quando ele se sentir mal” comentaram internautas. O próprio Cara de Sapato comentou sobre a dinâmica dos dois: “Eu vejo muita bondade da parte dela em tudo, sabe? É uma pessoa que se doa muito também pelo próximo. Por isso também quero me doar ao máximo assim por ela".
Doar-se exageradamente ao outro é algo que ocorre tanto com homens como com mulheres, mas a psicóloga e psicanalista Aline Leite Kloeckner observa que mais frequentemente são elas quem assumem esse papel, já que estão inseridas em uma sociedade patriarcal onde as mulheres costumam ser ensinadas desde a infância a obedecer, servir e a serem “boazinhas”. Ainda conforme a especialista, algumas mulheres também estão mais propensas a agir como salvadoras por causa da maternidade: como o papel do cuidado com os filhos fica principalmente com elas, ocasionalmente esta dinâmica pode expandir-se para o cuidado com os outros.
— A educação antiga alimentava muito a ideia de que “tem que servir o maior, tem que servir pai, mãe, marido”, algo que sempre foi ensinado muito mais para as meninas do que para os meninos. Socialmente para a mulher não costuma ser feio ser subserviente, mas para o homem é. Mas tem havido evolução, e um bom sinal disso é a sociedade estar se incomodando ao ver isso. É sinal de que estamos em busca de um papel mais igualitário entre homens e mulheres — afirma Aline.
Motivos e consequências
Mas afinal, por que as mulheres salvam? Uma resposta possível são os benefícios que a salvadora acredita que advêm desse comportamento, como é o caso da sensação de "estar no controle" do outro, de ser essencial e indispensável. A pessoa salvadora muitas vezes sente-se realizada ocupando este papel, sem dar-se conta de que pode estar se prejudicando. Conforme a psicóloga Isabella, invariavelmente, está por trás da atitude salvadora um grande medo — consciente ou não — de ser abandonada, seja pela família, pelos amigos ou pelos amantes:
— Tem gente que pensa “as pessoas vão ser gratas a mim, vão me amar e gostar de mim por tudo que eu faço por elas. Então, tem uma questão de controle aí. As pessoas não vão me rejeitar, me criticar, me maltratar já que eu sempre faço as coisas por elas. A gente percebe que há controle e medo aí.
Tem uma dose de egoísmo que é vital para a sobrevivência
Ajudar demais também torna-se um problema quando a mulher ultrapassa os próprios limites para dedicar-se ao outro e quando cria expectativa de reconhecimento por seu esforço. Muitas vezes essa recíproca não vem, o que gera ressentimento. O comportamento de salvadora pode ainda abrir margem para abuso nos relacionamentos românticos, nos casos em que um percebe e tira proveito da subserviência do outro. Ao dar tudo de si para os outros, a pessoa se sobrecarrega e pode acabar desenvolvendo quadros de problemas de saúde mental e física:
— Pode causar burnout, depressão e inclusive acarretar em quadros psicossomáticos, como alergias, questões respiratórias, dores no estômago. Muitas mulheres somatizam e acabam adoecendo no corpo. Por isso digo que tem uma dose de egoísmo que é vital para a sobrevivência — afirma Aline.
Mas a salvadora não é apenas “vítima” na história, já que o seu comportamento pode contribuir para a criação de uma dependência emocional no outro. Se a salvadora tudo faz pelo sujeito, este indivíduo passa a internalizar a ideia de que não é capaz de fazer nada sozinho. Segundo Isabella, toda vez que alguém coloca-se no papel de salvador numa relação, automaticamente é acionado, mesmo que sem querer, o lado “vítima” da outra pessoa.
— Para quem é dependente, essa dinâmica gera muita insegurança e diminui a autoestima. Enquanto, do outro lado, a pessoa salvadora pode acabar se sentindo sufocada, explorada — pontua.
Crise de identidade
O problema mais grave da síndrome da salvadora, observam as especialistas, talvez seja utilizar o foco no outro como uma desculpa para ofuscar seus próprios problemas, evitando lidar com as suas questões pessoais. A prática é frequente, mas nem sempre consciente.
— Quando eu ajudo o outro, não preciso pensar em mim, resolver as minhas coisas. Então, às vezes, também é um comportamento de fuga, de esquiva. Pode ser uma forma de se anestesiar das próprias questões — observa Isabella.
Não são raros os casos em que mulheres na casa dos 50 ou 60 anos de idade marcam consulta com a psicóloga Aline Leite depois que algum evento impactante, como uma morte na família ou uma separação do cônjuge, chacoalhou suas estruturas. Questionam-se: “Quem sou eu sem essa pessoa em quem eu colocava toda a minha energia? Do que gosto de fazer?”. Deixar de cultivar sua própria identidade é mais um dos efeitos nefastos de uma vida focada nos outros.
— Quando o outro chega e diz “chega, não quero mais que tu faças isso tudo pra mim” a salvadora surta, já que havia passado a vida gravitando ao redor do outro, não tem personalidade própria — afirma Aline.
Saindo dessa
Não se priorizar e vestir a camisa da “salvadora”, como apontado pelas especialistas, pode impactar negativamente na formação de identidade da mulher, acarretar em problemas nas relações interpessoais e principalmente em questões de saúde física e mental. Por esses motivos, a psicóloga Isabella recomenda que a mulher não deixe de procurar atendimento profissional e de se aconselhar em terapia caso se encaixe muito no perfil da síndrome.
— Ter dificuldade em dizer não, colocar as necessidades dos outros à frente das suas, ter dificuldade em delegar tarefas, assumir compromissos em excesso, acreditar que o outro não vai conseguir se você não ajudar, precisar muito de aprovação do outro e sentir orgulho de ser “boazinha demais” são alertas que precisam ser trabalhados, porque isso gera um desequilíbrio da pessoa com a própria vida.