O prazo do projeto no trabalho. O tema de casa do filho mais novo. A infiltração na parede da cozinha. A consulta médica da mãe. O jantar com os amigos que precisou ser adiado (de novo). A dieta revolucionária que a influenciadora divulgou no Instagram. São várias as tarefas que parecem nunca deixar a mente da mulher-moderna-que-dá-conta-de-tudo. Há uma unanimidade entre elas, que pode ser condensada em um desabafo cada vez mais comum: "Estou cansada".
Por que especialmente as mulheres sentem que há uma sobrecarga pairando sobre a vida delas e de que forma é possível projetar 2024 de forma mais leve são alguns dos temas levantados por Jane Felipe, psicóloga, professora de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero.
Ao encontro do tema da redação do Enem 2023, "Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil", que fez os estudantes debaterem a questão na prova de novembro, Jane aponta que, por ainda sermos criadas a partir dessa perspectiva, muitas mulheres chegam a acumular até oito jornadas de trabalho em consequência da ideia de que são "naturalmente" cuidadoras.
Seriam elas: 1) Cuidados com a aparência (a famosa pressão estética); 2) Cuidados com a casa (ainda que as tarefas sejam divididas, é comum ficar a cargo da mulher ser a "administradora do lar"); 3) Cuidados com os filhos; 4) Cuidados com a relação amorosa (cabe à mulher, muitas vezes, ser quem faz o maior esforço para buscar ou manter o relacionamento); 5) Cuidados com a carreira (a fim de provar o seu valor no mercado de trabalho); 6) Cuidados com os estudos (para comprovar o seu intelecto acadêmico); 7) Cuidados com os idosos da família (geralmente são elas as responsáveis por zelar pelos pais e até mesmo pelos sogros); 8) Cuidados com os netos (não raro as matriarcas ajudam na criação dos novos membros da família).
Todos os itens envolvem três importantes aspectos: dedicação de tempo, esforço emocional e investimento financeiro. Essa romantização do cuidado feminino, de acordo com Jane, vem de uma educação “desigual e perversa” que naturaliza as diferenças entre os gêneros:
— Não nos damos conta do quanto as instituições e os discursos vão construindo e elaborando esses scripts voltados para as mulheres e, ao mesmo tempo, vão desonerando os homens de responsabilidades.
Investimentos sociais, políticos, históricos e culturais fazem com que mulheres sejam vistas de um jeito e homens de outro
JANE FELIPE
Professora de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
As expectativas em torno de homens e mulheres na sociedade não nascem com a gente, frisa ela.
— Não se trata de uma questão de essência que explica determinados comportamentos, e sim investimentos sociais, políticos, históricos e culturais que fazem com que mulheres sejam vistas de um jeito e homens de outro — afirma.
Autora do livro Mulheres Não São Chatas, Mulheres Estão Exaustas (2019), entre outras obras, a advogada e mestre em Direito do Trabalho com ênfase no trabalho feminino Ruth Manus explica ainda que é comum haver uma confusão entre amor e trabalho no entendimento das tarefas que a mulher desempenha dentro de casa. De acordo com ela, esse trabalho é visível, mas tem seu valor invisibilizado, já que não raro é camuflado pelo afeto familiar.
— O ofício doméstico sempre esteve a serviço de um sistema patriarcal que tem todo o interesse em não remunerar esse trabalho das mulheres, que tem valor financeiro, vide o fato de existirem empregadas domésticas. Quando você tira o valor tanto moral quanto financeiro de um trabalho, está contribuindo para um colapso mental da pessoa que está desempenhando essa função — aponta.
O mito da super-heroína
Apontar tal sobrecarga não quer dizer que as mulheres façam qualquer uma das tarefas listadas acima contra sua vontade. Na maioria das vezes, inclusive, é justamente o contrário. Mas se, em algum momento, a ideia de mulheres "super-heroínas", que "dão conta de tudo com um sorriso no rosto e calçando salto alto no pé", foi glamourizada, hoje é necessária uma reflexão a fim de estabelecer limites e não explorar o trabalho feminino.
— Muitas de nós estamos entrando em colapso por conta dessas múltiplas tarefas. Essa ideia de tentar impor uma representação de mulheres guerreiras é, na verdade, uma armadilha e uma exploração do trabalho feminino. Falta um compromisso ético da família como um todo para ajudar a mulher para que ela não tenha esse cansaço – frisa a professora de Educação.
Ruth acrescenta que a importância de desconstruir o status de "mulher guerreira" passa por um processo de conscientização. Assim como teve a fase em que a mulher era enaltecida por ter família e filhos, com raramente o peso dessa escolha sendo debatido, também vivemos um período de vangloriar a mulher trabalhadora e multitarefas ("Nossa, como ela é forte"), como se o cansaço fosse uma virtude. Agora, o momento é outro.
— Junto com a questão de abordar a saúde mental, entramos em uma fase de falar sobre o cansaço, de verbalizar, exteriorizar, se queixar — explica a autora.
Em 2024...
Deixar o celular mais de lado, anotar os compromissos e reservar um momento para descanso no dia são algumas das dicas das especialistas para quem busca lidar com o cansaço e equilibrar as demandas de forma mais saudável no ano que começa.
Aproveite para ficar offline
Para além de toda a questão estrutural que explica o cansaço feminino, há um fator que não é exclusivo das mulheres, mas que intensifica problemáticas femininas e pode provocar as mais variadas ansiedades. A má notícia é que estamos em contato com ele todos os dias: o celular.
Uma breve passagem pelas redes sociais (que facilmente leva mais tempo do que gostaríamos ou planejávamos) pode desencadear sentimentos de frustração, comparação e baixa autoestima.
— Existe um cansaço de todas as pessoas que é muito potencializado pelas redes sociais e atinge as mulheres com uma intensidade maior em relação a questões estéticas e cobranças de estilo de vida — aponta Ruth.
Ao mesmo tempo, para além de gatilho para inseguranças, as plataformas digitais também podem ser benéficas se usadas com propósito, reforça a escritora e advogada.
— O importante é o que se faz com esse espaço. Se as pessoas não fazem uma certa triagem daquilo que consomem online, sem dúvida o saldo é negativo para as mulheres. Entre tutoriais de maquiagem e looks do dia, o que pressiona em termos estéticos é o que chega mais fácil pelo algoritmo. Se você não buscar coisas que são construtivas, a vida online pode potencializar cansaço e problemas de saúde mental — opina.
Portanto, armadilhas sociais, muita informação e pouco tempo para processar todo o conteúdo que aparece na tela são alertas para deixar o aparelho de lado por mais tempo se o objetivo é deixar a cabeça mais leve.
Tire da cabeça, coloque no papel
A importância do planejamento, em primeiro lugar, está em ajudar a lidar com a carga mental e a ansiedade gerada por ela. Quem destaca esse ponto é Yasmim Barroso, fundadora da Flordemim, empresa que vende materiais e promove cursos e outros produtos que buscam facilitar o processo de organização. Para ela, a dica principal é: o papel não esquece de nada.
— Tenha uma ferramenta, como um caderno ou um planner, para anotar todas as demandas. Começou a ficar com um monte de coisa na cabeça? Escreva. Não dá para organizar pensamentos, e a gente gasta muita energia tentando se lembrar de tudo e revisando essa lista mental — indica.
Foco e espaço para o descanso
Você tem conseguido descansar de maneira satisfatória? Yasmim recomenda que haja um espaço reservado na agenda para o descanso — e que não seja a noite de sono:
— As demandas não acabam. Sempre tem coisa para fazer, o tempo todo. Se a gente espera tudo estar resolvido para finalmente descansar, nunca chegaremos nesse momento. É importante ter o planejamento para conseguir olhar o que tem para fazer e criar espaço para o descanso. Sem essa intencionalidade, acabamos resumindo o descanso a dormir. E dormir é uma necessidade básica e não é a única forma de descansar.
Aposte no diálogo
Entender seus limites e comunicá-los para a família são pontos importantes indicados pelas profissionais.
— É importante essa autopercepção, porque muitas vezes as mulheres se sentem culpadas por não darem conta, de não fazerem ainda mais para além do que é exigido delas. É preciso estabelecer limites, ter consciência de nossos anseios e dificuldades. Pedir ajuda, educar toda a família para que essas relações sejam igualitárias — afirma Jane Felipe.
Já Ruth ressalta a importância de conversar de forma pacífica, sem brigas ou acusações.
— Geralmente, só falamos sobre a sobrecarga em um momento de extremo cansaço. Acho que o exercício seria conversar sobre isso em momentos calmos. Em que a gente não está em contexto de briga, de exaustão. As regras podem ser mudadas e, se tem alguém fazendo a mais, é porque tem alguém fazendo a menos — lembra ela.
O perfeito não existe
Entenda que os hábitos são construídos a longo prazo e os problemas não serão resolvidos em uma semana ou um mês. Por último e não menos importante, seja mais gentil consigo mesma. Desista do perfeito – ele não existe.
— Olhe para as coisas que você já faz. Você deu conta de se trazer até esse ponto da sua vida, se cuidou na medida do possível. O perfeito possivelmente está sabotando o possível. Se você quer ir para a academia todos os dias, por exemplo, às vezes não vai dar e você vai ir duas vezes. Mas é melhor do que nada. Você está mirando no perfeito, e o perfeito está te impedindo de fazer alguma coisa. Mata esse perfeito e foca no possível — conclui Yasmim.