Tem quem ache super normal, tem quem ainda vá com um pouco de receio. Mas o fato é que viajar sem companhia faz cada vez mais parte da rotina de mulheres pelo mundo. Um dos muitos incentivos que elas encontram antes de embarcar são os relatos de outras que já fizeram o mesmo. Conversamos com duas escritoras que não são só experientes na arte de viajar sozinhas como também decidiram registrar suas histórias na estrada em livros.
Lançado no mês passado, Cadernos de Viagem Herdados (Editora Claraboia, que trabalha exclusivamente com publicações de mulheres) é a estreia da atriz Nicole Cordery, 47 anos, na literatura. A obra, que mistura romance com crônicas, tem como objetivo encorajar a independência feminina - inclusive no que diz respeito a viajar solo.
Em conversa com Donna por telefone, Nicole, que passou boa parte da vida viajando, tanto por motivos profissionais quanto por uma paixão pessoal, descreveu alguns de seus giros mundo afora e deu dicas para mulheres que pretendem se aventurar sozinhas. Confira:
Quais são os benefícios de viajar sozinha?
Para mim, o principal é o autoconhecimento. Acredito que, especialmente nós, mulheres, conseguimos conhecer o mais profundo da nossa essência quando estamos fora da nossa zona de conforto. A gente se coloca em situação de risco. Não risco de ser assaltada, estuprada, isso temos em qualquer lugar. Mas no sentido de que qualquer pessoa pode falar comigo, posso perder meus pertences, não estou no aconchego do meu lar. É nessas situações que eu mais aprendo sobre minha essência. No livro, eu falo, por exemplo, sobre quando você perde uma conexão e não vai chegar a tempo a algum lugar. Você entra em desespero quando alguma coisa foge do seu controle de programação. Aí, dou a dica: o imprevisto tem que ser algo que é previsto quando você pensa uma viagem.
Acredito que, especialmente, nós, mulheres, conseguimos conhecer o mais profundo da nossa essência quando estamos fora da nossa zona de conforto.
NICOLE CORDERY
Atriz e escritora
A pessoa que vai viajar sozinha tem que estar com o seu sensor de jogo de cintura ativado. A qualquer hora pode dar uma m*rda, desculpa a palavra (risos). E você vai ter que saber transformar em algo legal, em uma história para contar. Meu livro tem muita história porque já caí em muita roubada. Você acaba conhecendo lugares que não imaginava. É para quem está com o espírito de se conhecer em deslocamento. Sou casada há 18 anos e sempre que posso viajo com ele (o marido). Mas, estando com ele, também gosto de dar uma escapulidas sozinha. Dá uma sensação de controle, um poder de decisão sobre a própria vida.
E a principal dificuldade?
Acho que é o planejamento, ter que se informar o máximo que puder. E eu viajava sem internet, na época dos guias... Você tem que entender o seu orçamento, para onde você está indo, qual é a desse lugar. Também tenho muito prazer mas muita dificuldade em fazer a mala: tem que ser concisa. Se você vai viajar, lembre-se de que é você quem vai carregar o seu peso.
Que dicas você daria a uma mulher que está programando uma viagem solo?
Tem que ter planejamento com jogo de cintura , porque os imprevistos são previstos. Estudar o lugar para onde você está indo. Hoje em dia, uma coisa muito legal são os grupos de mulheres que viajam sozinhas. Você pergunta sobre os destinos e as pessoas vão trocando informações. Existe a prática de couchsurfing, um estilo de "disponibilizo meu sofá para você", só para mulheres. Às vezes isso é mais legal do que ficar em um hotel. Também indico procurar, no lugar onde você vai ir, alguém de referência. Um amigo de um amigo, um conhecido, um brasileiro que seja. O mínimo, caso dê algum problema.
Além disso, conversar com outras mulheres que já foram sozinhas para esse lugar. E isso também inclui pesquisar blogs, na internet existem vários diários de viagem publicados. Saber programar a sua mala para que ela seja leve e funcional. E estar aberta a conhecer pessoas, a se surpreender com o que o lugar pode te dar. Às vezes, a gente planeja tanto e acaba que não viaja, só segue o guia. Sentar em um café e ficar olhando as pessoas na rua pode, muitas vezes, te contar mais do lugar do que ir em um ponto turístico.
Você já disse que o livro é uma resposta a um motorista que a acusou de "não saber viajar". Pode contar melhor o que aconteceu e por que isso a motivou a escrever a obra?
Em 2017, estávamos em quatro mulheres em turnê na Argentina, sem homens, sem excursão, de mochila, por conta de um espetáculo. Em uma das transições de ônibus entre as cidades - íamos de uma rodoviária pequena a outra -, estávamos havia horas sem acesso a um banheiro. O interior da Argentina tem essa peculiaridade: é preciso sempre levar lenço ou papel, porque não costuma ter. Já era um dado da nossa viagem (risos). O banheiro da própria rodoviária estava fechado. Então, quando chegou, as quatro foram direto para o banheiro do ônibus. Quando entrei para fazer xixi, fui a quarta a ir, o ônibus ainda estava parado e o motorista veio esmurrar a porta: "Hay que aprender a viajar, señorita!", disse ele, em espanhol. Ele quis dizer que, quando um ônibus está parado, o xixi vai para o chão. Mas eu, que já morei fora do Brasil por anos, que sou a pessoa que dá dicas de viagem para todo mundo... Como esse homem bate aqui e me diz para aprender a viajar? Fiquei pensando: por que eu não sei viajar? O que significa para mim? Vou escrever sobre isso.
Mas você vai sozinha?
A pergunta irônica é o título do livro da jornalista Gaía Passarelli, de 45 anos, publicado em 2016 pela Globo Livros. A obra é um compilado de histórias em formato de crônicas em que ela conta as delícias e os perrengues de suas andanças por países como Escócia, Índia e Colômbia.
Ela, que já trabalhou durante anos como repórter de cultura e viagem, tem experiência de sobra na área e lista algumas dicas para quem está planejando uma trip sem companhia. Em primeiro lugar, reforça que não gosta da ideia de "provar" alguma coisa.
— A viagem solo faz sentido quando você está querendo tirar um tempo para você. "Quero ir, não tem ninguém para ir comigo, vou sozinha sim". Ou "quero ir sozinha porque estou precisando desse tempo para mim" — avalia ela, que segue escrevendo crônicas na newsletter Tá Todo Mundo Tentando, enviada gratuitamente toda sexta-feira.
Veja mais dicas de Gaía:
Respeite a cultura local
"Não faz sentido você estar na Índia de cropped e shortinho, como você se vestiria no interior do Brasil. Aqui não tem problema, mas lá tem. Você vai chamar a atenção de um jeito que não vai ser bom para você. Então, quanto mais você conseguir não chamar a atenção para você mesma, mais tranquila vai ficar. Vale para Índia, mas também para qualquer lugar. É claro que temos que ser fiéis a nós mesmas, mas você está sozinha e longe de casa. Então pense bem em como você vai se comportar e agir. Isso influencia muito em como a sua viagem vai acontecer".
Faça um seguro viagem
"É muito mais fácil do que a gente imagina. Se você tem um cartão de crédito internacional, a chance é de que você já tenha e só precise ativá-lo. Não deixe de fazer. É um dinheirinho gasto antes, mas, se você precisar, vai ter sido muito bem investido. Tem seguro que cobre cancelamento de voo, extravio de bagagem, tem várias modalidades. Mas todos sempre vão cobrir acidentes e doenças. Eu já precisei usar uma vez que fiquei muito doente nos Estados Unidos. Minha conta de hospital teria dado mais de US$ 100 mil e eu estaria pagando essa dívida até hoje. Com o seguro, tive um médico que foi me atender no local e eu gastei um total de zero reais. Faça!".
Informação nunca é demais
"Uma mulher bem-informada é uma mulher segura. Se você chegar já sabendo mais ou menos o que vai encontrar (pelo menos o básico, como ir do aeroporto ao lugar onde vai se hospedar), vai evitar cair em roubadas. Internet está aí para isso, existe um monte de sites confiáveis de viagens, grupos de mulheres viajantes no Facebook e outras plataformas. Vai fazer teu rolê sabendo o que está fazendo".
Uma mulher bem-informada é uma mulher segura.
GAÍA PASSARELLI
Jornalista e escritora
Aproveite por você e por mais ninguém
"Se dê o direito de fazer só o que está a fim A gente já vive tendo que performar muitos papéis o tempo todo para a sociedade. A gente trabalha, tem relacionamento, filho, família, amigos. Temos que fazer muitas coisas para os outros. Quando está viajando sozinha, esse é o seu tempo com você. Você acordou e não quer ir a um museu, ou a um passeio, ou seja lá o que for que tenha planejando? Não vai. Se dê o direito de ficar fazendo nada, vai ser ótimo. Se quiser passar o dia tomando três cafés da manhã, tome! Você não deve nada para ninguém. Seja feliz, mas lembre-se de que, quando está viajando sozinha, não pode responsabilizar os outros pelas suas mancadas. Se pegou o ônibus para o lado errado, a culpa é toda sua (risos)".
Produção: Luísa Tessuto