"Eu não vou poupar vocês", escreve a esgrimista e protetora dos animais Deise Falci em um dos vídeos publicados no Instagram, em que chora ao encontrar um cachorro morto e outros dois completamente assustados, deixados no quintal alagado de uma casa na Região Metropolitana. Desde o dia 3 de maio, a baiana radicada no Rio Grande do Sul está na linha de frente dos resgates de cães e gatos que foram abandonados na enchente ou ficaram para trás quando os tutores precisaram deixar as suas casas às pressas.
As cenas são duras e comoventes, mostram animais presos em telhados, cães exaustos de tanto nadar e bichos que sucumbiram. Mas os relatos francos gravados em vídeo e o trabalho obstinado de Deise e equipe correram o Brasil por meio das redes sociais. O perfil da mulher de 44 anos foi a quase 600 mil seguidores e, com essa difusão, garantiu apoio de anônimos e celebridades no momento mais crucial.
— Tem muita gente que critica, diz que "fazer caridade com uma câmera na mão é ridículo". Mas a questão é, quanto eu poderia fazer sem a ajuda das pessoas? Só com o meu dinheiro e sem mostrar a realidade, eu não conseguiria resgatar mais de 30 animais. Então a gente tenta mobilizar as pessoas para poder salvar mais bichos ainda, fazer com que mais gente ajude, adote e contribua para eles terem uma vida boa. Se não enxergarem essa necessidade, como vão ajudar? — afirma Deise.
Incansável, Deise navegou contra a correnteza do Guaíba a bordo de um bote comprado com doações e fez centenas de resgates, principalmente na Ilha da Pintada, de onde vêm algumas das imagens mais aflitivas desta jornada. Em uma escola onde vários animais foram deixados por estar localizada em terreno mais alto, ela encontrou cachorros mortos, com feridas abertas ou que se afogaram na tentativa desesperada de sair dali.
Em Eldorado do Sul, a ativista conseguiu chegar ao isolado bairro Progresso, onde poucos voluntários estiveram, pois demandava fazer um caminho por onde os barcos não passavam. Caminhando quilômetros sob o sol, Deise e equipe levaram no muque sacos de ração e retornaram carregando animais. Os que não conseguiram trazer, acomodaram no segundo andar de casas vazias e deixaram alimento.
Agora, conforme a água vai baixando, Deise segue trabalhando nos resgates por terra. Com mais de mil animais sob sua responsabilidade, entre os que estão em seu sítio, sua casa, em clínicas, lares temporários e no abrigo que montou neste mês, parar para descansar não é uma opção:
— Eu já não parava antes, porque cuidava sozinha de cerca de 500 bichos. E agora estou vivendo um pesadelo porque é uma loucura o que está acontecendo. Estou responsável por mais de mil vidas, entre cães e gatos.
Qual é a importância de mobilizar as pessoas pelas redes sociais?
Comecei a enchente com 62 mil seguidores, que já era um bom número no mundo da causa animal, até porque o meu público sempre foi muito engajado. E de repente um vídeo meu viraliza, um monte de artistas começam a compartilhar, e agora são mais de 500 (mil). Para se ter uma ideia, falei com Angélica, Tatá Werneck, Luiz Fernando Guimarães e outros, apareci em programas e jornais da TV.
Fiquei chocada, nem conseguia entender o que estava acontecendo porque a minha prioridade era estar no barco resgatando e eu não tinha nem internet quando chegava em casa, tinha de ir a um restaurante pegar wi-fi para postar algo.
Quando veio a enchente, o que te deu o estalo de que a situação, tão dura para as pessoas, também seria terrível para os animais?
Eu resgato animais desde 2008 e com o tempo me especializei em fazer mutirões de castração. Recentemente, estava em Santa Catarina quando comecei a ver as postagens das áreas alagadas e fiquei desesperada, porque uma das primeiras estradas a romper era a que levava ao meu sítio, onde cuido de centenas de animais. Quando consegui chegar em Porto Alegre, decidi fazer que eu podia, que era ir resgatar animais nas regiões das ilhas.
E por que faz isso, o que te move?
Faço porque me dá um desespero pensar que um cachorro está mal. Se vejo um animal sofrendo, não descanso até conseguir pegá-lo, tanto é que tenho várias histórias de cães que me morderam. É o caso da Érica e do Verissimo, que viralizou em maio de 2023, dois cachorros minúsculos e assustados que foram abandonados na Avenida Érico Veríssimo.
Eles corriam por tudo e várias pessoas começaram a me contatar para ir tentar pegá-los, mobilizou muita gente. No terceiro dia, consegui pegar a Érica, mas ela me deu um monte de mordidas, tenho cicatrizes até hoje. Já o Veríssimo caminhou a cidade inteira até eu conseguir resgatar, depois de três semanas, na Zona Sul. Depois disso, fiquei conhecida como uma protetora de animais obstinada, que faz resgates difíceis, ganhei uma fama de "poxa, a Deise não desiste".
Neste mês, os resgates só ficaram mais difíceis, não é?
Dentro do barco, somos eu, Gustavo e Leonardo e nós três estivemos muito afinados porque as dificuldades eram inúmeras, as pessoas nem imaginam. Tinha risco de bater a hélice nas grades das casas, nas coisas submersas na rua, nos carros completamente debaixo d'água. Nosso motor estragou duas vezes e também tinha o perigo de o bote furar, por isso não conseguíamos chegar tão perto de algumas casas.
Tem de tudo num resgate, há os difíceis em que realmente só tendo destreza no laço para conseguir salvar os animais — e nessas, o Gustavo parece o Macgyver porque não aceita não conseguir — e tem aqueles em que o cão só quer uma voz mais doce, um "vem, meu amor", para se aproximar.
Num dia, ficamos à deriva no meio do Guaíba, sem sinal de telefone. Eu achei que iria morrer.
Qual foi a situação mais perigosa que enfrentaram?
Num dia, ficamos à deriva no meio do Guaíba, sem sinal de telefone. Eu achei que iria morrer, aquela correnteza muito forte e a gente sem motor e sem conseguir avisar ninguém. E eu segurando as cordas dos cachorros desesperados, pensando "se me puxarem, eu caio desse bote". Foi muito assustador. Ficamos uns 20 minutos à deriva até que, não sei como, o Gustavo conseguiu ligar o motor de novo. Mas as histórias vão além, teve jet-ski que virou, jet-ski que estava nos acompanhando e foi embora do nada. Realmente não era fácil, todo mundo que estava ali estava arriscando a vida.
A correnteza foi um desafio?
Sim, essa foi a grande diferença entre os resgates na região das ilhas e na cidade. Por exemplo, em Canoas, era mais fácil resgatar os animais pois não tinha correnteza, era só eu sair do barco, nadar um pouco e me agarrar na grade de uma casa. Já no meio do Guaíba, não tinha como fazer isso, a correnteza te empurra e se tu cai na água, tu já era.
Você teve reflexos no corpo?
No quinto dia de resgates, tive uma exaustão física bem importante, cheguei a ir para o hospital. Tanto que até acharam que eu estivesse com leptospirose. Na medida da fadiga muscular que os médicos fazem, que deveria dar cerca de 100, eu medi 600.
E os resgates continuam? Para onde tem levado os animais?
Sim, desde domingo (19), pude começar os resgates por terra e tenho voltado com o carro cheio de animais magérrimos, famintos, cansados, bichos que estão perdidos pela estrada, abandonados, cães que nadaram e se perderam de suas casas. É muito importante agora a distribuição de ração para eles se recuperarem.
E na segunda-feira (20), foi o primeiro dia que consegui ir para o meu sítio, reencontrar os meus cachorros depois de três semanas, tempo em que eles ficaram sendo cuidados pelos meus caseiros. Estou com cerca de 200 no meu sítio e também criei um abrigo num espaço em frente à minha casa. Lá eu estava montando um negócio que inauguraria em junho (risos). Agora esquece, né? Virou um abrigo de cães.
As pessoas estão se disponibilizando a ser lar temporário para eles?
Sim, dos animais que estão sob minha responsabilidade, são 178 em lar temporário, que foi o sucesso do primeiro dia de resgates. Eu postei um vídeo falando que eu estaria com os animais resgatados em uma clínica no bairro Santana, na Capital, e nem acreditei quando cheguei e vi uma fila de pessoas esperando para doar ração e para pegar um cachorro. E pegaram animais gigantes, cães caramelo, ninguém se importava com essas coisas, só queriam ajudar e foi lindo de ver. Alguns já confirmaram que vão querer adotar se não aparecer dono.
Do que precisa para seguir o trabalho daqui para frente?
Sigo fazendo resgates e estou focada na castração de todos para poder encaminhar o mais rápido possível para lares. Preciso arrumar um espaço para construir canis, inclusive já solicitei à prefeitura ceder algum tipo de terreno ou local e falei de uma possível isenção de IPTU, que eu acho que é o mínimo, pois estamos nos matando para abrir os abrigos, algo que o poder público deveria fazer.
E agora preciso de mão de obra para trabalhar com esses animais, porque como é que eu vou ter braço para cuidar de mil bichos? Não tem como. Quem quiser ajudar, pode contatar pelo email vemadotar@gmail.com e seguir o perfil do Instagram, onde posto todos os dias sobre os que entraram, os que foram adotados etc.
Recebeu doações importantes depois que o seu trabalho ficou mais conhecido?
Sim, veio muita ajuda e muitos interessados no projeto, gente disposta a montar algum projeto para ajudar a manter os animais, pois perceberam que alguns desses bichos certamente não serão adotados, vão ficar comigo por 15 anos.
Só que, sendo bem sincera, eu não tinha nem cabeça pra pensar nisso, estava com a cabeça nos resgates e talvez tenha perdido algumas oportunidades de pessoas que queriam ajudar naquele instante em que tudo o que eu podia responder era: "Cara, os bichos estão em cima do telhado, passando fome, frio, eu preciso agora focar nisso". Então agora é que vou chamar algumas pessoas que me contataram querendo ajudar a ajeitar esses animais e conseguir canis. Hoje, se eu sair para resgatar, e eu vou sair, já não tenho mais onde botar.