A palavra empoderamento talvez ande um pouco gasta, mas é difícil não pensar nela quando ouvimos histórias de mulheres que viajam sozinhas. Seja na serra gaúcha ou sob o sol de uma praia do Nordeste, num souk de Marraquexe ou sentada num café argentino, aprender a desfrutar da própria companhia é, sem dúvida, uma sensação poderosa.
O empoderamento aparece, por sinal, no relato de uma das vozes mais gabaritadas para falar sobre turismo em Zero Hora: a da jornalista Rosane Tremea.
— É aquela sensação de “Eu posso. Cheguei até aqui, fiz tudo sozinha e consigo ir adiante”. Tu te sentes empoderada e é muito importante a mulher ter essa experiência, porque essa sensação acaba sendo carregada para a vida — garante.
Outra prata da casa que sabe tudo quando o assunto é colocar o pé na estrada – especialmente quando vai na direção de Buenos Aires, seus vinhos e restaurantes – é Sara Bodowsky. Para ela, não há o que supere o prazer de uma viagem sozinha, com liberdade para seguir à risca um roteiro ou abrir mão dele, permitindo-se descobrir ruelas e comidas preferidas dos locais:
— É legal que tu conheces mais gente viajando sozinha, mas a verdade é que eu, às vezes, não quero conhecer ninguém, quero ficar em silêncio, na minha, tomar um vinho às 11h e estar livre para fazer o que quiser. Não me sinto sozinha, mas sim megabem. Adoro poder sentar num lugar e ficar olhando a vida passar, viver como se eu fosse dali.
O que há de bom em se lançar numa viagem solo, os empecilhos, os perrengues e a melhor forma de se preparar para essa jornada são os temas desta conversa entre Donna e quatro mulheres versadas na arte do turismo do ponto de vista feminino. Pode servir de guia para você que está planejando um 2023 de muitas descobertas.
Mercado aquecido
Dos 24 anos em que Chayenna de Amorim trabalha com turismo, ela garante que os últimos 15 têm sido especialmente marcados por um aumento no interesse das mulheres por viajarem sozinhas. Atuando na agência Casamundi, em Porto Alegre, ela percebeu esse movimento, feito por um perfil que frequentemente é o da “mulher bem resolvida” e que não está disposta a ficar esperando aparecer o momento ou a companhia ideais para pegar a estrada.
— Viajar sozinha acaba sendo um símbolo de realização pessoal para elas, que estão em busca de vivências, autoconhecimento, conhecer pessoas e culturas, além de se reconectar consigo e com a natureza — afirma Chayenna.
A lista de destinos favoritos sempre tem os clássicos grandes centros urbanos, como Paris, na França, Nova York, nos Estados Unidos, e Madrid, na Espanha, mas, depois da pandemia, as experiências ligadas à conexão com a natureza e ao bem-estar estão em alta. É o caso de destinos brasileiros, como o Jalapão e a Chapada dos Veadeiros, e de países do continente americano, como Costa Rica e Peru.
Cidades badaladas da Europa, como Roma, Veneza e Florença, na Itália, e a capital francesa, estiveram no roteiro da primeira viagem internacional de Rosane Tremea, há mais de 30 anos. Ela lembra que, naquele momento, ver uma mulher viajando sozinha era considerado esquisito. Não foram poucas as vezes em que lhe perguntaram: “Não tens amigos, familiares, namorado?”.
— Hoje é normal, mas, na época, era um estranhamento. Parecia que eu tinha a obrigação de estar com alguém. E a viagem foi, de fato, um pouco esquisita, pois eu recém tinha perdido pai e mãe. Talvez parecesse meio triste, mas foi importante estar longe de tudo e todos para fazer uma reconexão comigo, pensar “agora que perdi meus pais, quem sou eu no mundo?” — relembra.
Uma das viagens mais especiais que a jornalista já fez foi um presente de aniversário para si mesma, quando comemorou 50 anos, em setembro de 2013. Foi ao deserto do Atacama e fez um tour astronômico acompanhada de um guia e de um grupo de desconhecidos. Havia contratado o passeio em uma agência local de San Pedro de Atacama, que lhe disseram ser segura.
— Tu ficas ao ar livre, onde tem um observatório, num frio do caramba, olhando as estrelas, mas aquele céu é uma coisa incrível. Parecia que, se tu andasses um pouquinho, pegaria as estrelas com a mão. Eu me sentia sozinha no universo e foi espetacular. Algo inesquecível — conta.
Autoestima nas alturas
Não sabes onde fica tal praia? Tu te informas e encontras. Furou o pneu da bike? Tu resolves. Começou a chover no meio da trilha? Tudo bem, porque, com cuidado, terás como continuar assim mesmo. Dá-se um jeito.
Pequenas provações são como um combustível para a realização, de acordo com a psicóloga Rafaela Klaus. O que há de mais benéfico em viajar desacompanhada, no entender da especialista, são as sensações de liberdade e independência que aparecem quando a mulher se dá conta de que pode contar consigo.
— Vão aparecer perrengues, que tu vais resolvendo, provando e dizendo para ti mesma: “eu consigo, tenho as habilidades necessárias ou vou desenvolvê-las”. Esse senso da capacidade te beneficiará muito em termos de autoestima — afirma.
Ela acrescenta que sentir-se livre é importante, porque ajuda muito a aliviar as pressões do dia a dia. Principalmente, no caso das mulheres. Estar na própria companhia, lembra a psicóloga, é uma forma de se desvincular de rotinas, expectativas e cobranças.
— Tu te desligas daquilo que te prende, dos teus pensamentos, daquilo que achas que os outros pensam de ti e até das coisas que a sociedade fala, como “tens que casar, ter filhos, te vestir assim, ter um corpo assim”. Viajar sozinha possibilita sermos quem somos, sem ter que prestar contas aos outros — defende Rafaela.
Perrengues, uma realidade
Dá para evitar muitos problemas planejando bem a viagem? Com certeza, garantem as entrevistadas. Mas o fato é que, mesmo quem já está acostumada a viajar, volta e meia, deixa algum detalhe importante passar. Por isso, o ideal é manter a serenidade ao lidar com os contratempos, de forma que se transformem em histórias para rir no futuro, e não em traumas.
“Vamos manter a maldita calma” foi o mantra que Rosane repetiu para si mesma quando se viu numa estrada deserta no interior da Itália, em uma cidade de 3 mil habitantes, sem ter planejado bem o transporte de retorno de um passeio. Sem táxi à disposição, precisou esperar horas por um ônibus. Quando finalmente parou um veículo, era um transporte específico para estudantes e a brasileira teve que aguentar o mico de pegar carona com eles.
Sara também passou trabalho ao viver uma das experiências que mais assombram os viajantes, embora, hoje, fale a respeito com leveza: foi pega pela imigração sem nem saber o que havia feito de errado. Aconteceu durante uma viagem aos Estados Unidos, passando pelo México, onde acabou retida numa salinha do aeroporto, acompanhada de famílias de imigrantes.
— Me chamou a atenção um cartaz que dizia “seus direitos humanos serão respeitados”. Já me deu um pavor — lembra.
No fim das contas, Sara havia errado um detalhe ao preencher um documento que entregou à imigração. Logo foi liberada e pôde seguir viagem, mas relata que foi, realmente, um susto.
Das duas experiências, ficam as dicas: prestar muita atenção à documentação necessária, que varia de país para país, e planejar muito bem como serão os seus deslocamentos em território desconhecido. Vale a pena pesquisar se há transporte público ou por aplicativo, por exemplo.
Reforço nos cuidados
Há um conselho que apareceu várias vezes na fala das entrevistadas para esta matéria: “lembrem-se de que vocês não têm superpoderes”. O alerta é de que, mesmo se sentindo confiantes e sortudas, é bom manter a consciência de que ninguém é páreo para as forças da natureza e de que o mundo é repleto de perigos à integridade física e emocional da mulher.
Por isso, pé no chão sempre. A psicóloga Rafaela Klaus explica que o risco deste combo “liberdade + autoconfiança” é extrapolarmos para a irresponsabilidade:
Viajar sozinha possibilita sermos quem somos, sem ter que prestar contas aos outros.
RAFAELA KLAUS
Psicóloga
— Ouço muito das pessoas que viajam sobre o sentimento de segurança. “Tudo bem, vou pegar o ônibus à 1h, atravessar esse parque no escuro, é tranquilo, eu posso”. E, na verdade, pode ser uma ilusão, porque estão imersas nessa sensação que as torna mais corajosas. É preciso tomar cuidado para não se colocar em risco à toa — diz.
Também vale lembrar que as sensações de perigo ou segurança podem variar muito conforme a perspectiva. Por isso, a dica de Rosane Tremea é ouvir outras mulheres sobre o que é seguro ou não fazer em determinado local:
— Às vezes, um homem dirá “tal rua é segura à noite”, mas aí tu vais ver e o cara tem 1m95cm e luta jiu-jitsu. Ele não é como eu, uma mulher que mede 1m54cm e faz pilates. Se for agredida, não vou conseguir me defender. Então, pergunte às mulheres se os lugares são seguros. Elas sempre sabem.
Barreiras antes de embarcar
Começar a pegar a estrada sem companhia, embora recompensador, pode ser um desafio para mulheres maduras. Segundo Rafaela Klaus, num perfil de idade 50+, costumam pesar questões como “se tenho um companheiro, por que deveria viajar sozinha?” ou então “o que os outros vão pensar de mim?”.
Outros fatores na balança são dúvidas, como “será que vou me sentir bem?”, “vai ser divertido, vou me entediar?”. Para isso, as viagens curtas podem ser uma boa forma de testar sua habilidade de passar um tempo desacompanhada.
— Uma pessoa que vive sozinha, provavelmente, já tem noção daquilo que lhe dá prazer, mas para quem não costuma ficar só, podem aparecer várias dúvidas. Nesse caso, é interessante que ela se pergunte: “O que faço sozinha hoje que me dá prazer?”, “como me sinto quando faço algo só?”. Algumas respostas podem vir daí — sublinha a profissional.
Se nas primeiras viagens bater alguma tristeza, a dica da psicóloga é para que a pessoa observe a si, pense sobre como pode se ajudar a naquele momento e, caso necessário, entre em contato com algum amigo ou companheiro. Interagir um pouco com alguém conhecido pode ser uma estratégia para sair de uma vibe ruim.
Medo de não ter com quem contar em caso de emergências também é uma dificuldade de quem está começando a considerar os passeios solo. Para isso, vale sempre deixar algum amigo ou parente avisado da sua viagem e do local onde está hospedada.
E também lembrar-se de que viajar sozinha não quer dizer que é obrigatório ficar 100% do tempo desacompanhada: é possível fazer passeios em grupo, contratar guias, motoristas, buscar redes de apoio online (a exemplo da SisterWave, Let’sBora e outras), conversar com as pessoas do seu hotel etc. Vale tudo para conseguir, ao menos, experimentar os benefícios de sair só por alguns momentos.
— Às vezes, não tenho tempo de ser a minha companhia aqui na cidade, nem de tratar a Sara como ela merece. Por isso, sinto-me muito bem viajando. A Sara que viaja é a mais essencial, a de verdade. Viajar me mantém viva, me faz melhor para mim mesma e para os outros e é uma fonte de energia de vida. Não preciso ter o carro do ano e posso ter o mesmo armário por cinco anos. Só preciso de algumas roupas que durem e um veículo que me leve — reflete a jornalista Sara Bodowsky.
Alinhamento familiar
Incompreensão da família, dificuldade de inserir a ideia na dinâmica do casal ou até mesmo receio de infidelidade aos acordos de um relacionamento são pontos que podem dificultar a partida solo da mulher. A psicóloga Rafaela Klaus conta que chegam ao seu consultório tanto dúvidas de parceiros, como “por que desejas viajar sozinha? Queres separar?”, quanto da própria mulher, como “sei que serei fiel, mas confio que meu parceiro será também?”, e muitas outras.
A recomendação da especialista é o diálogo. Conversar sobre suas vontades pode ajudar a amenizar os possíveis desconfortos.
— Pode ser interessante contar nossas experiências para as pessoas do nosso entorno, pois isso desmistifica muita coisa. Ajuda a aceitarem a ideia e pode, inclusive, acabar servindo de inspiração. É legal falar sobre os sentimentos, o que foi legal, o perrengue — ensina.
Por trabalho e por prazer, Sara Bodowsky viaja em sua própria companhia muitas vezes. Mesmo estando em um relacionamento, isso não é um problema, já que o companheiro entende a importância desse movimento em sua vida. A jornalista incentiva mulheres que têm gana de se aventurar a não se limitarem por conta de uma relação.
— Claro que cada casal tem suas combinações, mas se tu tens vontade e a pessoa não quer ir contigo, “não te deixa” ir sozinha ou não te faz sentir tranquila para ir, minha dica é: dá uma refletida sobre o que é importante para ti. Viajar sozinha é muito bom, não pode ser o outro a te impedir disso — aconselha.
Religião e costumes
Uma orientação da bacharel em Turismo e sócia da Casamundi Chayenna de Amorim para evitar situações de risco ou constrangimentos é se inteirar bem sobre costumes, vestimentas e restrições imposta às mulheres em alguns países. Especialmente, em nações asiáticas e árabes, a exemplo do que se viu há pouco, na Copa do Catar.
A profissional conta que já sentiu o desconforto dos olhares masculinos durante uma viagem ao sul da Ásia, quando, por descuido, cobriu-se com uma echarpe que não tapava completamente seu decote.
— Não quer dizer que a mulher não pode ir aos destinos que têm histórico de problemas de segurança. No entanto, ela deve se prevenir, manter-se atenta e, quem sabe, até contratar um motorista ou guia local, alguém que vá acompanhá-la — argumenta a empresária.
Dicas essenciais para uma boa viagem
Planeje detalhadamente: busque sites, perfis e publicações confiáveis para dicas atualizadas e organize sua viagem minuciosamente. Rosane Tremea, por exemplo, sai de casa já sabendo onde vai se hospedar, qual trem ou ônibus terá que pegar, com tíquete comprado e com um roteiro indicando qual atração visitará a cada dia.
— Acho importante essa organização, porque assim tu não perdes tempo e sentes mais confiança. Não só física, mas de que tu vais conseguir fazer todos os programas que queres e vais conseguir te deslocar com tranquilidade — diz.
Comece aos poucos: para quem está debutando nas viagens sozinha, pode ser importante investir, primeiro, em saídas com duração curta e, gradualmente, ir ousando mais.
Pensando em destinos internacionais, países que falam português ou espanhol podem ser um bom começo. Falar inglês ou arranhar algumas palavras no idioma local sempre ajuda.
— Sou fluente em espanhol e inglês, mas tento arranhar francês e italiano também. Faço questão de tentar falar a língua dos lugares, porque gosto de conseguir me adaptar ao ambiente e absorver tudo. É outra experiência quando tu consegues ouvir, entender e te comunicar com as pessoas do lugar — relata Sara.
Fique atenta: estão nas notícias diariamente os golpes dos aluguéis de casas e hotéis que não existem, ou a compra de bilhetes de avião falsos. A dica da agente de viagens Chayenna de Amorim é ser cautelosa, informar-se sobre o local para onde desejas ir e o preço real que essa viagem costuma custar antes de fechar negócio, sem se deixar levar por aquela “oferta milagrosa” que apareceu do nada em um anúncio ou perfil nas redes sociais. Pesquise as empresas, os colaboradores e os CNPJs antes de fazer negócio.
Garanta que terás internet: certifique-se de que o lugar para onde está indo tem bom sinal para a sua operadora e, se pretender sair do Brasil, preferencialmente, contrate um plano. Ou então compre um chip assim que chegar ao local.
Amarre as pontas: em casa, deixe todas as contas agendadas e tudo o mais que for necessário para não ter que perder tempo resolvendo problemas ao longo do passeio.
Organize o dinheiro: certifique-se de viajar com grana suficiente para não precisar contar moedas nem colocar-se em risco. Se for para o Exterior, pesquise a moeda do local, informe-se se vale mais a pena converter no Brasil ou comprar dinheiro por lá mesmo.
Informe-se também sobre bancos digitais (como Wise e Nomad), sempre prestando atenção se as taxas de conversão estão valendo a pena. E, se possível, tenha um bom cartão de crédito com limite para emergências.
Abuse dos aplicativos de mobilidade: ferramentas como Google Maps, Transit, Citty Mapper e outros ajudam muito, informando caminhos, linhas e horários de ônibus, trens, metrôs e táxis. Vale a pena baixar, testar e ver qual deles funciona melhor no local em que estiveres.
Informe-se sobre os passeios: se desejar fazer uma trilha, informe-se previamente se ela é autoguiada, se tem maré que pode influenciar, se há trecho em floresta fechada. E avise a alguém de que estás indo para lá.
— Conversando com as pessoas da pousada, tu já vais receber informações, como “ah, não vale ir depois de tal hora, porque vais levar certo tempo para voltar e aí a maré vai te pegar” — exemplifica a jornalista Rosane Tremea.