Ainda que não faça sentido, racionalmente, ter ciúme de uma realidade que não existe mais, não raro ele aparece ao pensarmos sobre as relações anteriores do parceiro(a) ou até mesmo ao lembrar de sua vida de solteiro(a). Difícil de explicar, este sentimento pode ser doloroso para quem sente e criar conflitos desnecessários a dois.
Para entender a origem do desconforto e refletir sobre como lidar com ele, conversamos com a psicóloga especialista em casal e família Priscila da Silva da Rosa.
Por que sentimos ciúme?
Ele é uma mistura de emoções que envolve raiva, tristeza, impotência, ansiedade, confusão. Ocorre sempre que sentimos que nossa conexão está ameaçada, ofendida ou em risco. É importante lembrar que tais sentimentos não ocorrem apenas em relacionamentos amorosos, podemos ver em relações familiares, entre amigos e até mesmo quando um colega recebe um elogio no trabalho. Assim como o amor ou o medo, o ciúme é algo natural e tem sua função. Porém, é importante lembrar que, embora seja natural, pode gerar problemas reais para nós e nossas relações.
Há algum sentido no apego ou insegurança em relação ao passado do parceiro, o chamado "ciúme retroativo"?
Nossa sociedade alimenta a ideia de que é errado sentir emoções ditas dolorosas, difíceis ou ruins. Muitas vezes, essa "terceira pessoa" do passado se torna uma ameaça por ser algo que a gente não vivenciou. A partir desse desconhecido, criamos uma fantasia, alimentando o ciúme. Se olharmos por esse prisma da incerteza — e o fato de não podermos saber o sentimento do outro —, percebemos que o passado é também um lugar incerto para o momento presente. E isso faz com que o ciúme, volta e meia, apareça.
A nossa cultura também valoriza a ideia de que o ciúme é uma demonstração de amor, mas nem sempre ele é. Outra coisa importante é que não nos autorizamos falar sobre as relações passadas: o que aprendemos, o que trazemos para a atual. E, por fim, acreditamos que devemos fazer o outro feliz incondicionalmente. Esse combo de ideias é combustível para alimentar o ciúme desse lugar que não vivemos, que é o passado.
Como lidar com o sentimento de forma saudável?
De maneira geral, quando o ciúme bate, ele sempre vem de um lugar de "não ser bom ou boa o suficiente" para aquela relação, de que talvez essa pessoa fosse mais feliz na relação anterior. Isso é o que percebo na prática clínica, mas não é regra. Sempre questiono meus pacientes sobre as evidências que eles têm para essa ideia.
Também os convido a se conectarem com o momento presente, no qual é mais fácil entender o que está acontecendo que nos leva a esse mix de sentimentos. Há casos em que precisamos fazer um exercício de respiração, algo como uma meditação, que nos traz de volta (ao presente).
É importante comunicar o parceiro?
Antes de comunicar diretamente ao parceiro sobre o sentimento de ciúme, precisamos entender quais necessidades não estão sendo atendidas, nos impulsionando para esse lugar. É importante termos certo nível de autoconhecimento para saber comunicar ao parceiro. Se eu sou do tipo de pessoa que não consegue falar sem brigar, talvez seja melhor comunicar quando já estiver mais calma, expondo qual situação me trouxe aquele sentimento, o que pensei diante da situação.
Se tratando de ciúme, sempre devemos conversar para que, juntos, possamos encontrar um caminho de reflexão e de como ambos podem contribuir para uma melhor relação. Obviamente respeitando os sentimentos um do outro e buscando entender também o tempo de falar para que não aconteça uma briga.
Muitas vezes, esse sentimento vem junto com uma comparação? Como não cair nessa armadilha?
A ideia da comparação entre as mulheres está relacionada a um mito de beleza e de competição, mas que pode ser um tópico de reflexão individual. De maneira geral, somos socializadas para competir com outras mulheres e isso não nos traz segurança de quem somos ou do que temos a oferecer para uma relação.
É difícil não cair nessa armadilha, mas acho importante que possamos nos conectar com o momento presente, lembrando de nos questionar quais são as evidências que temos de que essa pessoa é mais bonita ou mais inteligente do que nós. E refletir por que buscamos uma felicidade baseada na ideia de que nunca somos suficientes, que nos faz criar uma lógica de insatisfação sem fim. Se questionar, buscando limpar as lentes com que vemos o mundo, é uma forma de não cair nessa armadilha.
E quando é o parceiro que sente ciúme do meu passado, como lidar?
Algo que é sempre difícil, mas necessário, é acolher e buscar entender o que o outro está sentindo e de onde está vindo esse sentimento. Porém, é importante estar atenta sempre para que o ciúme do nosso parceiro não nos prive ou tire nossa autonomia. Assim como não devemos privar o outro de sua liberdade.
Enquanto terapeuta de casal, sempre vou ser a favor do diálogo e vou dizer que é importante deixarmos um canal aberto para que, quando inseguranças baterem, possamos conversar e criar estratégias juntos para favorecer a relação.
*Produção: Luísa Tessuto