A imagem é lembrada por uma das psicólogas entrevistadas: a mulher como um polvo, com seus muitos tentáculos, que vão abraçando tarefas e mais tarefas, cada uma delas se desdobrando em outras... até que se esteja a um passo do adoecimento. Quando se chega à exaustão extrema, característica da síndrome de burnout, nem fim de semana, férias ou licença poderão reverter o quadro. Será necessária ajuda psicológica e/ou psiquiátrica, além do uso de medicação. Mas por que o jeito polvo de ser está mais associado às mulheres do que aos homens?
— Penso que a mulher está muito vinculada a um trabalho de cuidar, historicamente até, desde a questão de ser mãe — analisa Desirée Luzardo Cardozo, psicóloga membro da equipe multiprofissional do Serviço de Medicina Ocupacional do HCPA, que citou a imagem do polvo.
Nos últimos anos, pesquisas têm mostrado mulheres mais suscetíveis ao cansaço extremo (veja o quadro a seguir). O cenário pandêmico não pode ser ignorado, quando o home office e a ausência de uma rede de apoio escancararam o que de certo modo sempre esteve presente na vida das mulheres: jornadas de trabalho (formal e informal, em casa) intensas e sobrepostas.
— É muito comum que durante a jornada de trabalho as mulheres estejam resolvendo ou administrando questões familiares, da casa, dos filhos — bem lembra a psicóloga clínica Ana Maria Rossi, presidente da International Stress Management Association (Isma-BR).
Ana Maria considera ainda alguns agravantes mais frequentemente percebidos em mulheres: dificuldade de aceitar ajuda, de delegar tarefas e de dizer não, somada à tendência pelo perfeccionismo e um alto nível de exigência.
A mulher está muito vinculada ao trabalho de cuidar
DESIRÉE LUZARDO CARDOZO
Psicóloga
— Esse pano de fundo as torna vulneráveis ao estresse. Algumas mulheres internalizaram que devem trabalhar duas vezes mais do que os homens para terem reconhecimento semelhante. As desigualdades de gênero no ambiente de trabalho são como um gatilho. Elas vão se cobrar mais, vão se culpar mais e esse é o piso, a base de uma condição que leva à exaustão extrema — acrescenta a especialista.
Esse contexto estrutural da nossa sociedade é uma das principais razões da maior vulnerabilidade feminina ao burnout, segundo a psicóloga Fabiana Demétrio, que também é formada em Administração e tem pós-graduação em gestão organizacional:
— Muitas delas são a principal fonte de renda das famílias e estão mais propensas a assumir a responsabilidade da casa e dos filhos. Outro ponto importante ligando as mulheres ao burnout são as diferenças sociais, as desigualdades nas condições de trabalho e na remuneração dos cargos, se comparadas às mesmas funções desenvolvidas pelos homens. Infelizmente, as mulheres ainda estão mais vulneráveis a fatores de risco como assédio moral, sexual e violência emocional e psicológica.
Elas são mais vulneráveis a assédio moral, sexual e violência emocional e psicológica
FABIANA DEMÉTRIO
Psicóloga
A psicóloga Desirée traz mais um componente para esse cenário minado de fatores de risco para as mulheres:
— As áreas onde mais comumente são identificados casos de burnout é na prestação de serviços, como na saúde e na educação. E, não por acaso, as mulheres são maioria nessas profissões.
Baseada na própria experiência, a jornalista americana Anne Helen Petersen escreveu o best-seller Não aguento mais não aguentar mais: Como os Millennials se tornaram a geração do burnout (ed. HarperCollins Brasil). Em entrevista ao portal UOL, ela opinou que as mulheres são mais propensas à exaustão extrema porque arrumação e ordem estão historicamente associados ao sexo feminino. Para ela, as mulheres se tornaram "gerentes de projetos" em todo lugar, da casa ao local de trabalho. De alguma forma internalizaram que, se algo sai errado na família, com os filhos, a culpa recai sobre elas e não sobre os parceiros.
Elas vão se cobrar mais, vão se culpar mais
ANA MARIA ROSSI
psicóloga
Qual é a saída?
Para se tornar um polvo ou uma gerente de projetos em todo lugar e continuar como tal, as mulheres acabam negligenciando cuidados pessoais. Então, as especialistas ouvidas por Donna são claras: se o comportamento de polvo a faz adoecer, essa mulher vai precisar rever prioridades e objetivos.
Tratamentos psicoterápicos e medicamentos não serão suficientes se não houver uma mudança no estilo de vida. O acompanhamento profissional deve favorecer que a mulher se fortaleça, seja capaz de, agora em diante, negociar limites, em casa ou no trabalho.
— A proteção também precisa vir coletivamente: as mulheres precisam se apoiar e se articular, principalmente nas questões de trabalho, para que essa negociação tenha maiores condições de avançar — sugere Desirée.
Entenda a síndrome
- A síndrome de burnout é encontrada na 11ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) como um fenômeno ocupacional. Os primeiros sinais se caracterizam pela exaustão relacionado a atividade laboral, menor identificação com o trabalho e a sensação de incapacidade profissional.
- Com o passar do tempo, esses sintomas começam a tomar uma proporção maior, trazendo prejuízos no âmbito profissional e pessoal. Distúrbios do sono, distúrbios alimentares, crises de ansiedade, alteração de humor, postura negativa diante da vida e dores de cabeça são alguns dos sintomas mais agravantes.
- No âmbito laboral, ambientes insalubres, sobrecarga de trabalho, local de trabalho conflituoso, jornadas longas e a falta de suporte profissionais são algumas das caraterísticas que elevam os índices de mulheres afetadas pela síndrome. Mulheres que apresentam outros distúrbios psíquicos (transtorno de ansiedade e síndrome do pânico, por exemplo) também podem ter maior tendência a serem afetadas.
- Na síndrome de burnout, o corpo e a mente estão sob constante estresse, não conseguindo “desligar” ou descansar, mesmo nos momentos de lazer ou no período de férias.
Cenário preocupante
- Uma pesquisa com 65 mil pessoas da Women in the Workplace, feita em 2021 pela consultoria McKinsey & Company e pela organização LeanIn, apontou que 42% das mulheres convivem com sintomas da síndrome de burnout. Em 2020 e 2019, esse índice era de 32% e 28%, respectivamente.
- Pesquisa de 2019, da ISMA Brasil, associação integrante da International Stress Management Association (ISMA), indicou que as mulheres tem 20% mais chance de desenvolver burnout do que seus colegas homens.
- Também no ano passado, o Instituto Datafolha divulgou uma pesquisa feita a pedido da plataforma de saúde mental Zenklub, em que 68% das mulheres do país se sentiram sobrecarregadas com o trabalho durante a pandemia, contra 56% dos homens. Segundo especialistas, a sobrecarga é caminho aberto para ocorrência de burnout.
- Outro levantamento, da Great Place to Work, uma consultoria global de apoio a organizações, e da startup de saúde Maven observou que mães com empregos remunerados têm 23% mais chances de sofrer de burnout que pais empregados.
- A plataforma LinkedIn ouviu quase 5 mil americanos no ano passado e constatou que 74% das mulheres disseram estar muito ou razoavelmente estressadas por motivos ligados ao trabalho, em comparação com 61% dos homens que responderam à pesquisa.
- Em 2018, pesquisadores da Universidade de Montreal, no Canadá, publicaram um estudo com mais de 2 mil trabalhadores, que foram acompanhados por quatro anos. Entre as conclusões, as mulheres eram mais vulneráveis ao burnout porque experimentavam menor chance de serem promovidas, o que estaria associado à frustração. O estudo também indicou que mulheres eram mais propensas a liderar famílias com um pai ou mãe solo, experimentar tensões ligadas às crianças, investir parte de seu tempo em tarefas domésticas e ter mais baixa autoestima — coisas que podem exacerbar o esgotamento profissional.