É comum no Réveillon o congestionamento do sinal telefônico. Todo mundo inventa de ligar para alguém por chamada de vídeo e mostrar onde está e os fogos de artifício espocando no céu (para a infelicidade da audição ultrassensível dos cachorros).
Em vez de abraçar e comemorar com quem está ao lado, preocupamo-nos com os ausentes. Começamos o ano com a cabeça baixa, debruçada no celular, abstraindo perigosamente aqueles que escolheram a nossa companhia, revelando-nos mais interessados em mandar mensagens do que ser a própria mensagem viva e atenta de um momento.
Não sei onde iremos parar, mas com certeza estaremos descarregados de recordações. A memória se realiza com a presença. Sem memória, não somos capazes sequer de produzir saudade e sentir falta. As experiências vão se equivalendo no branco da tela e anulando as descobertas, os suspiros, os arrepios da pele.
Tomei uma decisão: ao me encontrar, daqui por diante, com um amigo ou familiar, porei o meu celular no bolso. Lá ele ficará até a despedida, até o tchau, até o cumprimento derradeiro.
É o único antídoto contra a amnésia coletiva e o esvaziamento dos nossos sentidos. Pois a prisão visual leva embora junto o paladar, o olfato, a audição, o toque da pele.
Tampouco deixarei o celular em cima da mesa. Ele é hipnótico. Mesmo quando ele não toca, mesmo quando ele não tem nenhuma chamada, você vai se ver obrigado a mexer nele. Ou porque espera uma resposta, ou porque está acostumado a esperar um evento extraordinário não esperando nada.
Ninguém aguenta a coceira da imobilidade. É o silvo das sereias para o fundo do oceano da indiferença.
Colocar a tela para baixo não aquietará a sua ansiedade. Já percebi que não funciona. Os dedos se movimentam sozinhos para espiar o WhatsApp, para conferir os e-mails e as redes sociais.
É o Mãozinha da Família Addams. Aquela mão decepada que rasteja buscando objetos, independentemente de um corpo.
Não menospreze o poder da influência da manada. Não tente lutar — será uma batalha em vão, cercada de exemplos que banalizam a atitude.
É só a sua companhia usar o aparelho que se achará no direito de fazer o mesmo. E os dois estarão incomunicáveis, arremessados para suas ilhas privadas, náufragos da sensibilidade social.
Não menospreze os gatilhos do vício.
No primeiro silêncio dos outros, na primeira distração dos outros, terá um ataque de curiosidade. Você entra nele sem procurar nada em específico, e perde de vez a noção do tempo arrastando o dedo de página em página.
Manterei o celular no bolso. Sua luz não irá me guiar. Ele termina com o andamento de qualquer conversa, quebra o ritmo de qualquer encontro. Eu estou calmo e ele me traz preocupações, eu estou esperançoso e ele me traz angústias, eu estou em paz e ele me traz conflitos.
Com o celular por perto, dou a entender que meu maior interesse está fora do lugar, escondendo-me perigosamente da pessoa à minha frente.